Prédica: João 3.14-21
Leituras: Números 21.4-9 e Efésios 2.1-10
Autoria: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 4° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 14/03/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Compromisso de amor transformador
1. Introdução
Estamos no tempo da Quaresma e, neste ano, a Campanha da Fraternidade é ecumênica, com o tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, inspirada em Efésios 2.14 (que se encontra alguns versículos após um dos textos indicados para este 4º Domingo na Quaresma. O texto de Efésios nos lembra da quebra do diálogo com Deus, usando o conceito de filhos e filhas da “desobediência” (2.2; apeitheias; cf. Ef 5.6 e Cl 3.6). A filiação da desobediência se dá por meio da concordância com o eon deste mundo. Isso é o que a Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) propõe por meio do diálogo e do compromisso de amor. A CFE convida a quebrar essa filiação com a violência, o ódio, a intolerância, o racismo, o machismo, a homo-lesbo-trans-fobia, a desigualdade social e econômica, o genocídio, a violação de direitos e toda forma de destruição do meio ambiente. Como alternativa à filiação desobediente está a graça em Cristo, capaz de nos transformar apesar de nosso pecado, e fazer do julgamento uma esperança. A leitura de Números, também citada no texto para a pregação (cf. Nm 21.9; Jo 3.14-15) traz essa mesma esperança em Cristo. Jesus na cruz é a visão da vida que neutraliza a morte, não pelos méritos de um povo desobediente, mas pelo amor que transforma morte em vida.
2. Exegese
A primeira questão a ser resolvida neste texto é sua delimitação. Kümmel compreende 3.1-21 como um conjunto que ele denomina “o encontro com Nicodemos” (1982, p. 246). No entanto, algumas versões do Novo Testamento fazem uma subdivisão em duas partes (3.1-15 e 16-21). De fato, o versículo 15 parece concluir o diálogo com Nicodemos ao afirmar: para que todo aquele que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna (tradução do grego ina pas ho pisteuōn eis auton mē apolētai all’ echē zoēn aiōnion), sendo que todo o versículo 15 é exatamente igual a essa parte do versículo 16! Já a expressão ho pisteuōn eis auton aparece de novo na primeira parte de 3.18. Essa repetição é claramente proposital no quarto evangelho, revela o centro – ou coração – da perícope (3.15-18), que, de fato, seria 3.1-21. João 3.14,19-21 pode ser interpretado separadamente, mas como centro da perícope maior. Ao redor do centro encontramos 3.13-14 com o título filho do ser humano (huios tou anthrōpou), enquanto – do outro lado do centro – em 3.19 afirma-se que há seres humanos que amaram mais as trevas do que a luz. Assim, o tema do “humano” ou “humanidade”, que não aparece em nenhum versículo a não ser na apresentação de um homem chamado Nicodemos, em 3.1, pode ser entendido como o revestimento desse centro que proclama o surgimento de uma nova humanidade – de luz e não mais de trevas –, cujo modelo é o próprio Jesus crucificado-ressuscitado.
O centro: inclusão, fé participativa e nova humanidade
O núcleo, centro ou coração da perícope (3.15-18) pode ser resumido da seguinte forma: a) a vida eterna para todas as pessoas (uso da palavra grega pas; 3.15-16); b) o “crer” (que além de nos versículos 15 e 16, aparece três vezes em 3.18, duas como afirmação e uma como negação); c) o sentido do amor divino não apenas para a salvação da humanidade, mas para salvar o mundo (a palavra “mundo” aparece uma vez em 3.16 e duas em 3.17).
O termo pas/todos é aplicado à inclusão no ser de Cristo por meio do crer. Essa teologia abre o evangelho e o chamado “Livro dos Sinais” (1.19 – 12.50), onde se encontra o texto para este domingo, dizendo: para que todos cressem por ele (1.7b, Almeida). Cothenet explica que “João evita o termo abstrato pistis e emprega constantemente o verbo pisteuein que realça melhor o caráter ativo do ‘crer’ [...] que indica também o movimento interior da pessoa que crê em direção a Cristo” (COTHENET, 1988, p. 92, grifos do autor). Assim, crer é participar – ser agente – da transformação eterna da humanidade e da salvação do mundo. O mundo (kosmos) é outro dos assuntos preferidos do quarto evangelho (tratado em nove versículos em Mateus, três em Marcos e Lucas e 58 em João). Da mesma forma que a humanidade, o mundo é paradoxal, tendo de um lado o mundo (ordem/sistema) a ser superado, e o mundo (humanidade/criação) a ser salvo. Em 1.10 o paradoxo é desenhado: e ele estava no mundo, o mundo foi feito por meio dele, e o mundo não o conheceu (tradução direta do grego). Para esse evangelho, o mundo precisa refazer o caminho de reencontro com o Logos (Palavra criadora/criativa).
A nova humanidade: agente de transformação do mundo por meio da fé
Ao redor do centro temos a humanidade apresentada em Jesus mediante o título filho do ser humano (huios tou antrōpou) e, por outro lado, a humanidade perdida nas trevas. Esse título, que, segundo Cothenet, é usado 12 vezes nesse evangelho, tem como objetivo sustentar “a verdadeira humanidade de Jesus”. Aqui, no entanto, tem um sentido diferente do que nos sinóticos (Mt, Mc, Lc), onde o título é uma referência profética (Dn 7). Em João, a expressão evoca a comunhão total entre Jesus e a humanidade, revelada principalmente no ato sacrificial da cruz (COTHENET, 1988, p. 94, 96-97). Jesus não carrega a humanidade, Jesus é a nova humanidade gerada pela cruz/ressurreição por meio do “crer”. A citação de Números 21.9 tem esse sentido. A nova humanidade em Jesus não é apenas essência, mas é nova práxis. A nova pessoa humana em Cristo não é apenas um novo ser, mas recebe a vocação de transformar o mundo amado por Deus em Cristo (3.17-18 em direta relação com 3.19-21).
