Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Salmo 96 e Lucas 2.1-7
Autoria: Felipe Gustavo Koch Buttelli
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Viver na liberdade das filhas e dos filhos de Deus:
o verdadeiro presente de Natal
1. Introdução
Os textos previstos para esta celebração de véspera de Natal são muito propícios para refletirmos sobre a radicalidade da graça de Deus, que nos convida à liberdade diante do jugo da Lei e das formas de idolatria contemporâneas. O conjunto de textos previstos para hoje nos convida a abraçar esse Evangelho com alegria, positivamente, sem enfatizar o caráter de negação da outra pessoa, mas de abraço a um convite a uma nova forma de vida, proporcionada pela revelação histórica de Jesus em nosso mundo e pela presença do seu Espírito em nós, que nos liberta e nos garante a dignidade de filhas e filhos de Deus. Assim, essa dupla ênfase na celebração da novidade de vida oferecida por Deus e na realidade histórica da revelação de Deus em Jesus de Nazaré, que abraça nossa humanidade, é perceptível nos textos paralelos ao previsto para a pregação. O Salmo 96 convida ao canto e aos louvores, à alegria pelo que Deus fez e faz por nós neste tempo de Natal. O Evangelho de Lucas 2.1-7, por sua vez, é um texto muito comum para este dia de véspera de Natal, apresentando o testemunho histórico do nascimento de Jesus, que nos assegura a historicidade da encarnação de Deus, no tempo estabelecido por Deus. Portanto, celebremos a encarnação de Deus no nosso mundo com alegria, cantos e louvores, porque se compadeceu de nossa humanidade e veio solidarizar-se com nossa sofrida condição humana, nos trazendo liberdade e dignidade de filhas e filhos de Deus.
2. Exegese
A Carta aos Gálatas foi escrita por volta de 53-55 d. C., após uma primeira visita de Paulo à região da Galácia, onde fundou comunidades. A Galácia não é uma cidade, mas uma região na Ásia Menor, hoje na região da Turquia, e constituída em um contexto que anteriormente seguia religiões pagãs. Tudo indica que, após a formação dessas comunidades, na ausência de Paulo, grupos judaizantes (judaico-cristãos) começaram a incidir na comunidade, questionando a autoridade do apóstolo Paulo e sugerindo que, para evitar perseguições do Império Romano, aquelas comunidades aderissem a práticas religiosas judaicas, em especial à circuncisão e à observância da Lei judaica e de seus calendários religiosos. Como o Concílio dos Apóstolos em Jerusalém (At 15) já havia decidido que comunidades gentílico-cristãs não precisavam se submeter à observância das leis judaicas, pode-se deduzir que esses missionários judaizantes não julgavam necessária a observância de todas as determinações da Lei, mas que elas seriam sadias e positivas para a vivência da fé e, sobretudo (no contexto de atuação do imperador Cláudio que havia se reconciliado com o judaísmo), providenciais para evitar a perseguição religiosa (Theissen, 2007, p. 50). Paulo, portanto, escreve com esta dupla finalidade: reafirmar sua autoridade como apóstolo e admoestar a comunidade diante do que considerava um retrocesso de uma condição de liberdade ao retorno a um legalismo. Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão (Gl 5.1).
Evidentemente, a retomada da observância da Lei gerava novamente um contexto de distinção de valor entre os membros da comunidade. De um lado, aquelas pessoas que observavam a Lei, de outro, aquelas que visavam permanecer fiéis aos ensinamentos de Paulo. Por isso Paulo enfatizava que a experiência comunitária de uma vida em liberdade não permitia mais que se fizesse distinção entre as pessoas, como expressou em Gálatas 3.28: Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.
Assim, a Epístola de Gálatas é conhecida como a “epístola da liberdade”, em que se apresenta o núcleo da mensagem da justificação por graça, mediante a fé. Em sua estrutura interna, nos dois primeiros capítulos, Paulo reapresenta o desenvolvimento histórico de seu ministério, justificando sua autoridade como apóstolo diante das acusações dos missionários judaizantes. Os capítulos 3 e 4 apresentam o núcleo do argumento teológico de Paulo, a saber, que em Jesus Cristo nos tornamos pessoas adultas e não requeremos mais a Lei como “pedagoga” na nossa condição de minoridade na fé, algo comparável à falta de autonomia de um escravo. Pela revelação de Deus em Jesus Cristo, somos libertados da Lei e nos tornamos filhas e filhos adotivos de Deus, herdeiras e herdeiros de sua promessa. Importante ênfase nesse núcleo argumentativo é dada à ação graciosa de Deus, que, em Cristo e pela presença de seu Espírito em nós, nos concede a liberdade, a dignidade da filiação, a promessa da herança, a justificação e salvação. Nada disso depende de nós, de nossas obras, de nossa observância de práticas religiosas exteriores. Nos capítulos 5 e 6, encaminhando o fim da carta, Paulo exorta a comunidade a permanecer na liberdade e a não regredir ao jugo da escravidão. Também apresenta outras admoestações, encerrando a carta com sua saudação de próprio punho.
