Prédica: Isaías 56.1, 6-8
Leituras: Mateus 15.21-28 e Romanos 11.1-2a, 29-32
Autoria: Stéfani Niewöhner, Fernando José Matias
Data Litúrgica: 12° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/08/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Acolher o diferente e praticar a justiça
1. Introdução
No texto da pregação, no pós-exílio, “repatriados” e “remanescentes” são convidados a deixar de lado a pergunta pelo “verdadeiro Israel”. O templo se torna Casa de Oração para todos os povos que, a seu modo, amam e servem ao Senhor. Fé e justiça unem os diferentes.
O texto do evangelho é o da mulher cananeia, no qual Jesus parece inicialmente se recusar a atender uma estrangeira. O posicionamento de Jesus nos causa estranhamento. Talvez Jesus tenha feito uso do discurso da religião oficial, justamente para provocar o diálogo. A mulher não se deixa abalar pelas rivalidades e por preconceitos e clama por justiça. O que importa é a vida ameaçada que precisa ser libertada. Depois de clamar (kyrie) respeitosamente a Jesus como Kyrios (kyrie ao Kyrios), Filho de Davi, ela o convence com boa argumentação racional, humanizada, de justiça, fundamentada na fé. Com isso, o evangelista quer que vejamos uma mulher estrangeira fazendo sua profissão de fé e convencendo Jesus a abrir-se aos outros povos. A fé da mulher estrangeira e a justiça inclusiva de Jesus superam qualquer exclusivismo.
O texto da carta está baseado na pergunta: pode Deus ter misericórdia de povos estrangeiros que já lhe foram desobedientes? A resposta é sim, já que Deus pode ser misericordioso até mesmo com o próprio Israel quando esse lhe foi desobediente. O vínculo entre os textos está no questionamento às bases do preconceito, da exclusão, do exclusivismo, e no convite e na possibilidade de acolhimento ao diferente. Uma temática que cabe muito bem no tempo de Pentecostes.
2. Exegese
Em termos de datação, o Trito-Isaías (Is 56 – 66), provavelmente, se localiza depois do retorno de parte dos exilados do cativeiro na Babilônia, em 538 a. C., e antes da reconstrução do templo de Jerusalém, em 520 a. C. Nesse período havia uma forte tensão entre os diferentes grupos existentes em Jerusalém: os “repatriados” e os “remanescentes”. Os “repatriados” eram descendentes dos exilados que agora haviam retornado à terra de Israel, com sonhos e histórias que ouviram de seus antepassados sobre “a terra deixada para trás”. Eles se consideravam o “verdadeiro Israel”, queriam reconstruir o Templo e reocupar a “terra vazia”. Mas encontram a terra ocupada por outras pessoas, os “remanescentes”, pejorativamente chamados de “povo da terra”. Os “remanescentes” são descendentes dos que não foram exilados. Eles tinham um projeto mais inclusivo e tribal e se “misturaram” com os estrangeiros trazidos para ocupar Jerusalém. É nesse cenário que o Trito-Isaías oferece uma proposta para que cada grupo possa conviver, apesar de suas diferenças, como comunidade e como povo de Deus.
A partir de Isaías 56, além do anúncio da salvação de Deus que está por vir, o povo é alertado de que deve ter uma atitude apropriada – deve praticar a justiça – como resposta à ação divina. Nesse aspecto, o Trito-Isaías se conecta com os profetas pré-exílicos, onde a prática da justiça se refere à proteção dos socialmente excluídos – viúvas, órfãos, explorados, estrangeiros e necessitados.
V. 1 – Assim diz o SENHOR: Mantende o que é justo (mishpat) e praticai a justiça (tsedaqah), porque a minha salvação (yeshu’ah) está prestes a vir e minha libertação (tsedaqah) será revelada.