3. Meditação: diálogo e compromisso de amor para a transformação
O texto da pregação desafia-nos a assumir o compromisso de amor (como afirma o lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021). No entanto, leva o diálogo a outro patamar. Geralmente pensamos “diálogo” como “conversa”, mas, olhando a perícope completa (3.1-21), vemos como um simples diálogo (na conversa entre Jesus e Nicodemos) se transforma em um desafio programático e prático! Do diálogo (3.1-13) emerge um manifesto de amor pelo mundo (Jo 3.15-18) e, a partir dele, todas as pessoas são chamadas/convidadas a crer e participar (3.19-21).
A proposta transformadora de Jesus indica uma incompatibilidade insuperável entre o amor de Deus pelo mundo (3.16a) e uma humanidade mergulhada na lógica da opressão e da violência que ama mais as trevas do que a luz (3.20). O manifesto de amor pelo mundo contrapõe o amor da entrega ao amor do engano; o amor que dá a vida ao amor que mata, oprime e engana. Em ambos os casos se fala de “amor”, mas não pode ser, nem jamais será, o mesmo amor.
Isso também lembra a leitura de Efésios 2.1-10, que desafia a fazer a desfiliação do sistema desobediente à vontade liberadora de Deus e se filiar ao amor que liberta e transforma. A nova filiação se dá a partir da fé – do crer – na cruz/ressurreição desse “filho do ser humano” que se faz modelo de uma nova humanidade. Será que cremos o suficiente para nos irmanar com todas as pessoas que creem? Será que nossa fé está realmente direcionada para a transformação do mundo pela graça? Temos em Cristo a visão de que a missão é para o mundo e não apenas para nossa própria salvação? Da resposta que possamos dar a perguntas como essas é que surgirá uma nova práxis (agir a partir do ser) ou não. Esse compromisso de amor fará com que todas as pessoas possam ver a luz que vem de Cristo, e onde todas as pessoas possam se ver nessa luz.
4. Imagens para a prédica
Sigamos trabalhando nos três eixos encontrados na exegese de João 3.14-21 e trabalhados na meditação: inclusividade, fé (crer) e transformação (nova humanidade). O conceito e a prática da inclusividade têm se destacado na luta das pessoas com deficiência, especialmente por acessibilidade, direitos iguais, reconhecimento, luta contra a rotulagem, estigmatização etc. Vejamos como lugares – antes inacessíveis para essas pessoas – antes tidas como incapazes ou excluídas – se tornaram acessíveis, permitindo que participassem da vida econômica, política, social e cultural. Será que nossas comunidades são acolhedoras e acessíveis para todas as pessoas ou ainda colocamos barreiras intransponíveis?
Em relação à prática da fé, podemos mostrar imagens de expressões da fé cristã que condenam, rotulam e até promovem o ódio contra outras pessoas. Mas também mostrar expressões de fé que acolhem, que integram, que vivem a comunhão e constroem a comunidade inclusiva e missionária.
A transformação de nossa humanidade nos questiona sobre que tipo de humanidade somos chamados a ser. Aquela que se aproveita, desvaloriza e destrói a criação de Deus, ou aquela que se integra, aprende e se interliga entre si e com a criação de forma amorosa e vital? Busquemos imagens que expressem uma e outra.
5. Subsídios litúrgicos
Propomos um momento de confissão de pecados a partir de João 3.16 na perspectiva do amor divino pelo mundo em Jesus Cristo (D = Dirigente; C =
Comunidade; T = Todos).
D – Irmãs e irmãos em Cristo, “tanto amou Deus o mundo que enviou seu Filho Unigênito”.
C – Permite-nos, ó Deus, por meio da fé, participar do teu amor pelo mundo e assim ser agentes de transformação.
T – Perdoa, quando impedimos que a tua graça atue em nós para a salvação do mundo.
D – Irmãs e irmãos em Cristo, Deus enviou seu Filho Unigênito, “para que toda pessoa que nele crê não pereça”.
C – Concede-nos, ó Deus, uma fé transformadora, para que possamos ser instrumentos de cura e de vida para toda a criação.
T – Perdoa, quando nos fechamos à tua graça, excluindo outras pessoas e agindo apenas em favor de interesses egoístas.
D – Irmãs e irmãos em Cristo, Deus, pela fé, nos concedeu a vida eterna.
C – Permite que ao viver a fé em Jesus Cristo, participando como agentes de transformação em favor do mundo amado, alcancemos a vida eterna.
T – Perdoa, quando desvalorizamos e limitamos o amor, que é eterno e incondicional.
D – Que Deus, que amou o mundo, perdoe nossos pecados, nos transforme pela sua graça e nos capacite como agentes de transformação amorosa do mundo.
C – Por amor de Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, enviado ao mundo para que toda pessoa que crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
T – Amém.
Bibliografia
COTHENET, Edouard. O Evangelho segundo São João. In: Os Escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
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