Importante dizer que essa carta, por mais circunstancial que fosse no contexto original, por ser um dos primeiros textos da fé cristã, teve importante impacto na visão teológica das comunidades primitivas, adquirindo um caráter dogmático para a fé cristã em formação.
Num recorte mais amplo da perícope, os limites da nossa temática se iniciam em Gálatas 3.23 e se estendem até 4.11. No entanto, considerando a ocasião
do Natal, o recorte de Gálatas 4.4-7 parece bem apropriado, não excluindo ao pregador ou à pregadora a importância da leitura preparatória da perícope completa, ainda que não seja usada como leitura para a pregação.
Exegeticamente, não há grandes controvérsias nas traduções, sendo a NTLH adequada para a leitura em contexto comunitário. Para o preparo à pregação são suficientes as leituras da versão ARA e, sobretudo, a da Bíblia de Jerusalém.
Analisando a perícope em sua estrutura interna, é possível perceber uma breve divisão temática:
4.4 – A revelação – Deus revela-se em Jesus no tempo por ele determinado (plenitude do tempo), revela-se em sua dupla natureza totalmente humana e divina. Sua encarnação é histórica (nascido de mulher, nascido sob a Lei).
4.5-6 – A filiação – A filiação é dádiva gratuita de Deus concedida em Cristo, não depende de nossos méritos e obras. Só pode ser recebida. A palavra grega apolabōmen, no v. 5, significa receber e adquire um caráter batismal. É no batismo que “recebemos” essa condição de filiação e que recebemos esse Espírito, que cria em nós a fé, nos sustenta na liberdade e nos concede uma nova condição.
4.7 – A liberdade – A condição de filhas e filhos de Deus nos liberta de toda escravidão e nos concede, por graça, a herança garantida a quem se torna filha
ou filho.
3. Meditação
O texto de Gálatas 4.4-7 nos permite compreender o significado, as consequências da revelação de Deus em Jesus Cristo. Enfatiza o tema da liberdade cristã e lembra que ela decorre da nova condição (que adquirimos por meio de Cristo) de filhas e filhos de Deus, que vivem na fé e na confiança em Deus, podendo chamá-lo de Aba, Pai, paizinho querido, exclusivamente pela ação e presença do Espírito de Cristo que habita em nós. O texto de hoje oferece, como mensagem de Natal, a síntese do Evangelho: não somos pessoas justificadas por obras, pelo cumprimento da Lei, por nenhuma forma de idolatria contemporânea, por nenhum ritualismo, mas pela graça de Deus, manifesta no Messias, que se encarna e se revela ao mundo. No Natal, somos lembradas e lembrados que o grande presente é concedido a nós pelo próprio Deus, na manjedoura. Presente que se renova hoje e a cada dia para nós pela ação do Espírito de Cristo, que cria em nós a fé que nos permite acolher a dignidade da condição de filhas e filhos de Deus. Livres de toda Lei, de todo moralismo e legalismo, de toda conduta meritocrata diante de Deus, somos chamadas e chamados a reconhecer na outra pessoa essa mesma dignidade e filiação que a nós também são concedidas.
A expressão plenitude do tempo (4.4) refere-se ao tempo previsto por Deus para a realização do ápice da sua revelação. O nascimento histórico de Jesus Cristo estabeleceu um antes e depois. O Natal nos aponta para essa ruptura com o tempo em que a Lei cumpria o papel positivo de orientar-nos naquilo que Paulo chamava de “minoridade”.
Enviou Deus seu filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei. Essa expressão revela a concepção paulina da dupla natureza de Cristo, completamente divino e completamente humano. É nascido na condição histórica, na pobreza, na de seu jugo. A encarnação de Deus em Jesus é a razão da nossa liberdade.
Para além da libertação do jugo da Lei, a revelação em Jesus Cristo, filho unigênito de Deus, estende a toda humanidade a condição de filhas e filhos de Deus. É completamente graciosa conosco, nos concedendo a filiação, algo que não podemos conquistar, mas apenas receber. Ela estabelece a condição de herdeiras e herdeiros daquilo que nós mesmos não podemos produzir. A filiação, por não ser algo conquistado, só pode ser recebida e acolhida na fé, daí que o cumprimento da Lei de nada adianta em nossa relação com Deus.
Essa condição de filhas e filhos de Deus torna-se verdadeiro presente de Natal a nós através da presença constante do Espírito de Cristo em nossas vidas. Esse Espírito hoje novamente oportuniza em nós uma nova conduta. Pela presença de Deus no coração humano pelo Espírito de Cristo, somos capazes de clamar Aba, Pai. O Espírito que nos concede nova mentalidade e nova postura de vida, que se dirige a Deus como Pai, nos permite viver em fé, confiança, entrega. Essa condição também nos encoraja e impulsiona a uma nova conduta ética: viver em liberdade, não insistindo no retorno à Lei. Acolhendo a dignidade que temos como filhas e filhos e compreendendo que as outras pessoas também dispõem da mesma dignidade e do mesmo amor que recebemos.
