Prédica: Atos 10.44-48
Leituras: Salmo 98 e João 15.9-17
Autoria: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: 6° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 09/05/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Não somos tão desprezíveis, afinal
1. Introdução
No tempo da Páscoa, as leituras da Bíblia hebraica dão espaço para a leitura do livro de Atos dos Apóstolos, que narra a vida das primeiras comunidades pascais, isto é, a vida comunitária daqueles grupos que se comprometeram a continuar a ser o corpo vivo de Cristo no mundo. Podemos dizer, assim, que pelas narrativas de Atos continuamos a ver o Cristo ressuscitado agindo no mundo por meio dos seus discípulos e discípulas, que estão plenos e tomados pelo mesmo Espírito Santo de Jesus Cristo.
A perícope indicada para a prédica neste que é o 6º Domingo da Páscoa se encontra em Atos 10.44-48. Essa passagem já foi abordada de maneira muito apropriada por Eldo Krüger no PL 42, leitura que recomendamos para uma perspectiva complementar e mais alargada do mesmo texto.
As demais leituras do dia são o Salmo 98 e João 15.9-17. Em perfeito alinhamento com o escopo do livro de Atos, o Salmo, entre expressões de exaltação e louvor, destaca a universalidade da salvação estendida a todos as nações, até os confins da terra: O SENHOR fez notória a sua salvação; manifestou a sua justiça perante os olhos das nações. [...] todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus (v. 3-4).
O texto do evangelho apresenta o grande (único!) mandamento: O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei (Jo 15.12). O modelo do amor a ser praticado por quem abraça o cristianismo é o amor do próprio Jesus, que não conhece fronteiras, porque é “amor sem idade, amor sem limites, amor por toda a humanidade”, como cantava o poeta Charles Wesley.
O fio que perpassa as leituras do dia, portanto, é aquele que costura numa unidade indissociável a universalidade, a inclusividade e a solidariedade do novo mundo de Deus inaugurado pelo Cristo ressurreto.
2. Exegese
O Evangelho de Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos formam uma composição, um conjunto literário, que, segundo evidência intratextual, tem como destinatário um certo e excelentíssimo Teófilo (cf. Lc 1.3 e At 1.1).
Quanto à autoria, não temos a mesma evidência explícita, pois o autor não se apresenta. Contudo a tradição consagrou como autor de ambos os textos um certo Lucas, discípulo do apóstolo Paulo (cf. Cl 4.14). Tal suposição se fundamenta especialmente no fato de que o autor, que geralmente está narrando na terceira pessoa, em algumas passagens se inclui como parte da comitiva de Paulo. Trata-se, portanto, de alguém que redige ambas as obras com base em relatos de terceiros, isto é, testemunhas oculares e ministros da palavra (cf. Lc 1.2), mas que, em certos momentos da narrativa, passa a narrar na primeira pessoa do plural, usando o pronome nós (cf. At 16.8-10; 20.5-15; 21.1-18 e 27.1 – 28.16), sendo assim, eventualmente, ele próprio uma dessas testemunhas oculares.
A perícope que é objeto do nosso estudo aqui não está entre aquelas experiências nas quais o autor está presente. Não cabe, agora, aprofundar a questão da autoria e do destinatário, mas importa sublinhar que tanto Lucas como Teófilo são nomes gregos. Isso importa, porquanto seus escritos têm a preocupação de tornar a mensagem cristã sensível aos gentios, isto é, aos não judeus. Com frequência, o autor elege como protagonistas de suas narrativas personagens estrangeiras.
Podemos inferir, portanto, que os escritos atribuídos a Lucas têm como pano de fundo o dilema judeu/puro – gentio/impuro. E seu esforço vai todo na direção da busca da superação dessa dicotomia.
Sobre a estrutura do livro de Atos dos Apóstolos, chama a atenção os paralelismos nas narrativas, praticamente duplicando as experiências protagonizadas por Pedro, o apóstolo dos judeus, e Paulo, o apóstolo dos gentios. A construção literária acaba demonstrando, por fim, que ambos foram apóstolos tanto para os judeus como para os gentios.
