Prédica: João 17.1-11
Leituras: Salmo 68.1-10,32-35 e 1 Pedro 4.12-14; 5.6-11
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 7º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 28/05/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
O testamento de Jesus
1. Introdução
O texto sugerido para a prédica no dia 28 de maio de 2017, juntamente com as respectivas leituras, refere-se ao domingo entre a Ascensão e a celebração de Pentecostes, tradicionalmente chamado Exaudi. O cenário possui características peculiares. Somos colocados entre o céu e a terra. Quem fala é o Jesus que enfrenta a paixão, portanto um Jesus muito “terreno”. Mas já a essas alturas algo de “céu” se percebe. Isso se exprime na união intrínseca entre Jesus e seu pai celeste. Um só e o mesmo espírito os une. Nesse sentido, o texto prepara a comemoração de Pentecostes. Mas vejamos isso mais de perto.
As leituras possuem cada qual uma mensagem própria. Existem paralelos, sim. O tema da glorificação de Deus ocorre tanto no Salmo 68 como em João 17. Algo semelhante vale para o trecho de 1 Pedro. O autor encoraja os fiéis a suportar o sofrimento na certeza da futura participação na glória de Deus. Mesmo assim, recomenda-se não forçar a construção de convergências. É preciso atentar para as particularidades. Assim também no que diz respeito ao texto em pauta.
2. Exegese
O capítulo 17 do Evangelho de João reproduz a assim chamada oração sacerdotal de Jesus, da qual faz parte o texto para a pregação. A designação provém de um teólogo luterano do século 16. Portanto ela não constitui o título original. Mas ela é procedente. Jesus intercede por seus seguidores, ou seja, por aqueles que o “pai lhe deu” (v. 6). Ele age e porta-se como “sacerdote”, mediador. A oração assemelha-se à bênção de despedida que na tradição bíblica era concedida pelos pais aos filhos que partiam de casa. Também Jesus se despede. Está de partida para voltar ao Pai celeste, de onde veio, deixando seus discípulos sozinhos num mundo hostil. Nesse exato momento, ele pede a Deus que guarde os fiéis, a fim de que sejam um “assim como ele é com o pai”. O tema dominante é a unidade, primeiro entre o Pai e o Filho e a seguir dos crentes entre si. Formula-o de modo marcante o v. 21: Jesus roga “[...] a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós”. Não é sem razão que essa oração se reveste de especial importância para o esforço ecumênico que procura resgatar a unidade da igreja.
No início, porém, está a prece pela glorificação mútua. Após constatar que tem glorificado Deus na terra, consumando a obra a ele confiada, Jesus pede que o Pai, por sua vez, o glorifique com a glória que tinha no princípio (v. 4/5). Que significa “glorificar” nesse contexto? Ora, significa não só o ato de enaltecer. Inclui a revelação de poder, de autoridade, de dignidade. Jesus, em sua atuação na terra, tem feito exatamente isto: Mostrou quem Deus é. Sua prática e seu discurso têm sido transparentes para o agir e falar do próprio Deus. Jesus tem manifestado o nome de Deus na terra (v. 6) e assim despertado conhecimento de Deus e fé. Esse nome se resume na palavra “Pai”. Jesus não revela qualquer Deus, e sim aquele que se porta como pai de seus filhos.
Isso, em primeiro lugar, com relação a Jesus, o Filho por excelência. Ele invoca Deus com precisamente esse termo. “Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti” (v. 1). Se Jesus mostrou quem é Deus, pede-se agora que Deus mostre quem é Jesus Cristo. O mundo deve saber que nele Deus mesmo se aproxima da criação. Pois o Pai e o Filho são um (10.30). E é nisso que está a vida eterna, a saber, em conhecer Deus e aquele que por ele foi enviado (v. 2). Deuses falsos conduzem à ruína e perdição. Por isso é essencial saber quem Deus de fato é. É o Deus que ama o mundo de tal maneira que por ele deu seu filho unigênito (3.16). De outros deuses é impossível esperar salvação.
Por isso mesmo Jesus roga em favor de seus discípulos (v. 9). Embora não sejam do mundo, vivem no mundo, ameaçados e sujeitos a tentações e perigos (v. 11). Eles não são propriedade de nada e de ninguém. Pertencem unicamente a Deus. São dele. Mas continuam vivendo sob as condições da humanidade ainda sujeita ao poder do pecado. Consequentemente, Jesus pede: “Pai santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que eles sejam um, assim como nós”. “Guardar” significa, nessa passagem, incluir na comunhão do Pai com o Filho. Ela protege a comunidade contra os males à espreita por todos os lados. Nesses termos Jesus formula algo semelhante a um testamento. O capítulo 17 do Evangelho de João é o depoimento da última vontade de Jesus antes de enfrentar a cruz e a morte.
É óbvio que, na unidade do Pai com o Filho e vice-versa, antecipa-se algo do futuro mundo de Deus. Trata-se do vislumbre de novidade na terra, da manifestação do espírito de Deus, de vida e salvação (v. 3). Aquele que em breve terá que sofrer o horror da cruz traz por essa oração esperança e consolo. Convida a reconhecer em Jesus Cristo a imagem de Deus, o Pai, que concede vida eterna à criatura.