Enquanto formulo este auxílio homilético, vivemos em um tempo de polarização política intensa em virtude do processo eleitoral. Não é de hoje que as relações têm se acirrado. A sociedade brasileira vive, há alguns anos, o recrudescimento da intolerância, do ódio, da exclusão e perseguição de quem pensa e vive de forma diferente. As relações pessoais e familiares estão desgastadas, quando não se vivenciou a ruptura de muitas relações. Isso não é nada diferente nas nossas comunidades de fé. Não é possível saber se, quando celebrarmos o Natal de Jesus Cristo neste ano, a sociedade se pacificou e se as relações passaram por um processo de cura e reconciliação. Requer muito tempo para mudar as bases da sociedade que têm se firmado na intolerância. Principalmente quando, no meio cristão, muitas igrejas – e comunidades da nossa IECLB – se deixaram seduzir por uma nova espécie de legalismo, de moralismo, que fundamenta a divisão entre as pessoas corretas e as erradas, as boas e as más, as que vivem de acordo com uma ideologia ou outra. Muitas igrejas se aprofundaram no uso de textos bíblicos para condenar pessoas que são julgadas como desviadas. Isso se transformou, nos últimos anos, numa forte distinção entre as pessoas, fundamentadas na distinção política, social, cultural, étnico-racial, de gênero e orientação sexual, para dar
alguns exemplos.
4. Imagens para a prédica
As pessoas que vão à igreja na véspera de Natal procuram uma mensagem positiva, que reforce sua fé e que lhes permita renovar, neste tempo especial, a esperança e a confiança de que na fé nós podemos encontrar um caminho bom de vida, em especial nos ciclos novos que se iniciam. Por isso eu não enfatizaria aspectos negativos ou um conteúdo moralizante na pregação. O texto de hojeanuncia liberdade! Diferente de muitos auxílios homiléticos anteriores, neste de hoje gostaria de sugerir uma ênfase na presença do Espírito de Cristo em nós. A novidade de vida que o Natal sugere não está exclusivamente relacionada ao evento histórico do nascimento de Jesus nas condições adversas em que ocorreu. Também está na contínua presença do Espírito Santo em nossas vidas, o que é enfatizado também no texto de hoje. Hoje, é o Espírito que nos renova a esperança. Hoje, é o Espírito de Deus que nos fortalece a fé diante dos desafios da vida. Hoje, é o Espírito Santo que nos transforma e nos liberta para viver nossa vida em família, em comunidade e na sociedade livres das leis sociais, do legalismo bíblico e das diversas formas de idolatria às quais a vida em sociedade hoje nos conduz. Por isso, penso que é uma mensagem alentadora saber que, neste natal, no dia de hoje, Deus opera novamente a libertação e atualiza em nós a consciência de que somos filhas e filhos de Deus, dignos e amados, assim como são as outras pessoas.
5. Subsídios litúrgicos
Hino: LCI 168 – Vede que grande amor.
Confissão dos pecados: Deus de bondade e amor! Agradecemos-te hoje pela tua revelação em Jesus Cristo. Em Jesus, na manjedoura, tu vieste nos trazer liberdade. Libertaste-nos do jugo da escravidão, da lei que cria distinção entre nós. No entanto, nós sempre caímos de novo na tentação de viver de acordo com essa lei. Rejeitamos tua graça e preferimos confiar em nós mesmas e nós mesmos, nos submetemos à idolatria deste mundo e aos seus valores. Pela nossa incapacidade de acolher a tua graça, manifesta no infante Jesus, nós nos ferimos, projetando sobre nós formas de justificação pelo trabalho, pelo mérito, pelo fundamentalismo e por tantas formas de cobrarmos a nós mesmas, nós mesmos. Ferimos as pessoas de nossa família e de nossa comunidade quando nos submetemos novamente a essa escravidão. Promovemos o ódio e a intolerância na sociedade, vivendo em violência e promovendo a morte. Perdoa-nos, te pedimos, e pelo poder do teu Espírito que habita em nós, ajuda-nos a abraçar nossa condição de tuas filhas e teus filhos, vivendo em liberdade e dignificando a vida de todas as pessoas e de toda a criação. Isso é o que te pedimos, em nome de teu filho Jesus, que por nós morreu na cruz. Amém.
Referências
BRAKEMEIER, Gottfried. Natal 1. In: KILPP, Nelson; WESTHELLE, Vítor (Orgs.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1989. v. XV, p. 106-111.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974.
THEISSEN, Gerd. O Novo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2007.
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