Prédica: Amós 5.18-24
Leituras: Mateus 25.1-13 e 1 Tessalonicenses 4.13-18
Autoria: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 23º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/11/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
Jorre o direito como água!
1. Introdução
As leituras bíblicas do culto deste domingo representam um forte convite – talvez mais do que isso, uma vigorosa interpelação – para inserir-nos de maneira crítica e proativa no mundo em que vivemos. O evangelho das dez meninas – cinco munidas de práticas de serviço ao projeto do reino de Deus e cinco mais ou menos descomprometidas – revela que a superficialidade e o fazer de conta não conduzem a bom termo. A profecia de Amós indica isso de forma mais incisiva ao questionar falsas esperanças e cultos vazios e ao propor um efetivo compromisso com o direito e a justiça. A Primeira Carta aos Tessalonicenses lembra que os vivos e os que já morreram enfrentam em condições iguais o encontro definitivo com Deus.
É admirável que o texto de Amós esteja entre as leituras de um culto, pois ele questiona o próprio culto. Mas um olhar atento evidencia que se trata de um questionamento de um culto viciado pela traição ao projeto e à vontade de Deus. Isso evoca o sentido mais profundo do próprio culto, que é celebrar a presença viva de Deus em nosso caminhar na história e nosso alegre e perseverante compromisso com os sonhos, as alegrias e os anseios de Deus. A escuta de sua palavra e a sempre renovada conversão a seus desafios devem caracterizar as celebrações das comunidades. Nelas, em vez de fugir dos problemas e desafios, temos de renovar o compromisso com o direito e a justiça, como lembra com força o profeta cuja profecia ocupa nossa reflexão de hoje.
2. Exegese
Quem não se surpreende com o profeta Amós? A surpresa pode ser de admiração, mas também de estranhamento, decepção, discordância ou mesmo indignação contra ele.
Natural de Tecoa, no Reino do Sul, agricultor e criador de gado, Amós experimentou um apelo avassalador da parte de Deus e foi profetizar no Reino do Norte, de onde acabou expulso pelo sacerdote do templo de Betel, Amasiá. Ele é uma voz alternativa à dos profetas que viviam do ofício junto aos templos de Israel. Não era pastor ou ministro religioso de alguma comunidade ou templo. E sua profecia em nada defendia os poderosos; pelo contrário, criticava-os veementemente.
Aos olhos dos bem-sucedidos da época, a profecia de Amós não fazia sentido e não podia ser tolerada. Isso porque Israel, o Reino do Norte, no século VIII a.C., sob o governo de Jeroboão II, passava por um momento de crescimento econômico e de expansão política e não sofria ameaças de alguma potência estrangeira. Amós, no entanto, via as coisas sob outro prisma. Talvez seja significativo que sua vocação tenha tido origem em visões, verdadeiros encontros com Deus. Essas visões fundamentavam sua leitura do que acontecia na época. A nuvem de fumaça do otimismo dos poderosos, incrementada pelo delicioso perfume dos ritos realizados no templo, impedia as pessoas de ver o que estava ocorrendo de fato. Amós via o que poucos viam. Talvez por isso teve de usar uma linguagem tão chocante. Era preciso acordar as pessoas e abrir seus olhos. O futuro deu razão ao profeta: algumas décadas mais tarde, os assírios arrasaram o Reino do Norte e destruíram Samaria (722 a.C.), levando ao exílio boa parte da população e introduzindo na região diversos grupos humanos de culturas e religiões diferentes.
O texto de Amós que tomamos como base para a prédica deste domingo está em 5.18-24. Situa-se no contexto dos oráculos contra Israel (cap. 3 a 6), que, por sua vez, dão continuidade aos oráculos contra as nações vizinhas e contra Judá e Israel (cap. 1 e 2). Os cap. 7 a 9 apresentam as visões que fundamentam a profecia de Amós.
A perícope em questão pode ser dividida em três partes: os v. 18-20 tratam do “dia do Senhor”; os v. 21-23 são críticas ao culto; e o v. 24 conclui com chave de ouro, conclamando para a prática do direito e da justiça. O que une o texto é a contraposição das duas partes iniciais à proposição do versículo final: em vez de cultivar falsas seguranças, com base no “dia do Senhor”, e de iludir-se com cultos descompromissados, Israel deve assumir o desafio de fazer o direito jorrar como água e a justiça correr como uma torrente inestancável.