A presente perícope inscreve-se no contexto amplo dessa tensão entre os mundos judaico e gentílico e, em contexto próximo, o do capítulo 10, que narra a experiência de Pedro (judeu/cristão) com um centurião romano (gentio) chamado Cornélio, sua conversão e a de toda a sua “casa”.
Pedro chega à casa de Cornélio não sem relutância. Sucedeu com Pedro, assim como sucedera com Paulo, que para ser convencido a levar o evangelho a um grupo de mulheres no continente europeu, teve que passar pela experiência mística de uma visão enigmática de um “homem” que lhe rogava: Passa à Macedônia e ajuda-nos (At 16.9).
No caso de Pedro, também em um momento de êxtase místico, aparecia-lhe um mensageiro dizendo-lhe que comesse comida não kosher, isto é, comida considerada impura pela cultura judaica. Só depois de muita resistência e acirrada discussão é que Pedro, finalmente, e ainda um tanto contrariado, se decide a ir até Cesareia, onde Cornélio residia.
Essa experiência mística de Pedro se dera quando estava hospedado em Jope, na casa de um certo Simão, o curtidor. Pouco antes da visão Pedro havia ressuscitado uma mulher piedosa, exímia costureira, cujo nome aramaico era Tabita – Lucas faz questão de mencionar a versão grega do nome, Dorcas, que significa “gazela”. Essa mulher vivia na cidade vizinha de Lida e, pelo que se pode depreender, ali havia uma comunidade de viúvas, outro paralelo com a história de Lídia, a vendedora de púrpura, na Macedônia, e que dirigia uma sinagoga composta de mulheres piedosas que se reuniam à beira de um rio.
Chegando em Cesareia – que fora edificada por Herodes e recebera esse nome em homenagem a Cesar Augusto –, é recebido na casa de Cornélio, centurião romano. Isso implicava vários problemas para um judeu: primeiro, Cornélio era um gentio, impuro por definição; segundo, era um romano, portanto representante do poder opressor que mantinha os judeus subjugados pela força bruta; terceiro, era um militar, por meio de quem a face mais violenta do Império Romano se manifestava. Podemos presumir a temeridade com que Pedro se aproxima da residência daquele homem.
Vale lembrar que, em algumas passagens do Evangelho de Lucas, oficiais romanos são apresentados com certo protagonismo simpático à proposta do Reino. Menciono brevemente aqui duas passagens: no capítulo 7 de Lucas é mencionado um centurião que, segundo testemunho de muitos, tratava os judeus com elevada consideração (v. 5). Esse intercede junto a Jesus por um servo que estava à morte, gravemente enfermo, e Jesus atende seu pedido e cura o servo. E em Lucas 23.47 é mencionado que um centurião, ao pé da cruz, professa sua fé dizendo: Verdadeiramente, esse homem era justo. O autor, evidentemente, procura estabelecer uma relação no mínimo diplomática entre judeus, cristãos e romanos.
É verdade que Pedro, diferentemente de Paulo no Areópago, não começa muito bem seu primeiro ato missionário entre os gentios. Sua antipática saudação foi: Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar--se a alguém de outra raça (At 10.28). Em seguida, tenta emendar de um jeito meio atravessado: Mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo.
A universalidade do evangelho então passa a ser o tema do “sermão” que se segue: Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo lhe é aceitável. Esta é a palavra que Deus enviou aos filhos de Israel, anunciando-lhes o evangelho da paz, por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de todos [...] (At 10.34-36).
O discurso se alonga, mas é súbita e inesperadamente interrompido pelo próprio Espírito Santo. Aqui começa nossa perícope:
(Obs.: As expressões destacadas entre parentes referem-se aos termos originais gregos transliterados e a versão utilizada foi a Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.)
