Prédica: Jeremias 15.15-21
Leituras: Mateus 16.21-28 e Romanos 12.9-21
Autoria: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: 13º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/09/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
1. Introdução
Alguém tem dúvidas se a vida cristã pode ser vivida sem conflitos e dúvidas? Alguém suspeita que possa haver um relacionamento vivo com Deus sem que a vida pessoal dessa pessoa seja profundamente afetada por crises e sentimentos de ambiguidade? Se responderem sim a essas perguntas, então o texto de Jeremias 15.15-21 é leitura e meditação recomendadas, um verdadeiro antídoto. Jeremias, o profeta cuja vida e dilemas pessoais talvez tenham sido os mais evidenciados na Bíblia, reflete nesse texto o âmago de sua crise em diálogo com Deus.
À luz dos textos auxiliares, nosso texto é altamente valorizado, especialmente por Mateus 16.21-28. Nele, Jesus discute com seus discípulos sobre o impacto da perspectiva dos fatos que sucederão sua viagem a Jerusalém. Em diálogo com Pedro, Jesus revela total sintonia com os planos de Deus e censura a atitude daquele, acusando-o de “pensar como ser humano”. Jesus desafia Pedro a esquecer seus interesses sob o risco de perder a vida. Mateus ilumina o drama de Jeremias com o exemplo de Jesus, aquele que perfeitamente viveu sua humanidade em obediência ao chamado de Deus e sofreu humildemente as ambiguidades de seu sacerdócio.
Romanos 12.9-21 dialoga com Jeremias na dimensão da postura de juízo de que todo profeta era portador, mas que em Jeremias se torna um traço emocional marcante. Enquanto Jeremias questionava Deus por sua manifestação tardia de juízo, Paulo alerta que o mal que criticamos e combatemos pode contaminar nosso testemunho, nosso olhar. Alerta que o mal só pode ser vencido pelo bem e que o exercício da misericórdia e da paz é um contraponto importante na vida de toda pessoa que sofre ou é perseguida por sua fé.
2. Exegese
a) Os dois auxílios exegéticos de Ronald Baesler (PL XVIII, p. 222) e Valdemar Schultz (PL XXX, p. 55) abordam sobejamente nosso texto. O colega Schultz detém-se de maneira exemplar sobre o contexto histórico e literário de nossa perícope. Destaco somente alguns pontos essenciais.
Jeremias 15.15-21 insere-se no bloco maior dos capítulos 1-24, que tem por tema o juízo contra Judá e Jerusalém. Desse bloco, os capítulos 11-20 centram-se no compromisso do profeta com o anúncio do juízo de Deus. Neles, encontram-se as cinco confissões: 11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-20. A segunda confissão inclui os v. 10-14 como parte da perícope.
Nesses textos, a característica mais óbvia é que Jeremias fala em seu próprio nome. Os oráculos não se referem a Deus, mas ao profeta. As confissões mostram que a vocação do profeta é uma vocação para o conflito, conflito entre o profeta e o mundo reinante e conflito entre o profeta e o Deus que chamou o profeta.
Supõe-se que Jeremias tenha vivido entre 627 e 580 a.C. Ele atuou no tempo dos reinados de Josias (640-609), de Jeoaquim (608-598) e Zedequias (597- 587), um período político bastante conturbado. Sob o avanço do Império Babilônico, Israel debate-se em busca de sua preservação, fazendo alianças com o Egito. Jeremias manifesta-se independente de interesses de sacerdotes e reis. É por isso difamado e perseguido constantemente. Jeremias foi testemunha viva de um dos momentos mais angustiantes e sangrentos da história do povo de Deus, que teve inúmeras consequências políticas e religiosas para os períodos seguintes. Esse era o espaço primordial do profeta. Diante do perigo, da crise, aparecia a voz profética com sentido político e religioso. Nesse caso, Jeremias articulou-se num tempo de incertezas e falta de um projeto comum. O povo estava dividido entre diferentes interesses: apoiar os egípcios, favorecer os babilônicos, fortalecer o poder do rei ou opor-se ao rei.
b) No início do capítulo (v. 1-9), Deus anuncia os detalhes do castigo que Judá, e especialmente Jerusalém, receberão como fruto de sua desobediência. O tema é pesado e cheio de detalhes pavorosos. Deus não está disposto a reconsiderar. Nem se Moisés e Samuel fossem os interlocutores do pedido de clemência Deus os ouviria.