A aposta no “dia do Senhor” é fortemente criticada por Amós, que vê nela uma ilusão (v. 18-20). Essa esperança desenvolveu-se historicamente como forma de reforçar a convicção de que os males que afligem o povo têm seus dias contados, pois Deus há de intervir mais radicalmente na realidade. Mas ela passou a ser usada como argumento para sustentar políticas injustas e insustentáveis. Era o caso no tempo de Amós. Deus seria a garantia de que nada de ruim aconteceria a Israel e que um dia Ele promoveria o domínio de seu povo sobre todos os povos vizinhos. Deus teria uma predileção pelo povo de Israel e não permitiria que ele sofresse derrotas. Deus estaria apenas esperando o momento oportuno para fazer Israel brilhar no meio das outras nações. Seria o “dia do Senhor”, um dia de luz.
Amós adverte que esse “dia do Senhor” será totalmente diferente: em vez de luz haverá trevas. Ou seja, nele Israel estará entre aqueles que serão aniquila- dos por Deus. E o profeta é enfático: não adianta querer escapar. Ele usa imagens para expressar a inexorabilidade desse dia: será como fugir do leão e cair nas garras do urso ou apoiar-se na parede e ser mordido pela cobra. Nós diríamos: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Portanto o “dia do Senhor” virá com certeza, mas será de terror para Israel. Esse anúncio está em sintonia com todo o livro de Amós. Há nele pequenos acenos de esperança, mas a tônica é a ameaça irrevogável.
A segunda parte (v. 21-23) apresenta uma dura crítica ao culto. Os verbos usados são muito fortes: “detesto”, “desprezo”, “não posso suportar”, “nada há que me agrade” “viro o rosto”, “não posso nem ouvir”. São mencionadas diversas manifestações litúrgicas ou ritos: peregrinações, assembleias, holocaustos, oferendas, sacrifícios... Parece que nada escapa à rejeição de Deus, sequer os belos cânticos e os deliciosos toques de harpas. Os motivos para tamanha indignação divina encontram-se sobejamente no conjunto do livro do profeta.
O v. 24, que constitui a terceira parte do texto, mostra que as críticas e os anúncios catastróficos não deixam de ser apelos e desafios para a conversão, pois Deus propõe que o direito e a justiça se tornem a prática comum, que o direito jorre como água e a justiça seja uma fonte inestancável.
É bastante razoável pensar que, na própria visão de Amós, Deus não rejeita sistematicamente o culto e não renega inapelavelmente seu povo. Mas uma religião que cultive ilusões infundadas (“dia do Senhor” como garantia de proteção) e pretenda afastar Deus das questões sociais (culto sem compromisso com os direitos das pessoas, especialmente dos pobres) precisa ser desmascarada. Ela precisa ser libertada e transformada. Ao contrário, uma religião que alimente com sua teologia e seu culto um saudável comprometimento com a construção de uma sociedade inclusiva, justa e fraterna terá o beneplácito de Deus.
3. Meditação
A fé em Deus gera esperança. A Bíblia está cheia de histórias que mostram intervenções de Deus. Essas histórias foram escritas para suscitar em nós a fé na presença e na atuação de Deus em nosso meio, em favor de seus filhos e filhas. A tal ponto desenvolvemos essa fé, que cultivamos uma esperança radical, escatológica, de que o reino de Deus vivido e anunciado por Jesus se plenificará pessoal e também universalmente. Com os cristãos das primeiras gerações oramos: “Vem, Senhor Jesus!”.
Somos também convictos adeptos do culto em nossas comunidades. Acreditamos que reunir-nos em comunidade, ouvir a palavra de Deus, unir-nos a ele na Santa Ceia, dirigir a ele nosso louvor, implorar seu perdão e apresentar-lhe nossos pedidos, tudo isso tem um significado e uma importância que não colocamos em discussão e cujos benefícios nem conseguimos descrever adequadamente.
Por que, então, temos de ouvir hoje as palavras duras do profeta Amós, arrasando uma das mais caras esperanças do povo de Deus (o “dia do Senhor”) e atropelando uma das mais preciosas e deliciosas práticas solicitadas pelo próprio Deus (o culto)?
A resposta é simples, mas perturbadora: Deus não pode ser manipulado para justificar práticas de exploração, violência ou exclusão de uma parte de seus filhos e filhas. A saudável teologia da esperança, como aquela do “dia do Senhor”, não pode fundamentar ilusões num futuro construído a partir de estrangulamentos e derramamento de sangue. Algo semelhante ocorre com a famosa frase de Paulo na Carta aos Romanos: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31). Fora de seu contexto, tanto a teologia do “dia do Senhor” como a afirmação de Paulo podem produzir falsas profecias e induzir a ilusões desastrosas. Também não adianta escrever na moeda do dólar “In God we trust” (nós confiamos em Deus) ou no real “Deus seja louvado”!
