Prédica: 1 João 3.16-24
Leituras: Salmo 23 e João 10.11-18
Autoria: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: 4º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 22/04/2018
Proclamar Libertação - Volume: XLII
Amor: teoria e prática
1. Introdução
Este auxílio refere-se ao 4º Domingo da Páscoa (Jubilate). Neste dia, Deus é lembrado como bom pastor (Sl 23 e Jo 10.11-18). Mas também estamos na continuação das leituras do tempo de Páscoa (ano B): Atos e 1 João. Parece um agrupamento artificial dos textos escolhidos e, por isso, num primeiro olhar, temos uma temática muito diversa. Porém, podemos observar certa continuidade de temas ao redor do conceito “Deus é amor”, no sentido de que Cristo/Deus agiu amorosamente em favor dos seus. No Salmo 23, o salmista coloca-se diante de Deus reconhecendo-se como uma ovelha bem cuidada por seu pastor. Ele se sabe parte do rebanho divino e se sente bem cuidado, apesar dos possíveis problemas no caminho. No Evangelho de João, estamos na segunda metade do texto, em que Jesus, o bom pastor, coloca-se em contraste com o mercenário. Também nesse texto existe uma grande relação entre as ovelhas e o pastor, ou seja, entre Jesus e seus seguidores. No livro de Atos, encontramos Pedro diante do Sinédrio, argumentando que aquilo que fi zeram foi a partir do nome de Jesus, que foi considerado como a pedra rejeitada, mas que na verdade era a pedra principal. Nesse sentido, a Primeira Carta de João continua desenvolvendo a temática do amor que Cristo teve, agora como base para o amor entre os discípulos.
O nosso texto não foi estudado em sua totalidade segundo o atual corte do lecionário. Mas foi estudado em parte em três volumes de PL anteriores, sendo no tempo comum no PL III (v. 18-24), no PL IX como parte da Série: Quer seja oportuno, quer não (v. 13-18), e no 5º Domingo da Páscoa no PL 22 (v. 18-24).
2. Exegese
A Primeira Carta de João é um texto que argumenta a partir da teologia da tradição joanina. Assim, temos a diferenciação entre os que são parte da comunidade de fé e o mundo, aqueles que estão na luz e aqueles que estão nas trevas. 1 João trava uma batalha contra os hereges que querem diminuir o sentido e o poder da encarnação e morte de Jesus. Nessa carta, o autor se coloca perto do fim dos tempos e preza para que a comunidade permaneça firme numa prática condizente com a confissão de Jesus como Filho de Deus.
Nosso texto de estudo encontra-se inserido num bloco que vai do 2.18 ao 3.24. Num primeiro momento, em 2.18-27 é ressaltado o critério da confissão de Jesus como o Filho de Deus, e num segundo momento, em 2.28-3.10 é lembrado que os filhos de Deus não devem pecar, pois na prática da justiça encontra-se a diferenciação entre os filhos de Deus e os filhos do diabo. Em 3.11-15, observamos o exemplo de Caim e sua ação como filho do diabo, sendo o protótipo daquele que não ama e permanece na morte. Com esse panorama entramos em nosso texto.
Uma primeira aproximação do texto demonstra que existem diversas palavras que se repetem no texto em estudo: conhecer/saber (v. 16, 19, 20, 24), amor/amar (v. 16, 17, 18, 23), coração (v. 19, 20, 21), permanecer (v. 17, 24), mandamento/s (v. 22, 23, 24).
v. 16: Origem do amor: Cristo deu sua vida. O autor coloca como base de sua argumentação posterior que a ação salvífica de Cristo é o alicerce da ação das pessoas que integram a comunidade de fé. O verbo ginosko é interpretado tanto como conhecer (ARA) quanto como saber (NTLH). A NVI utiliza os dois termos como sinônimos intercambiáveis. Ginosko é o conhecimento como entendimento, sabedoria que tem aplicação.
O tipo de amor apresentado como base para os cristãos é o agape, aquele amor que tem relação com interesse ou preocupação. É um amor relacional que vai além do companheirismo.
Interessante também observar que o o verbo “devemos” é um termo relacionado literalmente com dívidas financeiras, com estar obrigado a quitar alguma dívida obtida anteriormente. No caso da NTLH, o agir em relação às pessoas é causado pelo agir de Cristo.
v. 17-18: Como é o amor de verdade? Depois do baseamento teórico, o autor coloca as pessoas diante de um exemplo prático que pode ter acontecido. Uma pessoa com bios tou kosmou (traduzido de diversas formas: NTLH: rico; ARA: recursos deste mundo; NVI: recursos materiais) fecha suas splanchnon (entranhas, sede das emoções, em nosso uso, coração, onde se tem compaixão). Poderia ser dito da seguinte forma: uma pessoa que não tem compaixão pelo outro e não compartilha aquilo que tem não pode realmente amar a Deus.
