Prédica: Jeremias 20.7-13
Leituras: Mateus 10.24-39 e Romanos 6.1b-11
Autoria: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 3° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21062020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV
Sofrimento em decorrência da fidelidade a Deus
1. Introdução
Na série Proclamar Libertação já foram publicados três auxílios homiléticos sobre o texto (N. KIRST, v. VIII, 1982; S. B. GENZ, v. 21, 1995; e J. MORAES, v. 38, 2013). Em 1982, PL ainda seguia a série de perícopes da Alemanha, que localiza o nosso texto na época da Paixão (Domingo Oculi), sem dúvida para mostrar a analogia entre o sofrimento do homem de Deus Jeremias e do filho de Deus Jesus. Os dois estudos mais recentes localizam o texto no período pós-Pentecostes, de acordo com o Lecionário Comum, cujo Próprio 7 (12º Domingo do Tempo Comum) tem por tema as adversidades decorrentes do seguimento a Jesus.
No texto do evangelho, Jesus admoesta seus discípulos a não temer os que matam o corpo (Mt 10.28), pois Cristo não os abandonará, e aqueles que perdem sua vida por minha causa (Mt 10.39), de fato, a encontram. Assim como o profeta Jeremias teve que sofrer por causa de sua fidelidade a Deus, também os discípulos de Cristo podem ser perseguidos por causa de seu testemunho. Como o dia 24 de junho é dia de São João Batista, parece-me bastante plausível incluir em nossa meditação o sofrimento e martírio deste último profeta do Antigo Testamento. Seria um tanto forçado enquadrar também a epístola no tema do domingo.
2. Exegese
Nelson Kirst faz uma ótima análise exegética do texto, de modo que posso ater-me a alguns aspectos. O texto é a última e mais marcante das “confissões” de Jeremias, nas quais o profeta lamenta o sofrimento que sua missão lhe causa e acusa o próprio Deus como responsável último pelas dores sofridas em decorrência de seu ministério. O lamento segue a estrutura de um salmo individual de lamentação: descrição da situação de aflição (v. 7-10), expressão de confiança e prece por vingança (v. 11s), convocação ao louvor (v. 13).
V. 7: Tu me seduziste, SENHOR, e eu me deixei seduzir; tu me agarraste e me dominaste. Sou motivo de riso todo dia, todos zombam de mim. Os termos fortes beiram a blasfêmia (KIRST, 1982, p. 146). O profeta acusa Deus de ter-se aproveitado de sua ingenuidade, como uma moça que se deixa encantar com as promessas de um pretendente (cf. Êx 22.15). Ao contrário de seu ancestral Jacó (Gn 32.25s), na luta corporal com Deus o profeta é totalmente subjugado. Até aqui a linguagem metafórica. Seguem, na segunda parte do verso, os fatos: o profeta é motivo de chacota por causa de sua insólita mensagem.
V. 8: Pois, sempre que falo, preciso berrar; tenho que gritar: “Violência! Opressão!” Porque a palavra do SENHOR se me tornou vergonha e zombaria todo dia! Assim como o profeta anunciou a violência e opressão de seu tempo contra os mais fracos da sociedade (Jr 5.26-28; 7.5s), ele próprio se tornou, agora, vítima de violência (cf. 20.2).
V. 9: Quando pensava: “Não quero mais lembrá-la! Não mais falarei em seu nome!”, havia em meu coração como um fogo a queimar, encerrado em meus ossos. Tentava suportá-lo, mas não conseguia. As tentativas de esquecer a palavra de Deus e afastar-se da missão não vingaram, porque um intenso e irresistível ardor interno constrangia o profeta a continuar anunciando o juízo de Deus.
V. 10: Sim, ouvia a calúnia de muitos: “Terror de todos os lados! Denunciai-o! Vamos denunciá-lo!” Todos os meus amigos esperam por minha queda: “Talvez ele se deixe enganar, então o dominaremos e nos vingaremos dele!” O cerne da mensagem profética de juízo – terror de todos os lados (Jr 20.3s) – é citado ironicamente pelos adversários de Jeremias, que não creem que Deus possa castigar gente do próprio povo escolhido. Além de ser caluniado e enganado por pessoas amigas, o profeta também sofre perseguição e atentados contra sua vida, inclusive por membros da própria família (cf. Jr 11.18s).
V. 11-12: Mas o SENHOR está comigo qual poderoso guerreiro; por isso meus perseguidores tropeçarão e não prevalecerão. Ficarão muito envergonhados por não obterem êxito, uma desonra eterna, inesquecível. Mas, ó SENHOR dos Exércitos, tu que sondas o justo e que vês os rins e o coração! Verei tua vingança contra eles, pois a ti confiei minha causa! Os versículos unem dois elementos do salmo de lamentação: a expressão de confiança e a súplica por vingança contra os inimigos. Quando uma pessoa se dirige em oração a Deus, existe obviamente a esperança de ser ouvida. Essa confiança pode ser expressada trazendo exemplos de experiências de auxílio recebidas no passado ou por reflexões sobre a essência divina – em nosso caso, a onisciência e justiça divinas. Ao entregar a vingança a Deus, o orante desiste dela.