Algo semelhante pode ser dito em relação ao culto: a Deus não interessa um culto maravilhoso, mas chamuscado de manipulações e violações dos direitos de uma parte de seus filhos e filhas. Mais do que isso: ele não só não se interessa por tal culto, mas o detesta, por mais belo e comovente que seja. Esse é um culto que perverte o povo de Deus e não o santifica. É um culto que incentiva a injustiça e o fratricídio em nome de Deus. Por isso Deus não o aceita e manifesta diante dele sua indignação. O que torna um culto agradável a Deus é aquilo que lhe serve de base, ou seja, uma organização econômica, política, social e eclesial que promova a vida digna de todos os filhos e filhas de Deus, prioritariamente daqueles que são ou vão se tornando vítimas de um sistema seletivo e excludente. Não se trata apenas de práticas individuais. O julgamento, nesse caso, não é apenas de pessoas. Ele é também coletivo, porque se trata de questões políticas e sociais que ultrapassam as ações individuais de cada um de nós. Amós conclui suas denúncias com o apelo de que o direito corra no meio do povo como um rio e que a justiça seja como uma torrente no meio dele.
A tudo isso poderíamos acrescentar hoje a questão ecológica: não podemos simplesmente anunciar a esperança de que Deus há de salvar o mundo se nós continuarmos a depredar tudo e tornar inviável a vida humana em nosso planeta. Imaginemos um Amós nos dias de hoje verberando contra as teologias e os cultos das igrejas e religiões por não levar a sério os lamentos da mãe terra!
Se relacionarmos isso ao evangelho deste domingo, veremos que também esse traz um apelo semelhante ao de Amós: não basta uma comunidade ou igreja ser do grupo daquelas e daqueles que vão ao encontro do noivo; é preciso estar engajado no seu projeto de vida. É esse o sentido de estar munido com óleo para ter as lâmpadas acesas. A Primeira Carta aos Tessalonicenses também pode ser relacionada à profecia de Amós. Os vivos e os já mortos, todos estamos e estaremos em igualdade de condições perante Deus como indivíduos e também como comunidades.
Não se trata, portanto, de combater ou eliminar a teologia da esperança nem de abandonar ou destruir nosso culto, mas de acolher o enorme desafio de comprometer-nos com o projeto de Deus, um projeto de libertação e de vida para todos os seus filhos e filhas e para toda a sua criação. Então nossa esperança escatológica terá sentido, e nossos cultos serão como fontes de água viva.
4. Imagens para a prédica
Uma imagem para a prédica deste domingo pode ser a de filhos que excluem irmãos de direitos que pertencem a todos e mostram-se muito religiosos e carinhosos com os pais. Talvez estejam até conseguindo que os prejudicados achem normal aquilo que os mais fortes estão fazendo. É possível ainda que os pais permaneçam calados por algum tempo diante do que ocorre. Quem quebrará essa corrente de injustiças e de violação do direito dos fracos?
Outra imagem é fornecida a nós pelo Evangelho de Mateus: Se estivermos diante do altar para apresentar nossa oferenda e nos lembrarmos de que nosso irmão tem algo contra nós, devemos primeiro reconciliar-nos com esse irmão; depois podemos voltar para apresentar nossa oferenda (Mt 5.23-24). Essa recomendação representa bem a necessidade de haver coerência entre o culto e a vida. Podemos, inclusive, lembrar uma desagradável e incômoda denúncia de filósofos do século XIX que diziam que a religião era o “ópio do povo”, ou seja, uma forma de cultivar ilusões e alienações no meio do povo injustiçado. De fato, às vezes, a religião tem sido usada para criar ou manter uma consciência de fuga do mundo ou de aceitação de sofrimentos injustos, com promessas de que haverá uma grande recompensa no céu. Nesse caso, pouco ou nada importaria a transformação da realidade social, econômica, política, cultural e religiosa na qual vivemos.
Em situações como essas, cabe muito bem a palavra de Amós.
5. Subsídios litúrgicos
Considerando as mensagens de Amós e do Evangelho de Mateus, pode-se realizar no culto um momento penitencial expressivo, especialmente na linha da comunidade comprometer-se com os direitos humanos, a justiça social e a prática da solidariedade e do amor entre as pessoas.
As imagens do direito correndo como um riacho e da justiça como um córrego que não se consegue estancar (Amós), bem como aquela das meninas com lâmpadas com e sem o óleo combustível (evangelho), podem também ser representadas por meio de símbolos (cascatinha com água corrente, lâmpadas ou velas acesas e apagadas) colocados no local desde o início do culto ou introduzidos em momento oportuno.
A escolha dos hinos também pode ser feita com o critério da coerência da vida com o culto litúrgico e da exigência de haver na sociedade respeito aos direitos de todos, especialmente dos socialmente fracos.
Bibliografia
BALANCIN, Euclides Martins; STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Amós: a denúncia da injustiça social. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2005.
BONORA, Antonio. Amós, o projeta da justiça. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1983.
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