O diálogo de Jeremias começa no v. 10. Há uma ruptura no fluxo do texto, pois Jeremias interrompe o tema da condenação para chamar a atenção de sua condição de profeta. O tom da fala é de alguém que se sente desconsiderado no processo, alguém cujos sentimentos não são reconhecidos. Jeremias reclama do fardo que carrega. Compara sua reputação com a de devedores e pede que a condenação se cumpra logo, para que sinta alívio dessa condição profética ambígua: anunciar castigo e não ver sua palavra cumprida. Coloca inclusive sua fidelidade a Deus à prova. Deus responde que cumprirá em breve o que prometeu por meio dele.
c) Nossa perícope inicia com a retomada do tema da vingança em função de sua condição de insultado. Jeremias parece transformar a causa de Deus numa causa pessoal. “Vinga-me dos meus perseguidores”, diz ele (v. 15). Há uma clara discordância de Jeremias em relação à demora de Deus em aplicar o castigo. Ele parece colocar sua condição acima do interesse de Deus. Mesmo assim, reconhece que é por amor que assume sua condição de profeta.
O v. 16 é uma verdadeira declaração de fé e entrega. As palavras de Deus são alimento para o faminto. Alimento que dá satisfação e alegria. Apesar de sua fragilidade emocional, Jeremias não esquece sua identificação com a vocação de Deus e o quanto seu nome está ligado ao Senhor dos Exércitos; ele é o profeta de Deus.
Na sequência (v. 17), Jeremias retoma suas lamentações alegando que não se reúne com pessoas alegres, ou seja, ele não trai seu espírito pesaroso e crítico buscando momentos de descontração e alegria. Ele acha importante ser coerente com seu papel. Se ele anuncia desgraça ao povo, não pode ser flagrado confraternizando com alguém. Ele assume essa posição difícil e solitária. Ele é possuidor de mensagens terríveis e não se consegue desvincular emocionalmente delas.
Enfim, no v.18, Jeremias toca no tema central de sua fala e fá-lo em tom questionador. Por que ele sofre uma dor contínua, sem alívio nem cura? Lança suspeitas sobre a fidelidade de Deus em relação a ele, usando a metáfora poética de um ribeiro cujas águas podem escassear. É uma forma ousada de referir-se a Deus, mas Jeremias se sente impelido a desabafar por sua dor.
A resposta vem no v. 19, quando Deus se refere ao tema do arrependimento. Está implícito que Jeremias passou do limite em sua postura como profeta. Ele deve retornar de uma posição inadequada. Há uma perda, um deslocamento da posição certa diante de Deus. O pecado fê-lo perder essa posição. O arrependimento possibilitaria que Deus o colocasse de novo nessa posição. Que pecado, que deslocamento seria esse?
No v. 20, Deus já vê Jeremias em sua posição adequada. Ele continuará se colocando contra o povo como um muro. Só que agora com força, como um muro intransponível. Da posição adequada faz parte receber forças para suportar o desgaste, a tensão. A condição é colocar-se como voz de Deus e não falar por si coisas inúteis. Ao falar o que Deus pede, o povo vai voltar-se a Deus, mas nem isso deve mudar seu tom e sua postura. Ele não pode deixar-se seduzir por qualquer simpatia para que nada distorça ou diminua sua fidelidade a Deus.
O v. 21 reafirma que ele está, na verdade, numa posição de ameaça. Como profeta de Deus, no entanto, está protegido e será libertado.