A partir do exemplo da pessoa com bens, o autor indica que não é possível somente amar por meio de palavras ou com a língua (nós diríamos amar da boca para fora). Mas é solicitado que as pessoas amem em ergon (ato, ação, realização) e em aletheia (verdade, realidade). Em resumo, agape resulta em ações concretas.
v. 19-22: Como saber se estamos na verdade? Depois do marco teórico e de um exemplo prático, o autor faz delineamentos para que cada indivíduo possa saber se o seu agir está de acordo com aquilo que foi colocado anteriormente. Por isso utiliza o verbo ginosko no tempo futuro (conheceremos), diferentemente do v. 16, onde já é conhecido. Agora será uma aplicação futura e que atualiza aquilo que é conhecido.
O coração (kardia) é entendido como o centro e a fonte da vida interior, das emoções, da vontade, aproximando-se ao nosso conceito de “consciência”. Em nosso texto funciona como medidor do nosso agir, para conferir se é coerente com aquilo que foi solicitado. Teremos o reconhecimento do agir amoroso em verdade através daquilo que o coração indicar.
v. 20: Se o coração estiver condenando. O condenar dos v. 20s (kataginosko) significa não apenas acusar (ARA). Neste caso, também denota a detecção do mal em si mesmo. Aqui se escreve sobre o reconhecimento da condenação que se dá a partir daquilo que pode ser falado, pensado ou se realmente está sendo reconhecido no coração (no lugar da consciência). Estamos na procura do amor consciente, ou seja, daquilo que é realizado de forma não automática ou intuitiva.
v. 20b: Deus ajuda. Diversos autores indicam que João não escreve aqui para assustar, mas para consolar os que já são parte do corpo de Cristo e que deveriam viver no amor ativo pela fé. Deus desculpa aquele que acusa a si mesmo. Deus acolhe o cristão que reconhece em si mesmo a culpa daquilo que foi feito errado.
v. 21-22: Se o coração não estiver condenando, teremos bons resultados. Se a pessoa não sentir peso no coração, ela estará numa relação de confiança diante de Deus (melhor do que coragem, como traduz a NTLH). Por isso podem ser realizados pedidos que serão concretizados. A lógica apresentada para receber aquilo que é pedido relaciona-se, por um lado, com um coração que não condena, ou seja, a pessoa faz, constrói com ações de amor; por outro lado, com o guardar, cumprir dos mandamentos de Deus. Então estamos diante de uma duplicidade que denota não somente o crer, mas também o agir a partir desse crer.
v. 23: Motivação do amor: mandamento do amor dado por Cristo. Dando continuidade ao versículo anterior, é lembrado o objeto do crer, ou seja, crer no nome de Cristo, no sentido de que o nome lembra a autoridade de Jesus como Filho de Deus. Assim também é indicada a relação amorosa entre os cristãos, a partir daquilo que Cristo indicou em João 15.12, o mandamento do amor.
v. 24: União com Deus a partir de guardar o mandamento. Para terminar nosso texto e, ao mesmo tempo, servir de elo com o próximo capítulo, aparece a aplicação de tudo aquilo que foi dito até agora, ou seja, a permanência ou continuidade (menō) das pessoas em Deus e de Deus nas pessoas, intensificando assim a relação entre a pessoa e Deus. Ao mesmo tempo, é apresentado um novo medidor dessa permanência, que é o Espírito. A explicação sobre o Espírito é desenvolvida posteriormente em 4.1-3.
3. Meditação
Só pode amar quem foi amado. Nesse sentido, o autor da Primeira Carta de João lembra aos cristãos que foram tornados aptos a amar por Cristo. Ao dar sua vida em sacrifício extremo realizado por amor, Jesus possibilita que as pessoas amem. Com esse argumento é iniciado nosso texto de estudo. O que é desenvolvido depois é a relação verdadeira entre saber e agir. Pois o que Cristo realizou faz com que as pessoas, além de terem o conhecimento teórico, sejam exortadas à prática. A fé em Deus vai além do simples conteúdo conhecido pelo crente: a fé leva a uma prática diferenciada que permite exprimir esse conteúdo em ações concretas.
O que é observado em nosso texto não é só para alguns, mas é para todas as pessoas que seguem a Cristo. Os que estão dentro da comunidade de fé devem experimentar o amor de Cristo em suas vidas de forma que possam transmitir esse amor aos demais. Não existe uma casta especial de pessoas que, por serem mais santas ou terem certas atribuições, devem realizar ou deixar de realizar certas ações. Em nosso texto é indicado que todas as pessoas pelas quais Cristo morreu vivem o amor em todas as suas ações. Aqui não temos uma luta entre teoria e prática, mas a complementaridade entre o saber conhecido e o saber exercitado.
Fé e amor andam juntos. Assim também a fé não é concorrente do amor ou das boas obras, mas, ao contrário, é o fundamento a partir do qual a pessoa que reconhece a graça de Deus age em relação com as outras pessoas. Muitas vezes se faz uma diferença entre o Jesus da fé que acredita e o Jesus do amor em ação, entre aquilo que cremos em nosso coração e aquilo que fazemos com nossas mãos. Mas o texto nos convida a não separar esses dois aspectos do ser cristão. Essas duas convicções (a primazia da fé e a primazia do amor) estão profundamente embebidas na tradição joanina. Na carta, o autor age como comentarista e atualizador daquilo que foi colocado no evangelho.
