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ID: 2690

Gênesis 12.1-4a

Auxílio Homilético

08/03/2020

 

Prédica: Gênesis 12.1-4a
Leituras: João 3.1-17 e Romanos 4.1-5,13-17
Autoria: Eduardo Stauder
Data Litúrgica: 2° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 08/03/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

A caminho de um tempo novo

1. Introdução

O tempo de Quaresma chama-nos ao arrependimento, à mudança de vida, a caminhar em nova direção. O conjunto dos textos bíblicos para o 2º Domingo na Quaresma reafirma essa perspectiva, despertando a fé que nos coloca em movimento em busca de um tempo novo, que transforma a vida a partir de baixo, a partir da cruz.

O Evangelho de João 3.1-17 apresenta o diálogo entre Jesus e Nicodemos. Nesse diálogo, Jesus mostra que, se queremos ver o reino de Deus, temos que nascer de novo. É preciso esse passo na fé de quem confia que Deus pode fazer novas todas as coisas. Para nascermos de novo, precisamos olhar para Jesus crucificado. O Filho do Homem precisa ser levantado. A cruz indica o caminho a seguir. O novo nascimento não é obra nossa, mas é ação de Deus em nossas vidas, despertando a fé que nos coloca em movimento.

O texto de Gênesis 12.1-4a mostra Abrão partindo rumo a uma terra que Deus lhe mostrará. Abrão segue rumo ao novo sustentado pela promessa e pela bênção de Deus. Movido pela fé, Abrão se põe em movimento. Em Romanos 4.1-5,13-17, o apóstolo Paulo apresenta Abrão como modelo de fé. Deus aceita Abrão pela fé. A fé de Abrão na promessa de Deus é sinal da dimensão mais profunda da salvação da pessoa humana.

O conjunto desses textos já foi estudado em volumes anteriores do Proclamar Libertação. Tendo Gênesis 12.1-4a como texto de pregação, foi estudado três vezes. Recomendamos a leitura desses estudos que apresentam diferentes perspectivas de como compreender esse texto.

2. Exegese

Na perícope de Gênesis 12.1-4a, Javé fala para Abrão, trazendo uma ordem de êxodo e uma promessa. Antes de ouvir a palavra de Javé em Gênesis 12.1, nós temos a genealogia, a origem de Abrão (Gn 11.27-32). A história de Abraão inicia em Gênesis 11.27, onde é apresentada a descendência de Tera, pai de Abrão. Os v. 4b-5 continuam a genealogia.

Gênesis 12.1-4a é uma palavra de Javé que dá um sentido teológico para a narrativa da história da vida de Abrão. A palavra de Javé tem a intenção de que a história de Abrão seja lida numa perspectiva teológica. Essa perspectiva teológica é feita a partir do olhar da família, da casa, do clã. Por isso a genealogia a antecede. A história de Abrão tem a presença de um Deus pessoal, que não está preocupado em formar um povo que seja um grande império, mas está preocupado em garantir a sobrevivência das famílias. A história de Abrão não é a história de um indivíduo isolado, mas de uma pessoa ligada a um grupo familiar.

Gênesis 12.1-4a busca recuperar a memória histórica da origem do povo de Israel ligada aos patriarcas, apresentando um episódio da vida de Abrão no qual ele recebe uma promessa e uma bênção de Deus. A força do texto está nessa memória histórica.

A pesquisa bíblica revela com certo consenso que existe uma diferença entre o contexto histórico da redação e o episódio com Abrão. A vida seminômade de Abrão teria acontecido por volta do século XIV. Observando diversos termos  usados na redação do texto, acompanhamos a proposta de que a redação do texto aconteceu no início do reinado, no século X.

A tradução do texto não traz grandes dificuldades, mas chamamos atenção para o final do v. 3. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje traduz: E por meio de você eu abençoarei todos os povos do mundo. A tradução de Almeida Revista e Atualizada traduz: em ti serão benditas todas as famílias da terra. A tradução de Almeida traduz melhor o que está no texto em hebraico. O hebraico não fala em povos. É usada a palavra mispãhâ, que significa família, clã. Para o termo terra é usado ‘adamâ, que significa a terra cultivável. Devemos ter presente que terra aqui indica um espaço bem específico: a terra cultivável, a roça.