3. Meditação
a) Pode parecer pretensão estabelecer comparação com Jeremias, mas não é. Jeremias, um dos grandes profetas do Antigo Testamento, atuou nos momentos mais tensos e trágicos da história de Israel. Jeremias vivenciou o profetismo com uma intensidade ímpar. Jeremias foi fiel a seu chamado como poucos e pagou um preço alto por sua fidelidade. No entanto, ele viveu seu chamado como ser humano, como todos nós. Se a Bíblia tem um papel, é mostrar como os personagens nela retratados viveram grandes capítulos da ação de Deus em meio a temas e dimensões bem humanas da vida. Isso não os diminui. Isso aproxima-os de nós, leitores e pessoas que se nutrem desse testemunho para balizar sua vida de fé. Nosso chamado pode parecer menor do que o de Jeremias, mas nossos dilemas não são diferentes, não são de outra ordem.
b) Jeremias vive o dilema de toda pessoa que é chamada por Deus pela fé a seguir e servir à causa do evangelho de Jesus Cristo, ou seja, renunciar a si mesma e viver da graça revelada na cruz. Jeremias não conhecia Jesus, mas vivia a ambiguidade de ser simultaneamente um vaso de barro e esconder tesouros, nesse caso o conteúdo de sua mensagem profética e o agir poderoso de Deus. Nós cristãos não somos portadores da mensagem condenatória de Jeremias, mas anunciamos o mesmo conteúdo decisivo para a humanidade. Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á, e quem perder sua vida por minha causa achá-la-á (Mt 16.25). Há, portanto, uma clara semelhança entre a condição de Jeremias e a nossa.
c) O tema da ambiguidade da condição cristã é amplamente abordado pelos evangelhos e por Paulo. O desafio é perceber agora em Jeremias o que há de desafiador em sua condição e experiência nessa perícope. Inicio tocando no tema do deslocamento da posição do profeta. Em algum momento, ele se colocou de maneira diferente, inadequada em relação a Deus. Em algum momento, ele confundiu os papéis, colocando-se como causador da oposição do povo. Em algum momento, ele assumiu a causa de Deus como sua e assumiu a oposição como que dirigida à sua pessoa.
Esse foi seu pecado. Sem que percebesse, ele se afastou de Deus, ele traiu sua vocação profética. O sinal do deslocamento foi seu discurso lamentoso e centrado em sua pessoa. Sua fala tornou-se irrelevante para Deus.
Não se trata de desmerecer o sofrimento e a dor de quem serve a Deus. Trata-se de fazer desse tema o tema central, acima do chamado de Deus. Deus não é insensível à nossa dor. Deus não admite que coloquemos nossa humanidade acima do chamado dele. Essa é a confusão de Jeremias e de todos nós em algum momento da caminhada cristã.
O caminho de volta é o caminho do arrependimento. Do reconhecimento desse deslocamento e do assumir novamente a posição adequada, o olhar adequado, a fala adequada.
d) É verdade que situações de muita tensão (especialmente se forem de longa duração), como as que Jeremias viveu, são fonte especial de grande sofrimento emocional. No entanto, a capacidade de resiliência está ligada a como cada pessoa se prepara para enfrentar essa condição. Há quem se abata precocemente, e há quem resista com surpreendente força interior. Onde está o segredo?
Independente de toda uma série de orientações psicológicas, muito úteis e necessárias, a fé cristã trata do tema e dá úteis e imprescindíveis orientações a respeito. A primeira diz respeito ao tema central da experiência de Jeremias: deslocar-se da condição de profeta para a de vítima. Colocar-se no centro do drama emocional, esquecendo-se de Deus, de seu chamado e de sua proteção. Quem retoma insistentemente o tema do chamado de Deus em oração, reconhece sua fragilidade e clama por misericórdia com certeza não se sentirá deslocado. Essa oração é o verdadeiro antídoto para o pecado de Jeremias.
e) Somos por natureza inclinados a colocar-nos como centro do processo. Somos por natureza egocêntricos. Julgamos o que nos rodeia tendo como referência nosso ponto de vista. Nos momentos de fragilidade, somos mais egocêntricos ainda. O desespero e o medo fazem com que nos refugiemos em nosso frágil abrigo interior. Nessa hora, parece que nos esquecemos de Deus. Esse é o pecado do deslocamento, algo refletido já no relato do Éden.
Deus quer ser o centro de nossa vida. É orbitando ao redor dele que encontraremos a posição em que nossa vida tem sentido. Referindo-nos a ele, é que nossas lutas e desafios adquirem outro caráter.
