Prédica: João 1.43-51
Leituras: Isaías 49.1-7 e 2 Coríntios 4.3-6
Autoria: Carolina Bezerra de Souza
Data Litúrgica: Epifania de Nosso Senhor
Data da Pregação: 6 de janeiro de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Revelação e humanidade
1. Introdução
O tempo da Epifania fecha o ciclo do Natal no calendário litúrgico. Esse momento alude à revelação completa que Jesus traz e à compreensão que temos do papel de Jesus como Messias. Os três textos estão relacionados na construção dessa compreensão: os cristãos registraram parte das expectativas messiânicas de tradições veterotestamentárias, a visão ensinada por Paulo e as narrativas dentro de um plano teológico em busca de sentido diante dos conflitos que vivenciavam.
Isaías 49.1-7 é o segundo dos quatro cânticos do servo. A interpretação judaica é que o servo é uma metáfora para a nação de Israel. Na interpretação cristã mais comum, os poemas refletem as expectativas de um Messias, identificado como Jesus, que lideraria a nação de Israel, iluminando também os gentios para cumprir a vontade de Deus e assumindo a culpa que não era sua. Esse poema fala do chamado desse personagem por Deus de sua própria perspectiva, desde a sua geração, preparação e proteção para ser o caminho da glorificação de Deus, pela restauração de Israel e pela salvação do mundo todo.
Já o texto de 2 Coríntios 4.3-6 se encontra em meio às tensões entre o poder e a fraqueza do apostolado desenvolvidas na carta. No texto, mostra-se um Cristo que é a imagem de Deus, o Senhor de quem a comunidade cristã e, em especial os apóstolos, são servos por amor. Um Cristo que dá a conhecer a glória de Deus aos seres humanos.
Quanto ao texto da pregação, há muitas tradições e imagens, as quais esperamos deixar claras a seguir.
2. Exegese
O Evangelho de João foi composto no decorrer do séc. I, com fechamento nos últimos anos desse século. Suas etapas formativas incluem um conjunto narrativo de tradições orais e escritas e releituras teológicas dessas. A comunidade que dá origem ao texto vivenciara conflitos com judeus, romanos e, ainda, conflitos internos, além de estar em contato com grande diversidade cultural. Porém tanto as gêneses do texto como da comunidade são objetos de extensos debates acadêmicos. Por isso, frente a esse quadro complexo, focaremos no objetivo maior desse evangelho: diante dos conflitos que vivia, fazer uma elaboração teológica, mostrando um Jesus que ultrapassa as tradicionais expectativas judaicas de Messias, pois tinha origem e destino celeste.
Essa perícope está no início do chamado livro dos sinais, constando da semana inaugural do ministério de Jesus. Todo o trecho de 1.19-42 se passa em Betânia, logo antes de Jesus partir para a Galileia. Já o nosso texto deixa dúvidas se já partiram e estão em Betsaida, mas reforça o afastamento do grupo de João. Nossa cena finaliza o chamado dos discípulos antes do primeiro sinal em 2.1-11. Por isso está em estreita relação com a anterior, o chamado de Pedro (1.40-42). As duas perícopes apresentam estruturas paralelas, ou em espiral, já que formam um arranjo de repetição com aprofundamento.
Esse aprofundamento se apresenta nos diálogos, que são amplamente utilizados em João, com a função de mostrar aspectos doutrinais. Muitas das principais cenas são diálogos (veja 2.23-3,20; 4.1-30; 6.25-59; 7-8; 10.22-40; 11.17-44; 13.1-16,33; 20.1-18; 21.15-23). O desenrolar dos diálogos é baseado numa percepção errada ou incompleta do que Jesus diz e numa correção proposta por ele.
No nosso caso, o aprofundamento se dá também nas menções aos títulos que Jesus recebe. Há uma gradação das menções a títulos cristológicos em todo o trecho 1.29-51. São eles: Cordeiro de Deus (1.29,36), Filho de Deus (1.34,49), Messias (1.41 – aqui o termo hebraico apresentado também é traduzido para leitores de língua grega: o Cristo), Filho de José (1.45 – considerado por alguns como título de origem samaritana), Rei de Israel (1.49), Filho do Homem (1.51). A estrutura do trecho coloca o título “Filho do Homem” acima dos demais.
Chama a atenção o uso dos verbos procurar (v. 38) e encontrar (v. 41,43,45), como se André e Filipe respondessem à pergunta do v. 38. Enquanto André diz que o ungido fora encontrado, Filipe diz que Jesus é aquele que cumpre as diversas tradições das Escrituras. A pergunta de Natanael se dá porque Nazaré e Galileia não são os lugares de onde se esperava o surgimento do Messias. Apesar dessa forma de desdém, Natanael aceita o convite de Filipe para ir e verificar (no mesmo formato do convite de Jesus aos discípulos, em 1.39). O encontro entre Jesus e Natanael é marcado pelo diálogo iniciado pelo próprio Jesus, que, assim como a Sabedoria no Antigo Testamento, se antecipa aos que o procuram (veja nas cenas anteriores a mesma característica) através de um elogio: verdadeiramente um israelita em que não há dolo/falsidade (em contraste com sacerdotes e levitas que questionaram João Batista e com aqueles que entregariam Jesus em 18.30).