Ainda Pedro falava (laleō = emitir voz ou som) estas coisas (rhēma = palavra proferida por viva voz) quando caiu (epipiptō = tomar posse de) o Espírito Santo sobre todos (pas = todo, tudo, qualquer um) os que ouviam a palavra (logos = palavra que expressa uma ideia) (v. 44) – Esse texto coloca em xeque a propalada doutrina do batismo do Espírito Santo como sendo uma segunda, ou terceira, bênção. Era de se esperar que primeiro alguém passasse pelo batismo com água, para então experimentar o batismo do Espírito. Aqui, entretanto, o Espírito é derramado sem qualquer pré-requisito ou formalidade. A quantidade variada de termos do campo semântico relacionado à “palavra” empregados nesse breve versículo chama a atenção. A palavra como som, discurso, ideia é interrompida pela “ação” do Espírito Santo, que se apossa de todos, sem exceção.
E os fiéis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro, admiraram-se (existēmi = tirar da posição, deslocar), porque também sobre os gentios (ethnos = tribo, nação, grupo) foi derramado (ekcheō = despejar, distribuir amplamente) o dom (dōrea = dádiva, presente) do Espírito Santo (v. 45) – “Admirar-se” (em gr. existemi) denota a noção de que os fiéis, isto é, os cristãos judeus – circuncidados, portanto – ficaram desestabilizados com o ocorrido entre os incircuncisos. É parte do contexto a convicção dos judeus de então de terem a primazia, senão a exclusividade, na economia sagrada. Outro aspecto a ser destacado é que o Espírito é presenteado (dōrea), isto é, ofertado gratuitamente a todas as etnias. Não foi preciso circuncisão, nem batismo, nem conversão, nem qualquer outro pré-requisito para que isso acontecesse.
[...] pois os ouviam falando em línguas (glōssa = idioma ou dialeto) e engrandecendo (megalynō = tornar grande, magnificar) a Deus (v. 46) – O texto não oferece base para se supor que se tratasse de línguas místicas. Pode ter sido simplesmente uma referência ao fato de que aqueles não judeus estavam glorificando a Deus nos seus próprios idiomas ou nos idiomas que eram empregados na época naquela região. Podemos citar o grego e o latim, além do aramaico. Como a casa toda de Cornélio estava ali incluída, bem pode ser que servos e servas, oriundos ainda de outros grupos étnicos, o que era muito comum de acontecer, tenham se expressado nos seus próprios idiomas ou dialetos.
Então, perguntou (apokrinomai = responder a uma questão) Pedro: Porventura, pode alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? (v. 46-47) – Na versão de Almeida, preferiu-se traduzir apokrinomai por “perguntar”, em lugar de “responder”, provavelmente por questão de coerência semântica. Contudo, podemos, sim, perceber que a “pergunta” de Pedro é, na verdade, sua resposta a uma discussão, provavelmente muito tensa e acalorada, a respeito da questão se aqueles estrangeiros poderiam ser ou não inseridos na comunidade dos seguidores de Cristo. A lógica empregada por Pedro foi a de que se Deus deu aos gentios o “maior”, como eles poderiam negar-lhe o “menor”. Deus deu a eles o Espírito Santo, que confirma a inclusão dos gentios no Reino, então não seria coerente negar àquelas pessoas o menor: o sacramento do Batismo, que marca a inserção na comunidade de fé, a igreja. [...] estes que, assim como nós [...], eis a razão da admiração dos discípulos, que Deus trate os outros da mesma maneira que trata a nós. Vale lembrar aqui discussão semelhante que tiveram Filipe e o Eunuco, no deserto a caminho de Gaza (At 8.36-38).
John Wesley comenta o versículo 47 dizendo: “Ele [Pedro] não afirmou que, por eles terem recebido o batismo do Espírito, eles não precisariam do batismo nas águas. mas ocorreu exatamente o contrário: se eles receberam o Espírito, logo, devem ser batizados nas águas”. E completa seu raciocínio dizendo: “Os homens, ou receberam ou não receberam o Espírito Santo. Se não receberam, que se arrependam, disse Deus, e sejam batizados e recebam o dom do Espírito Santo. Se já receberam, se já foram batizados com o Espírito Santo, então quem pode proibir o batismo nas águas?”.