Em Gênesis 12.1-4a temos uma ordem de êxodo dirigida por Javé a Abrão, associada a uma promessa. No v. 1 temos o mandato divino “sai”, que vem junto de uma promessa de bênção no v. 2 e 3. Essa promessa de bênção está estruturada em três partes (v. 2, 3a, 3b). O v. 2 fala somente de Abrão. O v. 3a fala do efeito da bênção naqueles que se aproximam de Abrão. O v. 3b fala da efetivação da bênção dada a Abrão às famílias da terra. A resposta de Abrão nos é apresentada no v. 4, “partiu”.

O v. 1 anuncia a fala de Javé para Abrão. Não acontece uma epifania, uma revelação de Javé, apenas uma palavra de Javé por meio da qual ele ordena que Abrão saia. Não há nenhum tipo de intermediário entre Javé e Abrão. Javé se manifesta de forma pessoal e direta.

Não é dito como é ou onde é a terra para a qual Abrão deve se dirigir. Javé irá mostrar a terra. Abrão deve sair e abandonar terra, clã, a casa do pai.

Terra, clã e casa do pai são características da vida social do tempo dos reis, pois são os esteios da sociedade agrária do tempo dos reis. As expressões que aparecem no v. 2 continuam indicando para o tempo do reinado. Uma das promessas é que Javé irá engradecer o nome. Essa expressão equivale a constituir o estado monárquico (1Rs 1.47) (SCHWANTES, 1986, p. 46).

A história de Abrão está sendo contada para um povo que já se encontra sedentário, vivendo sob o reinado. A origem desse povo não está no poder e na grandeza dos reis, mas está num pastor nômade. A bênção de Deus não é para a grandeza do rei. O povo será uma grande nação quando viver da  bênção que vem de Deus. Deus abençoa Abrão, e assim Abrão se transforma numa bênção. O povo que tem sua origem em Abrão será grande quando for uma bênção.

A grandeza do povo, seu grande nome se concretiza quando ele se transforma numa bênção para as famílias. O que torna o povo grande e famoso não é um grande rei, um forte exército, um formoso templo. Lembremos a parábola de Jotão: tudo isso é um espinheiro que não dá sombra e não produz fruto (Jz 9.7-15). A palavra bênção significa a força da fecundidade, ou seja, é gerar e garantir a vida.

A Abrão é dada a promessa da bênção. O abençoar de Deus se realiza num processo constante. O abençoar de Deus não é um ato único, que se encerra numa única experiência. O abençoar de Deus vai acontecendo no decorrer da vida e vai se concretizando na história.

No v. 3a vemos que Abrão não precisa se preocupar nem ter medo. Quem o abençoar será abençoado e quem o amaldiçoar será amaldiçoado. A relação das pessoas com Abrão será determinada pela ação de Javé.

A meta de Javé não é ter um grande e numeroso povo. A meta de Javé está expressa no final do v. 3: Em ti se abençoarão todas as famílias da terra.

O v. 4a apresenta a resposta de Abrão à ordem e à promessa que Javé lhe traz. É dito que Abrão partiu. Ele não diz nada. Não questiona nem se revolta. Simplesmente segue adiante. Conforme Westermann, Abrão “obedece à ordem e toma o caminho de um pastor nômade; da futura grandeza e do futuro renome ainda não se percebe nada nesse caminho. O fato de Abrão ter obedecido à ordem de Deus é o normal e natural; uma atitude ousada seria não obedecer a ela” (WESTERMANN, 2013, p. 128).

3. Meditação

O tempo da Quaresma convida-nos a nos colocar a caminho. Colocamo-nos em movimento, mas seguimos pelo caminho da cruz. Temos uma direção e referência.

