Prédica: João 18.33-37
Leituras: Daniel 7.9-10, 13-14 e Apocalipse 1.4b-8
Autoria: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 21/11/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Jesus Cristo é Rei e Senhor – hoje e sempre
1. Introdução
Os três textos bíblicos indicados para a pregação e as leituras têm em comum o tema da presença de um soberano, cujo poder é absoluto e eterno. Em Daniel, há um ancião assentado sobre um trono, ao qual se achega o Filho do homem. Foi-lhe dado domínio e glória e o reino [...] o seu domínio é eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído (v. 14). No Apocalipse consta: Graça e paz a vós outros [...] da parte de Jesus Cristo [...] o soberano dos reis da terra [...] Eu sou o Alfa e o Ômega [...], aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso. Assim, as leituras sugeridas são uma boa preparação para o texto de pregação que reproduz o diálogo entre Pilatos e Jesus: És tu o rei dos judeus? [...] O meu reino não é deste mundo [...] Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo.
Assim, os três textos se complementam mutuamente e, havendo o tempo e a disponibilidade para tal, que se aproveite a leitura dos mesmos na celebração.
O texto de prédica de João 18.33-37 já foi analisado em três volumes de Proclamar Libertação: XIX, 31 e 36; em todos eles como texto de prédica para o Domingo Cristo Rei.
2. Análise exegética
O relato de João 18.33-37 apresenta o interrogatório de Jesus por Pilatos. Depois de terem interrogado Jesus, as autoridades judaicas, convictas de que Jesus deve ser morto (v. 14 e 31), levam-no a Pilatos, que representa o efetivo poder/governo na região. As autoridades judaicas não ingressam no pretório – sede do governo; portanto espaço pagão, não judeu – na presença de Pilatos para não se contaminarem, estando, assim, impedidos de celebrar a Páscoa logo a seguir (v. 28). Por isso o interrogatório se dá sem a presença dos acusadores.
Sem rodeios, Pilatos vai direto à questão: És tu o rei dos judeus? (v. 33). Como os versículos anteriores, que relatam o encaminhamento de Jesus a Pilatos, não dizem expressamente o motivo da acusação, o evangelista traz isso no diálogo de Jesus com Pilatos: Vem de ti mesmo esta pergunta ou te disseram isso outros a meu respeito? (v. 34). A resposta de Pilatos (v. 35) aponta claramente o cerne do conflito: A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Portanto o conflito não é entre os detentores do poder político e governantes (Império Romano, Pilatos como representante do mesmo) e um pretendente a derrubá-los e assumir o poder. Mas o conflito é de outra ordem. Por isso a resposta de Jesus é significativa e fundamental: O meu reino não é deste mundo (v. 36). Essa afirmação de Jesus se reveste de uma dupla dimensão. Por um lado, ela expressa que a origem e a abrangência de seu poder não se situam no mesmo nível do poder e do espaço de Pilatos e dos romanos. Não é um reino como o Império Romano ou qualquer outro reinado. Se assim o fosse, como Jesus continua sua argumentação, seus apoiadores e colaboradores interveriam para impedir que ele fosse entregue a seus adversários (v. 36). E o interessante é que Jesus cita os judeus como esses adversários. Porque, no relato da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ele é saudado pelo povo com a aclamação: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e que é Rei de Israel (12.13). Para seus seguidores, ele é o Messias esperado. Mas para as autoridades judaicas, esse Jesus não pode ser o Messias, por contradizer todas as expectativas deles e por Jesus, com sua mensagem e maneira de ser, trazer bem outra imagem de reino. Essa é a outra dimensão dessa expressão que o seu reino não é deste mundo. Seu reino tem como referência o agir de Deus. Quem lhe confere autoridade não são instâncias humanas como nos reinos deste mundo, mas é o próprio Deus. No agir e falar de Jesus, como nos relatam os evangelhos, ele traz Deus para junto das pessoas. Jesus é o Deus encarnado (1.14). Nele, o reino de Deus irrompe na realidade humana. Por isso o seu reino não é deste mundo; é o reino de Deus.