E ordenou (prostassō = mandar, ordenar, prescrever, comandar) que fossem batizados em nome de Jesus Cristo” (v. 48) – Talvez o emprego do termo “ordenou” seja apenas retórico, mas talvez não. Talvez denote que a aceitação do parecer de Pedro não foi recebido tão voluntária e deliberadamente, de modo que teria sido necessária uma atitude mais enfática de Pedro, determinando que assim se fizesse. Podemos supor que não tenha havido unanimidade, tanto é assim que o assunto continuará a ser debatido no capítulo seguinte, pois a notícia chegou à comunidade de Jerusalém: Quando Pedro subiu a Jerusalém, os que eram da circuncisão o arguiram (diakrinō = separar-se em um espírito hostil, opor-se, lutar com disputa, contender), dizendo: Entraste em casa de homens incircuncisos e comeste com eles (At 11.2-3). Pedro, então, teve que se explicar longa e detalhadamente.
Então, lhe pediram que permanecesse com eles por alguns dias (v. 48). Também aqui há um evidente paralelo com a história de Paulo e Lídia, que o constrangera a ficar hospedado na casa dela. Tal como Paulo, Pedro se vê diante de um impasse. Ele começara dizendo que, como judeu, não poderia sequer entrar na casa de um gentio, muito menos comer com eles. Agora se vê na situação de ter de hospedar-se por vários dias com esses estrangeiros e, por suposto, ter de comer a comida impura deles.
A missão de evangelizar é abrir-se para o outro e a outra, o diferente e a diferença, e não se limita à realização de discursos. Implica ainda quebrar barreiras, superar preconceitos, adotar uma atitude de inclusão e uma postura de acolhimento. E mais do que coexistir, é estar disposto a conviver, sentando-se à mesma mesa, é partir e repartir o pão em ação de graças (eucaristia), e singeleza de coração, que é o que Jesus faria. É reconhecer que o amor sem limites de Deus torna puras todas as coisas e todas as pessoas, por meio da solidariedade humana.
Talvez a intenção original do pedido para que Pedro e os discípulos permanecessem por mais tempo com eles fosse que os novos convertidos pudessem aprender mais e aprofundar o conhecimento a respeito do evangelho, mas temos razões mais que suficientes para supor que quem mais aprendeu com essa estadia foi o próprio Pedro e os demais discípulos missionários que o acompanhavam.
3 Meditação: Ninguém é tão desprezível, afinal!
[...] estes que, assim como nós [...] (At 10.47).
Filipe, eleito juntamente com Estêvão e outros cinco ao diaconato (cf. At 6.1-7), já havia pregado o evangelho aos samaritanos (cf. At 8.4-8), com grande adesão daqueles, e batizado o prosélito etíope, mais conhecido como o eunuco. O itinerário proposto pelo autor de Atos enunciado no capítulo 1 está em pleno curso: [...] recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra (v. 8).
A história de Pedro e Cornélio, como bem observa Theodor Ferris, é a respeito da primeira vez que um gentio foi pública e oficialmente recebido na comunidade cristã, sem a necessidade da conformação às exigências da lei judaica – isto é, sem a necessidade de que fosse circuncidado primeiro. Cornélio foi, portanto, o primeiro caso de batismo de um não judeu (incircunciso) na história da igreja de Cristo. O episódio marca, assim, o ponto no qual o cristianismo, dramática e decisivamente, declara sua independência do judaísmo (cf. BUTTRICK, 1951-57, p. 132).
Quanto ao tema da abertura do evangelho para as nações estrangeiras, Paulo é considerado o apóstolo dos gentios, mas Pedro é quem tem a primazia de ter sido o primeiro a levar o evangelho a um incircunciso.
Contudo, tal abertura não se deu sem resistência. Para que Pedro se convencesse (bem como os leitores do livro de Atos), a narrativa se reveste de colorido místico, mítico até, fazendo menção a momentos de êxtase, visões e vozes misteriosas.
A necessidade que temos de passar por experiências extraordinárias para, só então, nos convencermos de que temos que mudar nosso jeito de ver e fazer as coisas é no mínimo curiosa.
Não é verdade que ainda ficamos admirados quando nos damos conta de que Deus trata os outros da mesma maneira que trata a nós?