V. 13: Cantai ao SENHOR, louvai ao SENHOR! Porque ele livrou a vida do pobre da mão dos malvados. A conclamação ao louvor não mais se dirige a Deus, mas à comunidade, que é convidada a juntar-se ao suplicante em seu louvor após este ter recebido a ajuda desejada. O versículo pressupõe um momento posterior ao da aflição.
Apesar de o texto fazer uso de linguagem sálmica padronizada, ainda é possível perceber a experiência singular do profeta. Não é por acaso que o texto foi colocado após o incidente com o sacerdote Urias, que levou o profeta ao tronco (Jr 20.1-6). Jeremias é conhecido como o profeta que sofre por causa de sua missão de anunciar um Deus justo que não deixará impune nem seu próprio povo. Isso produz inimizade e conflito. A futura perseguição do profeta já se encontra no relato de sua vocação: pelejarão contra ti, mas não prevalecerão (1.19). Ao mesmo tempo, no entanto, Deus promete sua presença auxiliadora: Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar! (1.8).
3. Meditação
1. O seguimento de Cristo não é uma marcha triunfal pela vida rumo à eternidade. Ainda vivemos sob o signo da cruz. E a cruz não é mero adereço em nossas igrejas, peitos e pescoços. Ela sinaliza que fidelidade à Palavra pode levar ao sofrimento. O texto retrata como essa fidelidade à Palavra trouxe sofrimento e perseguição ao profeta Jeremias. Poucas comunidades ainda conhecem as histórias bíblicas. Por isso é legítimo narrar um pouco da vida sofrida desse profeta: foi perseguido (36.26), sofreu um atentado (11.18ss), foi processado (26.7ss), golpeado e colocado no tronco (20.2), foi açoitado e preso (37.15), lançado numa cisterna (37.6) e, por fim, sequestrado e levado ao Egito contra sua vontade (43.5ss). Em toda a sua trajetória foi vítima de zombaria, ou seja, de tentativas de destruição moral. Isso porque sua mensagem não agradava a seus ouvintes. O profeta não falava o que seus ouvintes queriam ouvir. Suas profecias não eram um show religioso que levava seu auditório ao delírio. Suas palavras eram duras, que não temiam mostrar a sujeira do sistema político-religioso existente e apontar para as trágicas consequências.
A fidelidade à Palavra também teve consequências para a vida de João Batista. Sua crítica ao tetrarca Herodes e à vida devassa da corte levou-o à prisão e à morte (Mc 6.14ss). Por permanecer fiel à sua missão (cf. Mt 4.1ss), também Jesus foi preso e levado à cruz pelas autoridades religiosas e políticas de sua época. Conforme Mateus 10.24-39 – o evangelho do dia –, Jesus não veio para trazer a paz, mas a espada (v. 34), ou seja, não veio com um discurso que tranquiliza as consciências, mas veio trazer a verdade que dilacera o manto que encobre a sujeira. A fidelidade a essa Verdade – que é Cristo – pode levar à perseguição de seus discípulos. A Verdade pode levar a tensões e conflitos e dor, pois ela não admite alternativas nem evasivas.
2. Frequentemente se traça um paralelo entre o sofrimento do profeta Jeremias e o de profetas modernos como Martin Luther King, Mahatma Gandhi ou Oscar Romero. Também é possível ver analogias entre o sofrimento profético motivado pela fidelidade à missão e os problemas e dores que pregadores, pastores ou pastoras enfrentam em suas próprias comunidades. Não faltam relatos em que ministros da Palavra são perseguidos por causa de seu engajamento político ou por expor realidades desagradáveis dentro da própria comunidade. Esse conflito entre “profeta” e o poder constituído ou o pensamento da cultura dominante – o “senso comum” – de uma época perpassa a história da igreja e da própria humanidade (p. ex., Galileo Galilei). Sem dúvida, poderíamos citar diversos casos de obreiros ou ministros de igrejas que atualmente sentem ou já sentiram a dura realidade de calúnia, desprezo, ameaça e abandono – inclusive por parte de pessoas próximas – causada por seu posicionamento profético.
3. Nem todas as pessoas aguentam as tensões oriundas do ministério pastoral e desistem. Há colegas que ficam doentes e precisam afastar-se de seu ministério, pelo menos temporariamente. Também nesses momentos, podemos derramar todas as nossas dores diante de Deus. Jeremias e Jó nos ensinam que podemos – ou devemos? – brigar com Deus. Podemos queixar-nos dele. Podemos acusá-lo. Não precisamos ser politicamente corretos. Podemos até expressar nosso desejo de vingança. Pois, ao delegarmos a vingança a Deus, desistimos de realizá-la pelas próprias mãos.