Pilatos entende a argumentação de Jesus e conclui com a pergunta: Logo, tu és rei? Jesus concorda com a afirmação de Pilatos de que ele é rei. Mas imediatamente, na sequência da argumentação do versículo anterior sobre a origem de seu reino, ele acrescenta por que e que tipo de rei ele é: Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade (v. 37). Nisso consiste sua missão e seu reinado, que não terá fim: testemunhar a verdade. A alētheia é tema recorrente no Evangelho de João: 8.44; 14.6, 17; 15.26; 16.13; 17.17, 19; 18.37, bem como em 1 João 2.21; 3.19; 4.6. Alētheia, sem dúvida, também compreende a veracidade de fatos históricos, de acontecimentos e dados objetivos. Mas na fala de Jesus segundo o evangelista João, à semelhança do que é dito em relação ao reino, alētheia tem uma outra dimensão. Trata-se não de uma verdade qualquer ou de fatos verdadeiros, mas é a verdade. Para dar testemunho dessa verdade é que Jesus veio ao mundo. Ou seja, é a verdade sobre o Deus que se torna humano e acolhe o ser humano em seu Reino. O testemunho da verdade que Jesus dá é que Deus vem ao encontro do ser humano pecador, que se afastara de Deus, e lhe oferece nova comunhão. Por isso a pessoa que ouve o testemunho de Jesus e acolhe essa oferta se torna participante da verdade, ou seja, faz parte do reino de Deus.
Mas como Pilatos se move em outra esfera, como o seu reino é deste mundo, ele não participa dessa verdade e não tem condições de ouvir, aceitar o que Jesus diz. Só lhe resta perguntar: Que é a verdade?
Resumindo o diálogo-interrogatório entre Pilatos e Jesus, vemos que ele gira em torno desses três termos que aparecem cada qual três vezes nesses seis versículos: basileus – rei; basileia – reino e alētheia. E os três termos se caracterizam por uma dimensão bem específica: caracterizam e testemunham a presença divina que invade a realidade humana e oferece comunhão, nova vida para quem se deixa motivar e envolver por essa realidade. Essa oferta foge da compreensão de Pilatos, que representa todo o grupo de pessoas que não ouve esse testemunho da verdade.
3. Meditação
Redijo este estudo homilético em maio de 2020, portanto em plena pandemia do coronavírus. Já são dois meses de isolamento e distanciamento social. Algo que, como coletividade, em praticamente todo o mundo, ainda não se tinha vivenciado. E para muitas pessoas, especialmente sozinhas, idosas, morando em um pequeno apartamento, essa experiência está sendo muito marcante e sofrida. Por outro lado, também para aquelas famílias que vivem nas favelas, várias pessoas juntas em um pequeno espaço – como manter o isolamento e o distanciamento necessário para evitar o contágio? E pensando nas pessoas que trabalham nos hospitais, quanto desprendimento, energia e desgaste físico e emocional! E a dor das famílias que perdem um de seus entes queridos, sem poder se despedir dignamente numa cerimônia fúnebre. E quão chocantes são aquelas cenas de sepulturas abertas em série e sepultamentos em massa. Bastam esses exemplos.
Diante dessa realidade, muitas dúvidas e perguntas invadem nossas mentes. Por que Deus permite tamanho sofrimento? Onde está a causa desse grande mal? Por que ainda não se encontrou um meio, uma vacina, uma medicação que possa amenizar ou impedir a propagação da doença? Por que inclusive governantes e autoridades políticas minimizam a pandemia e pouco se importam que há tanta gente, especialmente pessoas idosas e mais fragilizadas, morrendo? Ou até procuram tirar vantagens com o sofrimento alheio?
Exponho todas essas colocações que são, sem dúvida do momento atual e, assim esperamos, não sejam mais a realidade em final de novembro, quando este é o texto de pregação no último domingo do ano eclesiástico. Mas provavelmente também aí haverá situações de sofrimento, de incertezas, de angústias que levantarão perguntas semelhantes: Por quê?
Diante de tal realidade sofrida, essa pergunta é tanto mais angustiante, considerando o tema desse texto bíblico: Cristo Rei de um reino que não é deste mundo. Como essa mensagem do Cristo que é Rei, que anuncia a verdade e que nos promete o reino de Deus pode ser ajuda e consolo para as pessoas que sofrem, que se angustiam com suas dúvidas e que têm dificuldades de entender e aceitar a realidade?