Com evidente constrangimento, Pedro dirige-se à casa de Cornélio. Não faz lá o mais simpático dos discursos. Mas a Palavra de Deus é maior que as palavras de Pedro, pois enquanto esse ainda pronunciava suas sentenças, o Espírito Santo se encarregou de fazer com que os presentes ouvissem, em meio às provisórias palavras de Pedro, a Palavra definitiva de Deus.
E, independente da vontade de Pedro ou de quem quer que fosse, todos ali foram tomados pelo Espírito Santo. A expressão “todos” nos permite supor que tanto adultos como crianças tenham recebido essa dádiva, e também os escravos e as demais pessoas que para ali tenham se dirigido na ocasião. Gente de diferentes origens, línguas, costumes, credos... Todos, de repente, são “aunados” por um mesmo Espírito.
Conquanto todos tenham tido sua identidade preservada, pois continuavam a falar seus próprios idiomas, estavam agora unidos no propósito comum de engrandecer o nome de Deus, porque o evangelho reúne as pessoas separadas, aproxima as diferentes, inclui as excluídas.
Nada poderia ser mais improvável do que uma aproximação entre Pedro e Cornélio, especialmente se levarmos em conta o imenso fosso cultural que havia entre eles. Cornélio era gentio (incircunciso), cosmopolita, integrava a elite, ilustre oficial militar, pertencia ao topo da pirâmide social do seu tempo, e, não nos esqueçamos, representava o governo opressor e inimigo, e era aliado da odiosa nobreza herodiana, com quem haviam sido corresponsáveis pela condenação e execução de Jesus, a quem Pedro seguia.
Por outro lado, Pedro era judeu, galileu provinciano, sem patentes ou honras, operário pobre relegado a subsistir precariamente na extremidade mais inferior da pirâmide social, e um seguidor do crucificado Jesus, declarado inimigo público do sistema.
Isso para não falar das amarras legais que mantinham cada um deles atados aos seus mundos e cosmovisões. No caso de Cornélio, o Direito Romano, implacável e impiedoso. No caso de Pedro, a lei cerimonial excludente do judaísmo do seu tempo. É nesse contexto que emerge o evangelho com a lei inexorável e invencível do amor.
Para finalizar, apontamos para a dinâmica da perícope que nos apresenta o tema da universalidade, inclusividade e solidariedade do evangelho:
1. Universalidade: o Espírito Santo desce sobre o estrangeiro e todos da sua casa, sem distinção de etnia, idade, sexo, língua ou condição social – o Espírito Santo não pode ser contido pelos nossos preconceitos, nem ser confinado às quaisquer fronteiras que queiramos erigir.
2. Inclusividade: todos são batizados: o evangelho, a despeito de ser uma experiência que transcende instituições, dogmas e rituais, não nega aos seus o direito aos sinais sacramentais, visíveis, portanto, que tornam evidente e pública a inclusão no seio da família da fé daqueles e daquelas que outrora eram excluídos, marginalizados e proscritos.
3. Solidariedade: permanecendo na casa de Cornélio alguns dias, Pedro e seus acompanhantes repetiram o que Jesus tantas vezes havia feito: partiu e repartiu com eles o pão em ação de graças, celebrando a verdadeira eucaristia, não a do reino de Herodes, nem a do império de César, mas a do novo mundo de Deus, cujo fundamento é o grande mandamento do “amor sem limites, amor sem idade, amor por toda a humanidade”.
Não raro, tentamos racionalizar e justificar nossos preconceitos alegando que a igreja ainda não está preparada para a quebra de certas barreiras com vistas à inclusão do diferente e da diferença: refugiadas/os, sofredoras/es de rua, dependentes químicos, LGBTQ+, e tantas outras pessoas de grupos étnicos marginalizados, de condições socioeconômicas desfavorecidas, ou mesmo de certas convicções político-ideológicas questionadoras.
“Temos que ter paciência histórica”, costumamos repetir. Mas o Espírito Santo tem pressa! Ele não pode esperar. Por essa razão, enquanto ainda discursamos e tentamos justificar nossos preconceitos, o Espírito está tomando a dianteira e, com ou sem a anuência das autoridades institucionalizadas, está atuando de maneira muito concreta para incluir as pessoas excluídas, acolher as proscritas e restaurar a dignidade daqueles e daquelas que outrora eram considerados desprezíveis.