4. A confiança de que Deus está conosco nos sustenta, fortalece e nos anima a continuar. Essa confiança se renova na oração e na solidariedade. Mas no “Deus conosco” ou “Deus comigo” residem, no mínimo, duas tentações. A primeira é a da autovitimização. Nem todo problema ou sofrimento é causado por nossa atuação profética. Há problemas que surgem por outros motivos. Nesses casos, certamente podemos dirigir-nos a Deus, mas não seria legítimo jogar a culpa nos “outros”. Nem sempre os outros são os culpados. Também nós podemos ter nossa porção de culpa. Em segundo lugar, há uma grande diferença quando pessoas perseguidas e oprimidas afirmarem: “Apesar de tudo Deus está conosco!” e quando os soldados da tropa de elite do nacional-socialismo de Hitler inscrevem nas fivelas de seus cintos: “Deus está conosco!”, ou quando a casa da moeda estadunidense imprime nas cédulas de um dólar o lema “In God we trust”. Também os poderosos costumam dizer “Deus está conosco!” Também os profetas de salvação que, na época de Jeremias, anunciavam a “paz”, fortalecendo, assim, as mãos dos perversos (Jr 23.14), diziam-se mensageiros de Deus e confiavam em sua presença. Aqui há necessidade de discernir os espíritos.
4. Imagens para a prédica
Se a prédica iniciar com informações sobre a vida sofrida do profeta, pode--se passar para a constatação de que uma vida de fé autêntica nem sempre é um mar de rosas. Há altos e baixos. Há tensões e conflitos. Assim foi com João Batista e com Jesus. Também é assim na vida de obreiros eclesiásticos que, em sua fidelidade à vocação e à Palavra, às vezes, necessitam falar coisas que não agradam. Pode-se fazer isso sem soberba e sem dedo em riste. Afinal, o pastor ou a pastora tem a tarefa de “perturbar os confortados”, mas também de “confortar os perturbados” (MORAES, 2013, p. 221). Talvez a imagem da toalha bonita que cobre a louça suja seja adequada para uma abordagem cautelosa. (A imagem é de autoria de Milton Schwantes, que a utilizou numa prédica de leitura no extinto Distrito Uruguai sobre o texto do evangelho: “eu vim trazer a paz e não a espada!”) A sábia dona de casa, ao receber a visita inesperada da vizinha antes que tivesse tido tempo de lavar a louça suja do almoço, joga uma bela toalha de mesa sobre a pia com a louça suja para escondê-la da visita. A bela toalha é equiparada ao discurso de paz e tranquilidade, que procura agradar as pessoas, mas, de fato, esconde a sujeira. A “espada” do profeta e de Jesus é aquela que rasga a bela fachada e coloca a descoberto a sujeira humana. Isso significa tensão e pode redundar em conflito (cf. Mt 10.34-36). Não hão de faltar exemplos de profetas e pregadores da história da igreja que foram perseguidos por des-velarem a sujeira da igreja e da sociedade.
Essa foi a parte do “perturbar os confortados”. Quanto ao “confortar os perturbados”, desprezados, perseguidos e caluniados, podemos remeter ao simbolismo da cruz, que para nós não é apenas instrumento de morte, mas, por causa de Jesus, também é fundamento de nova vida e paz com Deus. Tenho uma pequena “cruz de mão” confeccionada por cristãos palestinos da madeira de velhas oliveiras; ela só tem 2x3 cm e cabe na mão fechada; suas hastes arredondadas, sem quinas nem arestas, se encaixam perfeitamente entre os dedos da mão fechada. Essa cruz é fácil de levar no bolso da calça ou em qualquer bolsa. Ela não é um talismã, mas segurá-la em momentos de dor e angústia pode ser confortante por lembrar aquele que por nós sofreu.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia
Querido Deus, tu queres que encontremos descanso e paz em meio às agruras e adversidades de nossa vida. Dá que nosso corpo se recupere, que nosso espírito se renove e que nossa alma se fortaleça na promessa de tua presença! Permite que tua Palavra nos conforte e oriente! Amém!
Confissão de fé
Cremos que Deus caminha conosco e nos protege. Cremos que sua força e bondade são maiores do que nossa fraqueza e angústia. Cremos que Jesus Cristo está vivo entre nós, sempre disposto a consolar-nos e orientar-nos. Estamos comprometidos com ele e com sua causa e com a felicidade de todas as pessoas. Cremos que o Espírito Santo age em nós, cremos que é força, sustento e coragem que nos possibilitam buscar a integridade de caráter, uma vida de paz e justiça e a fraternidade humana, tendo o amor por distintivo. Assim Deus nos ajude!
Intercessões
Pelas pessoas que sofrem discriminação, desprezo, calúnia (migrantes, negros, indígenas); pelas pessoas que passam por momentos de dúvida quanto à sua fé; pelas pessoas que se sentem abandonadas por Deus e por amigos e amigas; pelas pessoas que sofrem perseguição por causa de suas posições políticas e religiosas.
Bibliografia
GENZ, Sílvia Beatrice. 5º Domingo após Pentecostes: Jeremias 20.7-13. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; IEPG, 1995. v. 21, p. 181-185.
KIRST, Nelson. Domingo Oculi: Jeremias 20.7-13. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. VIII, p. 145-150.
MORAES, Jilton. 2º Domingo após Pentecostes: Jeremias 20.7-13. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2013. v. 38, p. 219-224.
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