A fórmula “assim diz o SENHOR” serve para atribuir autoridade à passagem e chamar atenção para o oráculo profético que transmite a palavra divina. O termo mishpat se refere a práticas que estão de acordo com a lei de Deus, podendo ser traduzido por “justiça” ou “o que é justo”. Pode se referir a um procedimento judicial, um veredicto de um juiz (Is 3.14; 53.8; 58.2), ou a apresentação de uma queixa à lei exigindo reparação (Is 40.27; 50.8).
O termo tsedaqah denota um padrão de comportamento de acordo com a lei de Deus que pode implicar a luta contra as causas do mal para restaurar esse padrão. Pode ser traduzido por “justiça”; “retidão”; “libertação”; “justificação”. O v. 1 usa duas vezes o termo tsedaqah e, assim, explora a profundidade de seu significado. A primeira vez, o termo aparece num sentido ético (“justiça”, “fazer o que é certo”). Na segunda vez, tem um sentido escatológico (“libertação”, “justiça final”). A libertação acontece onde a justiça prevalece.
O termo yeshu’ah indica uma ação de vir em socorro de alguém em necessidade, nesse caso, o próprio Deus que vem em socorro para trazer “salvação”, “libertação”, “socorro”.
Os v. 2-5 foram deixados de fora da perícope. Neles transparece a pergunta: quem pertence ao povo de Deus? Os eunucos, antes excluídos do culto (Dt 23.1) e do sacerdócio (Lv 21.20), agora podem fazer parte do povo de Deus. Também os estrangeiros, antes excluídos (Dt 23.2-9), passam a ser aceitos na comunidade. Os eunucos e estrangeiros que guardarem o sábado, escolherem o que agrada a Deus e abraçarem a aliança serão parte do povo de Deus. Nesse contexto, isso significa uma grande abertura ao diferente, uma grande proposta de inclusão.
V. 6 – Aos filhos dos estrangeiros (nekar) que se unirem ao SENHOR (YHWH), para o ministrarem (sharat) e para amarem o nome do SENHOR (YHWH), para serem servos seus, todos os que guardam o sábado, não o profanando, e abraçam a minha aliança,
O termo nekar pode se referir a alguém que não é membro da família (Gn 17.12), mas na maioria das vezes designa um não israelita (2Sm 15.19; 22.45-46). Os estrangeiros abordados aqui são estrangeiros que abraçaram o culto de YHWH.
O termo sharat é usado para descrever sacerdotes e suas atividades ministeriais (Êx 28.35). Pessoas estrangeiras agora podem exercer o sacerdócio e oferecer sacrifícios (Is 66.21), o que novamente denota uma grande abertura e acolhimento ao diferente.
Nos períodos exílico e pós-exílico, a ênfase em guardar o sábado cresceu em importância como meio de expressar obediência a Deus num contexto com pouca liberdade política e religiosa (Jr 17.21-22; Ez 22.8; Ne 13.17-18). É muito interessante que, em Isaías 56, o critério mais significativo para a inclusão de estrangeiros e eunucos na vida comunitária seja a observância do sábado e não a circuncisão (Êx 12.48-49). Dado o valor da circuncisão para esse povo, pode-se imaginar o impacto e a transformação que isso causou na vida comunitária.
O v. 6 abre as portas da fé para os estrangeiros que servirem ao SENHOR, amarem o nome do SENHOR, guardarem o sábado e abraçarem a sua aliança. Nessas estipulações está implícito o que é ser membro da comunidade. Os estrangeiros, antes excluídos, agora têm permissão para participar plenamente da vida comunitária e de seu culto, e o muro do exclusivismo vai sendo desconstruído.
V. 7 – também os levarei ao meu santo monte e os alegrarei na minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no meu altar, porque a minha casa será chamada Casa de Oração para todos os povos.
O v. 7 deixa claro que a participação cultual dos estrangeiros será de fato plena, pois inclui a possibilidade de terem suas ofertas e seus sacrifícios aceitos pelo SENHOR na Casa de Oração, que agora é de todos os povos. Há aqui um destaque para o papel da oração, que era uma tarefa do profeta, não do sacerdote.
