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ID: 2690

Deuteronômio 4.1-2,6-9

Auxílio Homilético

29/08/2021

 

Prédica: Deuteronômio 4.1-2,6-9
Leituras: Marcos 7.1-8,14-15,21-23 e Tiago 1.1-17
Autoria: Marcos Antonio Rodrigues
Data Litúrgica: 14° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/08/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV

“Teko Porã” – o rio da esperança

1. Introdução

Do outro lado do rio existe uma terra para bem viver (Teko Porã). Trata--se de um termo em Guarani que significa o “belo caminho” ou o “bem viver”. Caracteriza a filosofia, a cosmogonia e a espiritualidade refletidas na sabedoria popular de povos originários das Américas, conhecidos hoje como indígenas, em especial os Guaranis.

Esse também é o sonho que está no pano de fundo do texto previsto para pregação. Nas palavras de Moisés, ouvir, guardar, cumprir e ensinar a lei de Deus são requisitos para a travessia rumo à nova terra. Quando o cruzar de rios nasce de esperanças, águas turbulentas e perigosas podem vir a ser oportunidades de solidariedade. Cruzar juntos o rio é tão importante quanto chegar à terra firme.

A lei de Deus e seu cumprimento apresentam-se como pontes para a travessia. Nostalgias e esperanças, desertos e terras prometidas são elementos capazes de unir diferentes paisagens. Eles conduzem à liberdade, que só pode ser validada pela prática da justiça e do amor. São pontes que permitem o ir e vir da misericórdia, da compaixão, da partilha e do perdão.

Moisés, Marcos, Jesus e Tiago serão nossos guias e cruzarão conosco esse rio. Suas esperanças, resistência e solidariedade são necessárias para chegar à nova terra, nascida do encontro de corpos com toda a criação, em disponibilidade dialogal e amorosa. A terra da promessa só estará do outro lado do rio se do lado de cá houver disposição para o amor – lei maior. Do contrário, será só mais um cruzar de rios para horizontes que se afastam do sonho de Deus.

2. Exegese

Usando uma imagem dessas terras fluidas, cheias de lagos, igarapés, igapós e rios da Amazônia, poderíamos dizer que o livro do Deuteronômio é o “encontro das águas”. De um lado chegam as águas escuras do rio Negro, abundantes de vida trazida pelo seu serpentear na imensa floresta. Em linguagem bíblica, chegam as tradições já consolidadas do Gênesis, Êxodo, Levítico e Números, trazidas pelas histórias dos antepassados, que formam a maior parte do Pentateuco. Do outro lado, as águas barrentas e amareladas do rio Solimões, ricas em minerais, ilustram as tradições vindas das narrativas de Josué, Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras, Neemias e Ester (Livros Históricos).

Tudo o que acontece no Deuteronômio vem do futuro (Livros Históricos) e busca estabelecer relações de significado e pertença com o passado (Pentateuco). Deuteronômio é o rio formado pelo encontro dessas águas, vindas de diferentes épocas e tradições. Ele configura o encontro de memórias, leis, pregações, regras e estatutos que, oriundos do passado e do futuro, se encontram para dar novo sentido à história e projetar um novo futuro.

Mas, como por aqui na Amazônia, do encontro do rio Negro com o Solimões surge um novo rio cheio de vida, trazida de diferentes águas, o rio Amazonas, o maior do mundo em volume de água e de biodiversidade, do encontro das tradições do Pentateuco com as tradições dos Livros Históricos nasce uma nova teologia, não mais fundada apenas nos patriarcas, na libertação do Egito e no deserto, mas também na conquista e posse da terra. Nostalgia e esperança unem as mãos para forjar uma nova realidade teológica.

O deserto foi só uma parte do caminho. Ao cruzar o rio, ele precisa ficar para trás, mas não esquecido. A posse da terra não pode ser eternizada. Ela é herança deixada por aqueles e aquelas que enfrentaram o deserto. É necessário manter viva a consciência de que, na nova terra prometida-conquistada, todos e todas que nela vivem foram pessoas libertadas por Deus e receptoras de sua porção da herança.

A terra conquistada será reconstruída na base das esperanças dos antepassados, da realidade dura da guerra de conquista e da avaliação das velhas leis,  seguindo para a formulação de outras leis (dêutero-nômio) para uma vida em outra realidade. Agora não se trata de sonhar com a terra que está depois do rio, mas de construir relações de propriedade e de justiça no manejo da terra.

O processo de construção da narrativa do Deuteronômio foi tão longo e conflitivo quanto o caminhar pelo deserto e a sedentarização na terra. Ele durou no mínimo três séculos (VIII-VI a.C.) e pode ter se estendido por até seis séculos. Foram tempos marcados por encontros culturais e perspectivas teológicas diversas, confrontos políticos e militares entre povos e deuses, tribos e reinos em tendas e templos.

Por aqui, águas barrentas e frias e águas escuras e quentes seguem seu curso lado a lado por muitos quilômetros antes de se tornarem um novo rio. Com o Deuteronômio acontece o mesmo. É possível distinguir os embates entre as leis do deserto e as leis da sedentarização caminhando lado a lado, sendo discutidas e trabalhadas a partir de suas diferentes épocas e tradições. O Deuteronômio não é apenas um filete de água separando duas paisagens teológicas distintas. Ele é o processo teológico-legal necessário para manter a unidade da história do povo de Deus.