Se na época de Lutero a principal preocupação das pessoas era a realização de obras para alcançar a salvação, hoje nós estamos no outro extremo. O nosso problema é a falta de boas obras. A apatia e o individualismo afetam o agir cristão: “A salvação é minha somente, os outros que se virem para tê-la”. Barreiras individuais são colocadas e a fé não é mais vivida de forma coletiva. Muitas vezes tem-se a impressão de que a vivência coletiva atrapalha o exercício da espiritualidade. Assim, as boas obras, frutos da fé em amor, chegam a ser consideradas desnecessárias, pois o próximo não tem mais nada a ver com a salvação alcançada pela fé. Em nosso contexto, o próximo torna-se até um elemento que atrapalha a vivência individualista da fé.
Interessante observar que, já naquela época, o autor coloca o indivíduo e a sua consciência no centro. A própria pessoa deverá saber se pode dormir com a consciência tranquila ou não. Não existem aqui parâmetros externos ou algum agente externo que indique para o crente se está exercitando sua fé corretamente. Não precisa de alguém que o acuse exteriormente. Cada pessoa tem a possibilidade de ter o controle sobre suas ações e ter a certeza de que está realizando a ação correta. Mas, depois de realizar as ações e ter a consciência tranquila, deve--se observar se o que foi realizado é realmente em benefício das outras pessoas de acordo com a vontade divina, e não somente o resultado de uma consciência dopada pelos valores maléfi cos. Aqui entra em jogo a ação do Espírito de Deus, que permite ter um medidor externo que ajuda a consciência na sua medição.
Ninguém deve ser obrigado a amar, mas o agir cristão tem como base o amor. Da pessoa cristã brota o amor, assim como de um manancial brota água. Não é por obrigação que o cristão ama, mas porque é sua essência, seu ser. Fazer as obras da fé em amor é copiar do melhor jeito possível o amor divino. O agir em amor leva a um novo estágio nas relações humanas. O próximo não é empecilho, ao contrário, é um facilitador no cumprimento da vontade divina e no exercício da espiritualidade cristã.
4. Imagens para a prédica
Uma reportagem falava sobre o aumento da população em situação de rua em algumas cidades. Dizia que algumas prefeituras ofereciam uma passagem para que essas pessoas voltassem para seus lares e lugares de origem, mas a grande maioria se recusava voltar. O repórter indicava que as pessoas não deviam dar qualquer tipo de ajuda, forçando assim as pessoas a voltarem ao seu lugar de origem. Qual é a verdadeira ajuda? Dar um pouco agora para acalmar a consciência ou ajudar realmente para que voltem ao convívio familiar? O que realmente estava por trás da reportagem? Seria o interesse de “limpar” as ruas ou ajudar aquelas pessoas?
Como um mecânico sabe de máquinas e como um agricultor sabe da roça, um cristão deveria saber as coisas de Deus e o que Deus quer e ensina, vivendo de acordo com aquilo que sabe e prega.
A cruz tem duas barras, uma vertical, que lembra a relação de Deus com o indivíduo, e outra horizontal, que lembra a relação entre as pessoas. Para a cruz ser cruz, deve ter os dois elementos. Assim também a fé cristã deve levar em conta tanto a relação da pessoa crente com Deus como a relação das pessoas entre si.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Amoroso Deus, sabemos que Jesus fez seu sacrifício por cada uma das pessoas que acreditam em ti, mas muitas vezes nos esquecemos que isso foi feito por amor. Ao viver nossa vida, esquecemos que nossos pensamentos, nossas palavras e nossas ações são refl exo daquilo que acreditamos. Vivemos neste mundo como se o amor de Cristo não valesse para as outras pessoas. Nosso agir é mesquinho. Ainda que nossa consciência nos alerta, continuamos no pecado. Ajuda-nos, Senhor, para que escutemos a nossa consciência e vivamos o teu amor com ações concretas a cada momento. Permite que teu Espírito Santo nos guie na verdadeira fé e no verdadeiro amor. Oramos em nome de Cristo, que por
amor morreu por nós. Amém.
Oração do dia: Deus, tu que és amor, obrigado por tudo o que Jesus fez e falou, obrigado especialmente pelo seu sacrifício na cruz. Ajuda-nos para que possamos viver realmente o amor de Cristo em nossa vida diária. Permite que possamos ter uma consciência tranquila e que nossas ações sejam um sinal do teu amor neste mundo. Pedimos em nome de Cristo. Amém.
Bibliografia
BULL, Klaus-Michael. Panorama do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2009.
ODEN, Thomas C. (ed.). Ancient Christian Commentary: James, 1-2 Peter, 1-3 John. Jude. New York: Routledge, 2013.
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