3. Meditação
O testamento de Jesus porventura terá validade ainda hoje? A resposta é dificultada pela linguagem abstrata dessa oração, típica do quarto evangelho. Jesus quer que Deus guarde a comunidade na fé verdadeira e a mantenha na rota da verdade. Quer que permaneça unida com ele, assim como ele e o Filho são um. Justamente no século 21, há nada mais relevante. A globalização acarretou o pluralismo e com ele a confusão dos credos. O mercado oferece religião para todos os gostos. Religião acabou privatizada, entregue à preferência do freguês. Proliferam as igrejas, as seitas, os grupos religiosos. Há tantas que ninguém as pode contabilizar. Já não há certeza sobre o que podemos e devemos crer.
Aliás, devemos de fato crer em alguma coisa? Afinal de contas, quem é Deus? Eis uma das grandes incógnitas da atualidade. Não só na Europa e em países secularizados, a exemplo da China, também no Brasil se deve falar de um sumiço de Deus. Ele deixou de ser uma realidade para muitas pessoas. A humanidade aprendeu a viver sem ele, a resolver os problemas sem o recurso à religião, a gerenciar a vida em absoluta autonomia. Deus está simplesmente sobrando. Cresce o grupo dos que se declaram “sem religião”. Atuam também em nossas bandas propagandistas da descrença. Dizem: Não acredito em Deus e sou feliz. É verdade que a maioria não rompe com a religião. Prefere continuar filiada formalmente a uma das denominações. E, todavia, a dúvida avança. Está sendo veiculada pelos meios de comunicação e contagiou principalmente a classe intelectual.
Essa, porém, é apenas uma faceta da realidade. Ao lado dela existe outra, não menos preocupante. É o mundo do fanatismo religioso. Há pessoas que matam em nome de Deus, achando que praticam boas obras. Talvez o novo fervor religioso, que renasce com vigor, seja até mais perigoso do que o indiferentismo. Deus está sendo abusado para legitimar a violência e dar cobertura a barbáries incríveis. Não existe unanimidade no discurso sobre Deus. A multiplicidade de imagens provoca antes o conflito. Basta examinar o código ético atribuído a Deus nas diversas religiões para ter comprovada a incompatibilidade dos credos. De que é que Deus se agrada e o que ele abomina? Muitas pessoas afastam-se da religião, cansadas da ambiguidade do fenômeno e da fúria dos crentes. Religião pode ter efeitos altamente nefastos.
A oração sacerdotal de Jesus vincula o conhecimento de Deus a Jesus Cristo. Fé autêntica está condicionada à descoberta da unidade do Filho com o Pai e vice-versa. E é nessa fé que Jesus quer que sua comunidade seja preservada. Isso não soa bem em uma sociedade plural que considera escandalosos os exclusivismos religiosos. Com que direito proclamamos Jesus Cristo como único caminho à salvação? Como vamos relacionar-nos com os muçulmanos, para os quais o profeta Maomé é a encarnação de Deus, e somente ele? Esse é apenas um exemplo para o choque dos credos, cada qual com a reivindicação de ser a mediação da autêntica e única verdade. Maomé ou Jesus? Buda ou o Dalai Lama? Como sair do labirinto?
Para avançar, necessário se faz sepultar a ideia de que todas as religiões adoram o mesmo Deus. O problema está justamente na diversidade das divindades. Qual o Deus no qual nós cremos? É isso o que se deve clarear antes de qualquer coisa. Devemos prestação de contas sobre nosso discurso de Deus. Será um Deus tirano, brutal, vingativo, que castiga e odeia seus inimigos? O pai de Jesus Cristo é misericordioso. Perdoa os pecados e não persegue os incrédulos. É exatamente isso o que a invocação “pai” quer expressar. Erra quem a interpreta em sentido “machista”. “Pai” é antes sinônimo de carinho, proteção, cuidado, aliás, assim como também o termo “mãe”. É ali, nos braços dos pais, que a criança encontra proteção, segurança, amor. Sem tal experiência, as pessoas sofrem graves sequelas psíquicas. Jesus revela Deus como sendo “pai”, ensinando a invocá-lo “Pai Nosso”. Isso é puro evangelho. Jesus, ao despedir-se dos seus, roga que Deus preserve a comunidade nessa verdade. Existe outra?
Eis por que também é estúpido fazer coro com a descrença. A negação de Deus deixa um vácuo impossível de ser preenchido por um substitutivo. Sem Deus já não há o que segure as pessoas nas vicissitudes da vida e que as console na futilidade de todas as coisas. O ateísmo é cruel. Anima a aproveitar o que a vida tem de melhor a oferecer, mas “no vale da sombra da morte” (Sl 23.4) deixa as pessoas na mão. Está fixado no aquém e suas possibilidades sem nenhuma perspectiva além do horizonte. A fé cristã tem a coragem de afirmar que o despejo de Deus produz irrecuperável prejuízo. Dizia Sören Kierkegaard, grande teólogo luterano da Dinamarca, que a nobreza do ser humano consiste em ter necessidade de Deus. Distingue-se nisso do animal e da máquina. O testamento de Jesus em João 17 confirma essa verdade e convida-nos a ser incluídos na unidade do “Pai com o Filho”.