O egocentrismo complica também nossa relação comunitária. Lutamos sozinhos por temas e demandas como se ninguém nos compreendesse e como se ninguém mais sentisse a mesma coisa. A vida comunitária pode ser solitária e sofrida se não sairmos de nosso caracol egoísta.
4. Imagens para a prédica
Ilustração
Certo dia, o fósforo disse à vela:
– Minha missão é te acender.
– Ah, não! – disse a vela. – Tu não vês que, se me acenderes, meus dias estarão contados? Não faças uma maldade dessas, não.
– Então quer permanecer toda a tua vida assim dura, fria, sem nunca ter brilhado? – perguntou o fósforo.
– Mas ter que me queimar? Isso dói. Consome as minhas forças – murmurou a vela.
– Tens toda a razão – respondeu o fósforo. – Esse é precisamente o mistério da tua vida. Nós fomos feitos para ser luz. O que eu, como fósforo, posso fazer é muito pouco. Mas se passo a minha chama para ti, cumprirei o sentido de minha vida. Eu fui feito justamente para isto: para começar o fogo. Tu és a vela. Tua missão é brilhar. Toda a tua dor, tua energia se transformarão em luz e calor, e somente assim poderás ser útil àqueles que necessitam de luz.
Ouvindo isso, a vela olhou para o fósforo, que já se estava apagando, e disse: – Por favor, acende-me!”
Poesia
O homem humano (Adélia Prado)
Se não fosse a esperança de que me aguardas
com a mesa posta, o que seria de mim eu não sei.
Sem o Teu Nome
a claridade do mundo não me hospeda,
é crua luz crestante sobre ais.
Eu necessito por detrás do sol
do calor que não se põe
e tem gerado meus sonhos.
Porque acima e abaixo
e ao redor do que existe permaneces,
eu repouso meu rosto nesta areia
contemplando as formigas,
envelhecendo em paz
como envelhece o que é de amoroso dono.
O mar é tão pequenino
diante do que eu choraria se não fosses meu Pai.
Ó Deus, ainda assim,
não é sem temor que Te amo,
nem sem medo.
5. Subsídios litúrgicos
Oração de confissão de culpa
Nós nos dirigimos a ti, Senhor, sabendo que nos enganamos de caminho.
Andávamos tentando andar, apalpando as paredes como cegos.
Acreditávamos que o caminho que nos oferecias era suficientemente largo para poder andar nele, levando junto nossos caprichos, os rancores, as ambições desmedidas, a dureza de coração e a idolatria.
Agora nos encontramos na escuridão desse caminho, órfãos de ti.
Apaga, por tua graça, o pecado que nos conduziu a esse caminho equivocado.
Orienta-nos mais uma vez ao caminho da vida, o estreito e difícil,
ao caminho da cruz, ao caminho da ressurreição e da vida.
Em nome de Jesus, nós te pedimos. Amém.
Confissão de fé
Creio que Deus pode fazer com que de tudo, mesmo do negativo, resulte algo bom. Para isso necessita de homens e mulheres que permitam e creiam que tudo lhes servirá para o bem.
Creio que Deus nos pode dar em cada situação difícil a capacidade de resistir. Mas não a dá adiantado, para que não confiemos em nossas próprias forças, e sim em seu poder. Essa confiança nos livrará do medo e do temor pelo futuro.
Creio que nossos erros e fracassos não são em vão e que para Deus não é mais difícil utilizá-los como faz com nossos sucessos.
Creio que Deus não é um destino cego e indiferente, mas que espera nossas orações e nossos atos responsáveis. (Dietrich Bonhoeffer)
Bênção (baseada no Salmo 139)
Que Deus, para quem a noite é tão clara como o dia, guie teus passos no caminho.
Que Deus, que está contigo quando estás sentado e levantado, te rodeie com seu amor e te segure pela mão.
Que Deus, que conhece teu caminhar e teu descansar, esteja contigo, dan-do-te esperança, seja a boa notícia que tens para partilhar com o mundo, e te guie pelo caminho eterno. Amém. (Jan Sutch Pickard / Tradução: R. H. Jordan)
Veja em anexo: Se depender de nós (Cláudio Kupka)
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