Em suma, para o evangelho ninguém é desprezível.
4. Imagens para a prédica
O crescimento, muitas vezes, é doloroso. Assim comenta esta passagem Theodor P. Ferris:
O cristianismo foi uma criança que cresceu num lar judaico. E nunca será capaz de reparar seu débito de gratidão a esse lar. [...] mas como todo rebento, ele teve que deixar sua casa materna. A amplitude das implicações do cristianismo não permitia que este ficasse confinado ao judaísmo. O judaísmo era a religião de uma nação, o cristianismo, a religião de todas as nações. As roupas apertadas tinham que ser desvestidas; o exclusivismo do judaísmo tinha que ser substituído; seu provincianismo teria que ser trocado pelo universalismo. A ruptura tinha que ser feita, e foi feita (BUTTRICK, 1951-57, p. 132).
A imagem de um corpo que cresce, no qual as roupas velhas já não se ajustam, pode ser desenvolvida tanto no sentido de que é preciso compreender e assumir o caminho natural do crescimento, quanto no sentido de que insistir em tentar preservar antigos hábitos e roupagens se torna um contrassenso.
O caminho do cristianismo para a universalidade e a inclusão plena é imperativo e inexorável. Forçá-lo no sentido inverso é apequenar o evangelho.
5. Subsídios litúrgicos
Hino: Amor sem limites
Amor sem limites
Amor sem idade
Amor por toda a eternidade
(Poema composto por Charles Wesley, irmão de John Wesley, ambos fundadores do Metodismo. Música: Dadid Junker. Áudio disponível em:
Coleta
Oramos hoje, Senhor, pela unidade de todos os humanos, num mesmo espírito de solidariedade e respeito mútuos. Oramos por todas as pessoas que creem e também pelas que não creem, para que a dignidade humana seja respeitada e a vida esteja acima de tudo. Oramos em nome daquele em quem todos os nomes se encontram. Amém.
Intercessão
Deus, que alimentas as pessoas famintas, como mãe amorosa, tu desejas nutrir teus filhos e tuas filhas até que estejam saciados e satisfeitos. Direciona-nos para ti somente, para que, aliviados das nossas mais profundas ansiedades, nós possamos lograr com Cristo alimentar todos com o milagre do teu amor.
(Apresentação dos motivos de súplicas e intercessões.)
Redentor das nossas almas e sustentador das nossas vidas, visita teu povo com tuas bênçãos e derrama sobre nós tua força e coragem, para que possamos, em teu nome, servir à humanidade, generosa e fielmente, hoje e sempre. Amém.
Oração final
Senhor Jesus, é teu desejo que sejamos um, como tu és com o Pai,
e por isso esse também é o nosso desejo.
A despeito de todas as forças contrárias,
de todas as ameaças de dispersão,
de toda pressão e repressão desintegradoras…
Apesar de tanta maldade,
de tanto egoísmo,
de tanta intolerância…
Nós nos dispomos a fazer a tua vontade.
E, no que depender de nós,
nos comprometemos a construir a paz para toda a família humana.
Cumpre em nós a tua palavra, ó Cristo,
de tal maneira que o mundo creia
que tu nos enviaste em missão de paz e em comunhão fraterna. Amém.
Bibliografia
BÍBLIA DE ESTUDO JOHN WESLEY. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020.
BUTTRICK, George Arthur. The Interpreter’s Bible: The Holy Scriptures in the King James and Revised standard versions with general articles and introduction, exegesis, exposition for each book of the Bible. New York: Abingdon; Cokesbury, [1951-57]. 12 v.
ESPÍNDOLA, Liséte; RAMOS, Luiz Carlos (Orgs.). Mil vozes para celebrar: hinos de Charles Wesley. Edição de Helmut Renders, Lucia H. C. Oliveira Lopes. São Bernardo do Campo: Editeo, 2007. 1 CD-ROM. ISBN 85-88410-73-2.
Voltar para índice do Proclamar Libertação 45