Na Quaresma, caminhamos em direção à Páscoa. Seguimos em direção a um novo tempo. Ouvimos a voz de Deus dizendo: sai. Abrão ouviu e obedeceu a essa palavra de Deus. Saiu e caminhou em direção à terra que Deus iria lhe mostrar. O povo que era escravo no Egito também ouviu a palavra de Deus dizendo para sair da terra da escravidão. O povo obedeceu, saiu e caminhou para ser livre em direção à terra que mana leite e mel. Jesus também ouviu e obedeceu à palavra de Deus. Saiu e caminhou em direção ao reino de Deus. A palavra de Deus abre um espaço novo diante da realidade. Caminhar rumo  ao novo é um ato de fé.

Deus diz para nós: sai! Obedecemos ou ficamos parados? Resistimos ou seguimos adiante?

Essa ordem de Deus para sair, para ir adiante não deve ser confundida com o processo migratório que presenciamos no mundo. No nosso país presenciamos o êxodo rural e hoje 90% da população brasileira vive nas cidades. Continuamos vendo pessoas migrando pelo nosso país em busca de trabalho, saúde, vida digna.

No mundo, acompanhamos grandes ondas migratórias de povos que fogem da guerra e da pobreza, buscando refúgio e segurança em outros países. Deus caminha ao lado dessas pessoas e famílias que buscam por um espaço de vida. Mas será que podemos dizer que esses migrantes se colocaram em  movimento porque Deus disse a eles: sai? Não podemos justificar como sendo vontade de Deus esses processos migratórios gerados por questões econômicas, políticas, sociais. Se o fizermos, perdemos a voz profética e permanecemos escravos no Egito.

Abrão, como pastor, vivia uma vida nômade. Estava sempre a caminho, em busca de um novo lugar onde morar e cuidar do seu rebanho. Sua vida não era sedentária. O ir adiante fazia parte da sua rotina. Mas dessa vez ele vai adiante obedecendo a uma ordem de Deus, que vem acompanhada de uma promessa e de uma bênção, que o leva a ultrapassar fronteiras, mas com um objetivo de ser bênção para todas as famílias da terra.

O povo de Israel não se forma por meio dos reis, do Estado, da conquista de territórios pela dominação dos exércitos. O povo se forma a partir das famílias que se põem a caminho para viver a promessa de Javé, para viver da bênção de Javé. Da mesma forma, a história de nossas comunidades de fé, da nossa igreja, não é feita fundamentalmente pelos concílios e assembleias, mas é a história das famílias. Nessa perspectiva, a igreja, enquanto instituição, ganha sentido quando se coloca a serviço da vida das pessoas, das famílias, da casa.

Esse mesmo olhar pode ser lançado para o Estado Brasileiro. O Estado não é o fim, o objetivo, mas é um meio para garantir e promover a vida das famílias, da casa. Deus não está preocupado em estar acima de todos nem deseja que o Estado esteja acima de tudo. Deus nos ensina a olhar para a organização e formação da sociedade a partir das famílias, da casa, daqueles que se põem a caminho em busca de vida, de trabalho, de sobrevivência.

A promessa de Javé a Abrão questiona o brado daqueles que põem o Estado acima de tudo e Deus acima de todos. Deus não se coloca acima de todos. Deus se coloca ao lado de Abrão, se coloca a serviço. Deus coloca acima do Estado a vida das famílias, daqueles que lutam pela sua sobrevivência. Deus age na história caminhando junto com Abrão, com gente que vivia escravizada, com pobres e pescadores, leprosos e cobradores de impostos. Essa gente simples, empobrecida, desvalorizada é para onde a bênção de Deus se estende a partir de Abrão. São as famílias da terra sendo abençoadas.

Abrão não tinha filhos, pois sua mulher Sarai era estéril (Gn 11.30). Ele já tinha uma idade mais avançada quando recebe a ordem de Javé para sair. Javé escolhe uma pessoa que aparentemente não é indicada para a realização de seus planos. Mas o que muda toda a visão é a promessa: e te abençoarei. A bênção de Javé é a palavra-chave. Javé abençoa Abrão para que ele seja uma bênção.