Esse diálogo é bem mais extenso do que o da cena paralela anterior. Há aqui pontos importantes:
1) A explicação do elogio: Jesus tinha um conhecimento sobrenatural, e isso o confirma como Messias que sabe todas as coisas (veja em 4.25 a mesma característica também relacionada ao povo samaritano). A expressão “embaixo da figueira” referia-se simbolicamente ao conhecimento da lei e à fidelidade a Deus (Os 9.10), que seriam capazes de mostrar a felicidade e a desgraça. Ao mesmo tempo, a expressão aponta para o reconhecimento de Jesus como aquele que cumpre a vontade de Deus para o seu povo e o coloca num bom lugar (Mq 4.1-4; Zc 3.7-10).
2) A confissão de Natanael: O conhecimento religioso prepara Natanael para o reconhecimento do Messias a partir da própria experiência. E ele proclama Jesus da mais alta forma que podia: é o Filho de Deus e o Rei de Israel. Um judeu sem falsidade reconheceria Jesus como rei, e não César (19.15). As duas expressões mostram a identificação de Jesus como o Messias davídico que reuniria Israel sob seu comando.
3) A correção de Jesus: Jesus confronta o reconhecimento dizendo que muito mais que o simples conhecimento, Natanael e Filipe serão capazes de ver a revelação de Deus por meio de Jesus. Sob a expressão solene de autoridade do duplo amém, ele usa para si o título de Filho do Homem (Dn 7.13; Sl 8; Sl 146; Sl 80), apresentado aqui, pela primeira vez em João, associado aos céus abertos e ao trânsito de seres celestiais (ao recuperar a bela imagem da escada na tradição de Jacó em Gn 28.12, mostra uma revelação divina com bênção extensa). O título não se refere à humanidade de Jesus. Ele é um símbolo de vitória do povo de Deus. Não é um termo simples, mas apresenta uma evolução na tradição pré e pós-pascal de referência a seres humanos, juízes messiânicos, reis, anjos e, por fim, a uma figura celeste preexistente com Deus que seria vista pelos inimigos nos tempos finais e que justificaria a comunidade de discípulos, forma adotada pelo Evangelho de João em sua alta cristologia.
Percebe-se que esse diálogo é extenso para esse início de evangelho, mostrando que a figura de Natanael tem destaque. Ele representa a abertura, apesar da dúvida, para a compreensão de Jesus e, com isso, para a realização da vontade de Deus para seu povo.
3. Meditação
Nosso cotidiano agora inclui um mundo digital que media muitas das relações e dá acesso instantâneo a uma infinidade de informações, opiniões, notícias que nos influenciam. Tornou-se importante, neste mundo digital, deixar nossa marca, que sejamos vistos como pessoas que compartilham muitas experiências de sucesso e que têm opiniões sobre os mais diversos assuntos. A velocidade de propagação das informações é a mesma com que as comoções por elas geradas são substituídas por outras provenientes de novas informações. Assim, as reações a determinado fato podem ser avassaladoras, mas também parecem perder a importância rapidamente, embora dificilmente sejam completamente esquecidas, já que são acessíveis a qualquer busca, mesmo que tenham consequências que não desvanecem.
Nesse contexto, tendemos a nos importar pouco com as pessoas próximas e, dificilmente, conseguimos nos deter em um assunto para ter compreensão profunda e contínua sobre ele. Será que temos conseguido estar disponíveis para a comunidade cristã e nos deter em aprofundar nossa fé e conhecimento de Jesus?
Nesse sentido, o exemplo do seguimento de Natanael a Jesus evoca algumas coisas.
1) João indicou Jesus a André, que o seguiu, e encontrou seu irmão, levando-o ao Messias. Jesus encontrou Filipe, que encontrou Natanael e o levou ao Messias. Muitas vezes, a condução ao reconhecimento de Jesus e à compreensão do seu papel depende da mediação de alguém. Embora, hoje, seja possível a qualquer um, de forma independente, o acesso à informação, as redes de relações reais são importantes para as experiências de fé e são um valor bíblico.