O monte santo é o Templo de Jerusalém. Com a reconstrução do Templo e o reinício dos cultos, era urgente responder a questões como quem pode ou não participar do culto.
V. 8 – Assim diz o SENHOR Deus (adonay YHWH), que congrega os dispersos de Israel: Ainda congregarei outros aos que já se acham reunidos.
O v. 8 termina com a fórmula “Assim diz o SENHOR Deus”, formando um colchete literário com o v. 1. A imagem de Javé como aquele que reúne e recolhe é frequente (Sf 3.19; Sl 147.2; Is 11.12). O versículo parece alertar as nações de que agora é a hora certa para a repatriação dos judeus da diáspora (Is 14.2; 60.8-9). Além desses, o chamado pode estar se estendendo aos gentios que aspiram abraçar
a fé judaica.
3. Meditação
O que podemos aprender com o texto:
a) O texto aborda a inclusão na comunidade e também no sacerdócio dos que antes eram excluídos. Somos criados à imagem e semelhança de Deus. Diante de Deus, somos todos e todas de igual dignidade e valor. Excluir não é prática da justiça; por isso o texto inicia falando sobre a manutenção e a prática da justiça. Assim diz o SENHOR: Mantende o que é justo (mishpat) e praticai a justiça (tsedaqah). E só podemos fazer isso porque a salvação (yeshu’ah) está prestes a vir e libertação (tsedaqah) será revelada. Ou seja, nossa ação da prática e da manutenção da justiça é, em primeiro lugar, vontade de Deus e, em segundo lugar, resposta e reação ao seu agir primeiro, salvador e libertador.
b) Dos estrangeiros (e não estrangeiros) se espera que sirvam e amem o SENHOR, guardem o dia santo, não o profanando, e abracem a aliança divina. Servir, amar, guardar, não profanar e abraçar são verbos, palavra-ação, que orientam a relação com Deus e certamente com o próximo, seja ele ou ela de nosso ou de outro clã.
c) O texto também enfatiza o papel da oração: o templo deve ser uma casa de oração para todos os povos, local onde o povo poderá se alegrar, na certeza de que suas ofertas e orações serão aceitas. Aqui a oração ganha tanto ou mais valor que os sacrifícios.
d) Confiar na salvação de Deus implica também se comprometer com atitudes de empenho pelo cumprimento da justiça e da remoção de abusos na comunidade, na cidade, no país, no mundo.
e) Qual é a proposta do Trito-Isaías? Como esses povos diferentes podem se acertar? Na prática e na manutenção da justiça; no cuidado para que o Templo não se torne um mero açougue, um banco, um comércio, ou um gueto, mas que seja Casa de Oração a todos os povos que querem servir a Deus; que o serviço e o amor a Deus se reflitam na relação com o próximo, como se vê no encontro da mulher cananeia com Jesus; que aconteçam superações de velhos e novos conflitos; que superar velhos e novos preconceitos seja uma meta para o bem comum.
Perguntas para a reflexão:
• O que causa tensões e divisões dentro da comunidade hoje?
• O que me qualifica/desqualifica para participação na comunidade?
• Quais grupos estão sendo privados da comunidade atualmente?
• Quem é o outro, a outra que não consigo tolerar?
• Existe na comunidade discriminação étnica, cultural e social ou de alguma outra forma?
• Existem conflitos envolvendo a identidade étnica, religiosa e social na IECLB?
• O que fundamenta ou impulsiona esses conflitos?
• Como superá-los?
• Os direitos dos mais vulneráveis (na comunidade, na cidade, no país, no mundo) estão sendo garantidos?
• Quais são as injustiças de hoje pelas quais ainda esperamos por vindicação?
• A manutenção e a prática da justiça inspiram o nosso agir, motivam a inclusão e a aceitação do outra, da outra?