Bênção, muitas pessoas buscam a bênção de Deus. Muitas igrejas distribuem e oferecem a bênção de Deus. A bênção parece ser compreendida e buscada como um bem simbólico de consumo, um bem que eu posso possuir e controlar de forma individualista. Para Abrão, a bênção vem e dá sentido à sua vida, dá uma direção à sua existência numa perspectiva comunitária, coletiva. Abrão não se apropria da bênção de Deus, antes ele se vê apropriado por ela. 

4. Imagens para a prédica

O movimento de Abrão foi o de partir motivado pela palavra de Javé. Este é quem ordena: Sai! A ordem de sair está acompanhada de uma crítica ao contexto que se deve abandonar. Se temos que buscar o novo, é porque existe a necessidade de mudança. Nossa vida, o contexto que nos envolve, não consegue fazer com que a vida aconteça de forma boa, justa e digna.

O movimento de sair, de abandonar o velho em busca do novo pode ser explorado na pregação. Mas não devemos perder a perspectiva de que o nosso sair é conduzido pela promessa e bênção de Deus.

A promessa e a bênção de Deus nos fazem olhar para a realidade como um pequeno engraxate. O engraxate em busca da sua sobrevivência volta seu olhar para os pés das pessoas. Ele procura os calçados que necessitam de graxa. Ele aprende a olhar para a realidade numa determinada perspectiva. A promessa e bênção que Deus traz a Abrão fazem viver na perspectiva de quem quer ser bênção para as famílias da terra. Não queremos ser bênção para riqueza e sucesso, mas para que as famílias, os pequenos, os crucificados deste mundo tenham vida, perdão e salvação.

“[…] mesmo quando paredes impenetráveis persistem no coração humano, o seguimento de Cristo é um convite para ‘migrar’ com ele do pecado para a graça, da escravidão para a liberdade, da injustiça para a justiça, e da morte para a vida nova” (GROODY, 2009, p. 106).

5. Subsídios litúrgicos

A liturgia deve refletir o tempo da Quaresma, que é tempo de parar, de silenciar, de se perguntar pelo rumo da vida.

Antes da pregação pode ser cantada a música “Quem conhece o velho Abraão” (LCI, 550). Sugerimos que os cantos comunitários despertem para o movimento, sair, caminhar. Lembro o canto “Se caminhar é preciso” (LCI, 575), que poderia ser cantado após a pregação ou no final do culto, por apresentar a caminhada como vivência da fé comunitária.

A meditação de Martim Lutero, Confiar somente em Deus, pode ser usada durante a prédica, ou no momento da confissão de fé:

“Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. Não deposito minha confiança em homem nenhum deste mundo, nem em mim mesmo, tampouco em minha força, capacidade, bens, piedade ou qualquer outra coisa que eu possua. Não confio em criatura nenhuma, quer no céu, quer na terra. Considero e confio tão somente no Deus único, invisível, incompreensível, que fez os céus e a terra, e que está acima de todas as criaturas. Também não me assusta a maldade do diabo e sua companhia, pois meu Deus está acima de todos eles. Creio em Deus, mesmo que todos me abandonem ou persigam. Continuarei crendo, mesmo que eu seja pobre, tolo, ignorante e desprezado e careça de tudo. Eu creio, mesmo sendo pecador. Pois esta minha fé deve e precisa estar acima de tudo que é e que não é, acima de pecado e virtude, acima de tudo o mais, para que a fé se apegue única e exclusivamente a Deus, como insiste o primeiro mandamento”.

Bibliografia

GROODY, Daniel. O Deus da fronteira. Uma teologia da migração e o caminho humano. In: RIBLA, São Bernardo do Campo: Nhanduti, n. 63, 2009.
WESTERMANN, Claus. O Livro de Gênesis: Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal, 2013.
SCHWANTES, Milton. A Família de Sara e Abraão: Texto e contexto de Gênesis 12-25. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1986.


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Autor(a): Eduardo Stauder
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 2º Domingo na Quaresma
Testamento: Antigo / Livro: Gênesis / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 4
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54638

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Mateus 6.8
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