Quão paradoxal possa parecer, é justamente essa mensagem que muito está ajudando pessoas durante a pandemia enquanto elaboro este estudo. Saber que, apesar de e em meio a toda dor, Deus é o Senhor da vida e que, a partir de nosso batismo, nós fazemos parte do reino que não é deste mundo e onde Jesus é Rei ontem, hoje e sempre, nos dá a sustentação para continuar a viver. As múltiplas formas de transmitir a Palavra e manter a comunhão por meios virtuais que se encontraram nesse momento foram muito significativas. Com certeza atingiram muito mais pessoas por meio dessa modalidade do que teriam conseguido em encontros presenciais.
Por outro lado, em meio a todas as incertezas, sofrimento e angústias, essa pandemia também mostrou muitas manifestações de solidariedade, de apoio e de ajuda. Quantas máscaras foram confeccionadas e distribuídas! Quantas cestas básicas foram montadas e distribuídas entre as pessoas que, por não poderem trabalhar ou não terem trabalho, não tinham recursos para o seu sustento! E tantas pessoas foram “visitadas” virtualmente por um telefonema ou uma mensagem via celular. Foram muitos exemplos que antes da pandemia nem se podia imaginar serem possíveis. Sinais no espírito do Reino que não é deste mundo.
Portanto, mesmo que possa parecer paradoxal, essa mensagem do senhorio absoluto de Jesus Cristo é a verdadeira força e sustentação para todos nós. Saber-nos amparados pelo senhorio de Jesus, seguros nas mãos de Deus e guiados por seu santo Espírito nos dará a base firme para vivermos em meio e apesar de todas as dificuldades e sofrimentos.
E ainda um último aspecto que poderá ser relevante, especialmente naqueles contextos em que se preserva essa outra tradição do último domingo do ano eclesiástico ser o Domingo da Eternidade, ou seja, em que se recorda, à semelhança do dia 02 de novembro, das pessoas falecidas. A eternidade pertence a Deus. E assim como nós hoje estamos nas mãos de Deus, mesmo que às vezes não o percebamos ou temos dificuldades de aceitar, também na hora da morte não caímos das mãos de Deus. Também depois da morte fazemos parte do reino de Jesus, que não é deste mundo e que não terá fim.
4. Imagens para a prédica
Ainda sob os efeitos da realidade do presente momento em que elaboro este texto e considerando que possa haver situações semelhantes na época do Domingo Cristo Rei, uma imagem que poderá servir de introdução à pregação é a referência à situação de sofrimento, às contradições da sociedade, à dor causada por tudo isso.
Uma segunda imagem poderá ser a seguinte afirmação: a chegada de Jesus “destrói reinos”. Por um lado, o domínio das lideranças judaicas e suas expectativas messiânicas; por outro lado, o reino de Pilatos. “Destrói” no sentido de que a proposta de Jesus vai na direção contrária, porque o seu reino não é deste mundo.
Em combinação com essa referência ao reino, pode-se combinar a imagem da verdade: neste Jesus, a realidade divina, a transcendência invade a nossa realidade. Em Jesus, Deus mesmo vem a nós, oferece comunhão a quem a aceita e estabelece o seu reino em meio às contradições do mundo. Por isso Jesus Cristo é Rei e Senhor hoje e eternamente.
5. Subsídios litúrgicos
Considerando os aspectos das contradições e dos sofrimentos existentes na sociedade causados, não por último, pela falsa ação humana, seria oportuna a oração do Kyrie, pedindo pela misericórdia de Deus. Sugestão de hino: Pelas dores deste mundo, de Rodolfo Gaede Neto. Outros hinos relacionados com o tema seriam: Jesus Cristo é Rei e Senhor e Jesus Cristo reina em glória.
De forma semelhante, a oração de confissão de pecados poderia enfocar essas situações contraditórias da vida causadas pela ação humana, em geral, e, em particular, dos próprios membros da comunidade.
Aproveito ainda para fazer referências às diversas sugestões de Cristina Scherer constantes no v. 36.
Bibliografia
NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 26. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1985.
SCHMOLLER, Alfred. Handkonkordanz zum griechischen Neuen Testament. 13. ed. Stuttgart: Würtembergische Bibelanstalt, 1963.
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