2) O conhecimento deve preparar para uma compreensão mais profunda e não ser uma barreira amparada sobre qualquer forma de superioridade. Natanael conhecia as Escrituras e a lei: não se esperava o Messias da região rural e próxima aos gentios como a Galileia. Diante da palavra de Filipe, Natanael fica em dúvida e a expressa, mas não deixa de estar aberto ao convite que vem em resposta à sua dúvida: vem e vê. Essa abertura à nova experiência é que o levou a ter maior compreensão e ter acesso à revelação de Deus em Jesus. Estamos abertos a experiências que possam nos trazer uma melhor compreensão do reino de Deus? Temos nos negado ao serviço, à proclamação ou à luta por justiça (social ou relacional) e por igualdade (de gênero, de classe, etnia) por achar que somos mais conhecedores ou melhores do que alguém?
3) Jesus é mais do que aquilo que sabemos dele e a vivência relacional da fé tem sempre algo a nos ensinar. Por melhor formado e fiel que Natanael fosse, sem falsidade, digno do descanso da promessa de Deus, e por mais que reconhecesse Jesus, havia alguma dimensão do papel messiânico que ele não conhecia e que foi revelada pelo próprio Jesus. Mas a compreensão que Natanael tem de Jesus não se completou nesse momento, pois Natanael tornou-se um discípulo de Jesus, seguindo-o, sendo testemunha e aprendendo. A partir daí Natanael pôde ver a transformação no mundo pela libertação que Jesus trazia em seus milagres, curas e ensinamentos. Certamente, as experiências que Natanael teve daí por diante não foram descoladas das necessidades das pessoas e da realidade impostas a elas pelos sistemas de governo romano. Ele acompanhou Jesus no confronto com esses sistemas, defendendo novas estruturas relacionais do reino de Deus. Da mesma forma, a caminhada cristã começa no reconhecimento de Jesus e continua no dia a dia comunitário em ação para continuar implantando o reino de Deus.
4. Imagens para a prédica
O tema da Epifania do Senhor tem associado representação da visita dos reis do Oriente junto à entrada da estrela, simbolizando a revelação de Deus aos gentios. Há outro enfoque sobre a revelação no texto da pregação.
A dificuldade maior de tratar textos do Evangelho de João é que costumam ser interpretados descolados da realidade vivencial do surgimento do texto e da nossa realidade de vida com uma espiritualidade etérea. Nosso texto mostra que a revelação para Natanael envolveu coisas muito humanas: seus conhecimentos, a esperança do seu povo, a experiência da condução e do encontro pessoal com o Cristo e o discipulado consequente disso. Por isso uma abordagem pode ser mostrar cristãos que conduziram a realizações de bem para a humanidade, por exemplo, pastor Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá, irmã Dorothy Stang, Dietrich Bonhoeffer.
Segue um poema para inspiração.
De dentro da geometria
Deus me olha e me causa terror.
Faz descer sobre mim o íncubo hemiplégico.
Eu chamo por minha mãe,
me escondo atrás da porta,
onde meu pai pendura a camisa suja,
bebo água doce e falo as palavras das rezas.
Mas há outro modo:
se vejo que Ele me espreita,
[...]
Penso num homem saindo de madrugada pra adorar o Santíssimo,
penso em fumo de rolo, em apito, em mulher da roça
com o balaio de pequi, fruta feita de cheiro e amarelo.
Quando Ele dá fé, já estou no colo d’Ele,
pego Sua barba branca,
Ele joga pra mim a bola do mundo,
eu jogo pra Ele.
(Adélia Prado)
5. Subsídios litúrgicos
Oração comunitária
Tu, que estás acima de nós.
Tu, que és um dentro de nós.
Tu, que és também em nós.
Que todos possam te ver – também em mim.
Que eu possa preparar o caminho para ti.
Que eu possa agradecer por tudo o que me tem acontecido.
Que eu não esqueça jamais das necessidades dos outros.
Conserva-me em teu amor, assim como tu queres que os outros te conservem no meu.
Que tudo em meu ser se transforme em teu louvor!
Que eu jamais chegue a desesperar!
Pois eu estou em tuas mãos e toda a força e bondade estão em ti.
Dá-me espírito puro – para que eu te possa ver!
Dá-me um espírito humilde – para que eu te possa ouvir!
Dá-me um espírito amoroso – para que eu te possa servir!
Dá-me um espírito fiel – para que eu possa permanecer em ti!
(Dag Hammarskjöld)
Confissão de pecados
Confesso-te, querido Deus, Pai e Mãe, às vezes nossos olhos não são mansos, não veem os jardins, as fontes, as crianças, a lua, o pôr do sol, os gestos de ternura, as mãos solidárias... Pai de bondade, acolhe-nos quando não acolhemos; e oferece teu colo mesmo quando nos fechamos aos nossos irmãos e irmãs. Porque só tu és amor e compaixão. (Paulo Roberto Rodrigues).
Hino
Que estou fazendo se sou cristão? (Livro de Canto da IECLB, 566)
Bibliografia
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000. (Comentário bíblico latino-americano).
BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1983.
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