• Servir, amar, guardar, não profanar e abraçar são verbos, palavra-ação, que orientam a nossa relação com Deus e com o próximo?
4. Imagens para a prédica
Construir pontes!
Dois irmãos moravam em fazendas vizinhas. Para se encontrarem, precisavam percorrer uma longa estrada que margeava um rio que separava suas fazendas. Apesar do cansaço, faziam a caminhada com prazer, pois se gostavam e cuidavam um do outro. Certo dia, tiveram uma grande desavença. Um pequeno mal-entendido explodiu numa troca de palavras duras, e os irmãos deixaram de se falar.
Numa manhã, alguém bateu à porta do irmão mais velho. Era um homem com uma caixa de ferramentas na mão. Perguntou:
– Procuro trabalho, tem serviço para mim?
– Sim – disse o fazendeiro. – Aquela fazenda é do meu irmão, brigamos e não posso mais suportá-lo. Há uma pilha de madeira perto do celeiro, construa uma cerca bem alta para que não o veja mais.
– Entendo – disse o carpinteiro. – Mostre-me onde estão os martelos e os pregos e farei um trabalho que o deixará satisfeito.
O irmão mais velho entregou o material e foi à cidade. O homem trabalhou arduamente; anoitecia quando terminou. O fazendeiro chegou, mas no lugar da cerca havia uma ponte que ligava as duas fazendas. O fazendeiro enfureceu-se.
– Você é muito insolente em construir esta ponte depois de tudo o que lhe contei!
No entanto, ao olhar mais uma vez para aquela ponte indesejada, viu seu irmão hesitante no meio da ponte. Por um momento, os dois puderam se olhar novamente após longo período de distanciamento e solidão. Então o irmão mais novo saiu correndo de braços abertos em direção ao irmão mais velho. Por fim, se abraçaram, choraram e se desculparam. Emocionados, viram o carpinteiro arrumando suas coisas e partindo.
O fazendeiro mais velho então lhe disse:
– Espere, fique conosco mais alguns dias, tenho outros projetos. Você é um carpinteiro admirável!
O carpinteiro respondeu:
– Adoraria ficar, mas tenho outras pontes para construir.
(Carraro, 2008, p. 24-26.)
Frase e pensamento de Martin Luther King
“Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor da sua pele, ou sua origem, ou sua religião. As pessoas têm que aprender a odiar, e se elas podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto.”
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor, diante de ti e dos irmãos e irmãs na fé, queremos te pedir perdão pelas vezes em que deixamos o preconceito falar mais alto. Perdão pelas vezes que fechamos as portas do nosso coração e não oportunizamos o diálogo. Abre, Senhor, nosso coração para o diferente! Que possamos acolher a pessoa que é ou que pensa diferente de nós. Também pedimos perdão pelas vezes em que não buscamos o bem, não praticamos a justiça, nem nos empenhamos em acabar com as causas do mal em nosso mundo. Nós te pedimos, Senhor, que a prática da justiça e a luta contra o mal possa ser o nosso compromisso, na comunidade e no mundo. Amém.
Absolvição: Assim diz o SENHOR: Mantende o que é justo e praticai a justiça, porque a minha salvação está prestes a vir e minha libertação será revelada (Is 56.1).
Hinos: Quando o espírito de Deus soprou (HPD 437); Comece em sua casa (HPD 422); Transforma, Senhor (LCI 562); Canção da caminhada (LCI 575); A Paz (Roupa Nova).
Bibliografia
CARRARO, Fernando. Semeando a paz. São Paulo: FTD, 2008.
CHILDS, Brevard S. Isaiah. A Commentary. Louisville: Westminster John Knox, 2001. p. 440-460. (The Old Testament Library).
DE BLOIS, Reinier; MUELLER, Enio R. Dicionário Semântico de Hebraico Bíblico. United Bible Societies, 2000-21. Disponível em:
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