Em nosso contexto mais imediato, Moisés sabe que não poderá cruzar o rio. Sua caminhada está perto do final. Seu discurso vem carregado de recomendações que, se acolhidas pelo povo, podem determinar se do outro lado do rio a vida será ou não realmente diferente. Se haverá ou não libertação, justiça, misericórdia, partilha e perdão. Leis e estatutos entregues foram esperanças e sonhos que se materializaram durante a peregrinação pelo deserto. Esperanças passadas e futuras são forças motrizes que, vindas do passado, apontam e conduzem a humanidade de todos os tempos e lugares para suas terras prometidas e conquistadas ainda hoje e no porvir.

A terra da nova realidade precisará ser conquistada. A conquista, contudo, só será possível se houver antes um compromisso verdadeiro e amoroso com o Deus dos antepassados, o Deus libertador, aliado ao desejo de que o futuro seja um lugar onde todos e todas tenham sua porção. A terra que está do outro lado do rio não foi um presente. Foi conquista! Depois da conquista, rebanhos, pomares e colmeias precisarão de pastores, agricultores e apicultores para reconstruir, plantar, cultivar, proteger, colher e partilhar. Só assim as frutas, o leite e o mel serão abundantes.

A lembrança desse momento, estando há poucos metros da terra prometida, pode ser o pano de fundo litúrgico desse texto, seu lugar vivencial. A comunidade se reúne para reafirmar sua identidade e sua fé. Ao colher as dádivas da terra, lembra que ela é fruto do suor e do sangue de muitos inocentes e culpados, mas também é fruto da esperança de muitas pessoas que cruzaram os desertos e rios em outros tempos. Elas não podem ser esquecidas ao agradecer pela abundância
de leite e mel.

3. Meditação

Escrevo este texto no momento em que a humanidade está diante de um grande rio que precisa ser cruzado por todos e todas. A esperança guia os passos daqueles e daquelas que caminham rumo a uma nova terra, situada depois da pandemia. Um mundo melhor. Nascido da partilha das riquezas, da solidariedade diante da pobreza, da compaixão diante das realidades que ainda não somos capazes de explicar ou transformar e do empenho por transformar lanças e espadas em arados e enxadas. Existe uma expectativa de que os conhecimentos acumulados pela ciência e o avanço das tecnologias possam nos livrar da asfixia agonizante que rouba de nossos pulmões o ar-espírito-de-vida soprado por Deus em nossas narinas no sexto dia da criação.

Esperanço (como diria Paulo Freire) que, quando este texto servir de ajuda e reflexão para nossas pregações, já tenhamos cruzado o rio grande da tristeza e da nostalgia. Que nossos pés e mãos, mesmo cansados, já estejam pisando e arando a nova terra, criando abundância de leite, mel, justiça e sororidade. Que nossos corpos, ainda molhados pela travessia e pelo suor de nosso trabalho, possam se abraçar, dançar, cantar e comungar no altar da partilha e do amor.

Mas, por enquanto, ainda estamos do lado de cá! Olhando daqui, a pandemia não se parece com aquelas cheias sazonais dessa região amazônica. Elas revitalizam a floresta e seus habitantes. Servem de berçários para os peixes da região, que alimentam populações humanas da floresta, da cidade e a vida animal. Elas abastecem o rio de nuvens que generosamente leva a chuva, regula o clima e oferta fartura a grande parte do planeta. A cheia dá descanso à terra, renova a vida e traz fertilidade. Ela é aguardada a cada ano como bênção, proteção e prosperidade ofertadas, sem a necessidade de dízimos ou sacrifícios levados a altares profanadores de humanidades. Elas são dádivas da natureza que devolvem o sentido da vida às pessoas e a toda a criação.

A pandemia se parece mais com a enchente causada pelo rompimento de uma barragem ou represa. Ela chega violenta e impiedosa. Tinge de vermelho o rio doce da vida, destrói casas, escolas e igrejas. Soterra sonhos e esperanças e deixa uma herança de dor e luto que precisaremos carregar por muito tempo. Sabíamos que ela era realidade possível, mas achávamos que, como humanidade, estaríamos em terras mais altas, livres da devastação causada por sua passagem. Ledo engano! Não só fomos os seres vivos mais afetados por ela, como nos tornamos corresponsáveis pela inundação/transmissão que roubou o ar das pessoas mais vulneráveis entre nós.

Algo mais grave aconteceu muito antes da pandemia. Havia uma parte da humanidade que sentiu o desejo de construir um muro do seu lado do grande rio, para que a terra da abundância fosse somente sua posse e riqueza. Eles acreditavam que misericórdia, compaixão e partilha enfraqueciam a espécie humana. Por eles compreendida como somente sua própria imagem e semelhança, sem as feições indígenas, negras, orientais e femininas. Suspeito que muitos de nós nem notamos que esse muro já havia sido construído dentro de nós. Não carecia da materialidade de tijolos de barros, que desde tempos ancestrais vêm sendo moldados por mãos escravas de deuses faraós.