4. Imagens para a prédica
A igreja copta no Egito sofre brutal perseguição. Frequentemente tem sido vítima de atentados suicidas com terrível saldo de mortos. Uma das reações mais impressionantes foi um cartaz lembrando a passagem do Evangelho de Mateus com as palavras de Jesus dizendo: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem [...]” (Mt 5.44) Existem exemplos semelhantes em outros países. Deus reprova a retaliação. O Pai de Jesus Cristo é o Deus do amor, uma verdade infelizmente esquecida também por cristãos. Não raro cedem também eles à tentação da vingança. Mas não é isso o que o Pai ensinou ao Filho. Vingança é sempre traição aos propósitos de Deus. Dela jamais vão nascer paz e bem-estar. Eis o que deve ser uma ênfase cristã no diálogo inter-religioso. A glorificação de Deus no mundo não permite outra conclusão. Nem tudo é relativo.
Da mesma forma, a fé em Deus compromete com o respeito à dignidade do ser humano. Não existem pessoas de segunda categoria, que valham menos do que outras. Todo racismo é do diabo. O mesmo vale em relação à mulher. É vergonhosa a discriminação de que continua vítima em pleno século 21. Não se trata de uma simples questão social. Não! Um conceito de Deus está em jogo. Religião não é tão inocente como muitos pensam. A maneira de imaginar Deus tem incisivas consequências para o dia a dia das pessoas, para seu discurso e sua conduta. Por isso mesmo devemos, cada qual em particular e em conjunto, prestar contas de nossa “teologia”, uma exigência extensiva também aos ateus e demais “descrentes”. Também eles têm algo em que acreditam.
O testamento de Jesus coloca parâmetros para a fé. Deixa claro que todo discurso “teológico” deve passar pelo crivo de Jesus Cristo, de sua atuação e de seu destino. Certamente se trata de uma provocação. Mas vale a pena fazer o teste. Esse exclusivismo tem argumento. É a tese com que iniciamos o “diálogo inter-religioso”. A prédica deverá ser oportunidade para explicá-la. Deverá mostrar a unidade que há entre o Pai, o Filho e o Espírito, ou seja, entre Deus, Jesus Cristo e as manifestações em seu nome.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Existem crimes cometidos em nome de Deus. Isso não só por outros, tam- bém nós não nos podemos excluir. Achamos que a fé não pode tolerar isso e aquilo, fazendo com que reagimos com violência, furor e ódio. Ofendemos nossos irmãos e nossas irmãs, causamos prejuízo à sua vida, somos fracos no amor ao próximo. Dessa forma acumulamos culpa diante de Deus e de nossos semelhantes. Em vez de nos engajar em favor da paz, multiplicamos os conflitos em nosso entorno social. Senhor, nosso Deus. Perdoa-nos a dívida. Tem compaixão de nós.
Oração de coleta
Agradecemos pelo amor em evidência na intercessão de Jesus em favor de sua comunidade. Assusta-nos a força do mal no mundo. Estamos angustiados com a situação política e econômica no país, em nosso continente e nos demais países. Vida humana já não vale muito. Ansiamos por condições que nos permitam viver sem medo, em harmonia com nossos vizinhos e em segurança. Queremos um mundo sustentável de respeito à natureza e ao futuro das novas gerações. O que nos inspira a tal prece é o exemplo de Jesus, que intercedeu por nós. Preserva-nos a fé, a confiança e a coragem de resistir ao mal. Amém.
Intercessão
A intercessão de Jesus serve de inspiração à sua comunidade. Assim como ele intercedeu por outros, assim fazemos também nós. Rogamos a Deus que segure sua comunidade na fé e no amor para que seja sal da terra e luz do mundo. Não menos nos preocupa o mundo não cristão. Pedimos a Deus: queira ensinar a todos os povos a diferença entre fé verdadeira e fé falsa, entre o bom senso e a loucura, entre sabedoria e estupidez. As pessoas necessitam de orientação, de uma barra de sustentação, de um guia para indicar-lhes o caminho. Recorremos a Jesus Cristo, no qual reconhecemos a imagem de Deus Pai. Nele encontramos consolo nas angústias e proteção nos tormentos da vida. Nós lhe agradecemos por sua graça. Amém.
Bibliografia
FUNKE, Alex. Joh. 17.1(2-5)6-8. Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart, 5. Jahrgang, Bd. A, p. 214-221, 1982.
KÄSEMANN, Ernst. Jesu letzter Wille nach Johannes 17. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1967.
SCHULZ, Siegfried. Das Evangelium nach Johannes. Das Neue Testament Deutsch. Teilband 4. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972.
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