O muro transformou-se em dique. Deixou a violência das águas da pandemia do lado das mulheres e crianças violentadas. Desalentadas, já não conseguem mais nadar. Afundam nas pesadas águas da depressão e da apatia. Paradoxalmente, essas águas não serviram para apagar o fogo que queimava a floresta. O combustível ateado pela ambição queima sobre e sob a água. Porteiras foram abertas para que o gado flamejante da devastação pudesse devorar plantas, gentes e animais. O ar, outrora puro e fresco, virou fumaça sufocante e ardida, spray de pimenta que provoca mais lágrimas no olhar de quem buscava justiça. A maldade colocou seu joelho no pescoço do planeta e contemplou extasiada a sua agonia.

Não poderemos levar tudo o que temos para o outro lado do rio. Algumas coisas não só colocaram em risco o lado de cá, mas podem impedir a travessia e infectar a terra da promessa. Temos dentro e ao nosso redor coisas que não flutuam. Se insistirmos em levá-las conosco, ao invés de chegar à outra margem, acabaremos no fundo do rio. Certas coisas que a humanidade tem trazido consigo ao longo de séculos não podem chegar ao outro lado do rio. Elas podem contaminar o futuro. E o futuro repetirá o passado. Não haverá uma nova terra de justiça e partilha. Mas podemos nadar juntos e juntas até o outro lado! Levar conosco todos e todas! O amor é leve e faz flutuar!

4. Imagens para a prédica

Deuteronômio é o encontro das tradições do deserto e da terra conquistada. Nostalgias e esperanças precisam ser mescladas para fazer sentido e produzir novas realidades em novos tempos. Conectar esperanças que estão em lados opostos do rio pode ajudar a ver a paisagem da fé de um ponto de vista mais amplo. Novos tempos abrem portas para novas possibilidades.

Sugiro que a pregação não seja sempre o falar de um para todos e todas. Ela pode também ser o falar e o ouvir de todos e todas para com todos e todas. A imagem de um rio para ser cruzado pode incentivar o diálogo sobre o porquê e como podemos cruzar esse rio em nossa vida diária.

Quais são as coisas e os sentimentos que poderiam nos fazer naufragar nessa tentativa de fazer de nossa vida pessoal e em sociedade uma realidade mais justa e amorosa? Quais são as pessoas, coisas que nos ajudaram a flutuar melhor em meio às correntezas de violência, egoísmo e indiferença – forças incapazes de construir novos mundos de fraternidade?

Enxadas e arados, embora pesados, precisam chegar às mãos de quem construirá hortas e pomares para a abundância e partilha. Lanças e espadas não são necessárias onde se vive em solidariedade, compaixão e amor. O coração precisa ser civil. Estatutos e regramentos têm peso simbólico, mas precisam ser revistos ao chegar do outro lado. Nem tudo que vale do lado de cá vai ter o mesmo valor do lado de lá.

5. Subsídios litúrgicos

Imaginem comigo! Um rio pode ser construído entre o altar e a comunidade. Ele pode ser feito de muitos símbolos e imagens de realidades destes tempos que vivemos. Cada coração de pregador e pregadora pode escolher as imagens e símbolos de acordo com o que lhe for mais sensível e necessário. A comunidade, como o povo que estava com Moisés, será convidada a levar consigo o essencial para o outro lado do rio. Depositar no altar suas esperanças e necessidades.

A terra da promessa pode ser representada pelo altar. Deste lado, podem ser espalhadas enxadas, ferramentas de trabalho, e imagens de pessoas solidárias que salvaram vidas durante a pandemia. Seria de uma beleza reveladora, se já houvesse, além de vinho e pão, também leite, frutas e mel sobre o altar.

As pessoas que cruzarem o rio precisarão deixar algo antes da travessia. A confissão de pecados pode simbolizar as coisas que não serão levadas para a nova terra. Também dará leveza para a travessia. Pode ser feita por escrito e colocada no rio, ou simbolicamente numa parada contemplativa diante do rio e oração silenciosa.

A oferta pode ser feita nesse momento. Pessoas levam para o altar sua contribuição para um mundo novo e as colocam junto com o vinho, o pão, o leite e o mel. As crianças e pessoas idosas podem se servir das frutas, do leite e do mel, e assim sentir o sabor de um mundo que se aproxima de nós quando oramos: venha teu reino, Senhor! Adultos e jovens podem servir as crianças e as pessoas idosas em disposição diaconal.

Bibliografia

HATHAWAY, Mark; BOFF, Leonardo. O Tao da Libertação: Explorando a Ecologia da Transformação. Petrópolis: Vozes, 2012.
RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento. História, Escritura e Teologia. São Paulo: Loyola, 2004.


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Autor(a): Marcos Antonio Rodrigues
Âmbito: IECLB
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 14º Domingo após Pentecostes
Testamento: Antigo / Livro: Deuteronômio / Capitulo: 4 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 9
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2020 / Volume: 45
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 64878

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