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ID: 2690

1 Coríntios 11.23-26 - Quinta-feira da Paixão - 14/04/2022

Auxílio Homilético

14/04/2022

Prédica: 1 Coríntios 11.23-26
Leituras:  Êxodo 12.1-4(5-10), 11-14 e João 13.1-17, 31b-35
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 14/04/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI

Discernir o corpo

1. Introdução

Não é a primeira vez que este texto, previsto para a pregação na Quinta--Feira Santa, está sendo contemplado com uma meditação nesta série de auxílios homiléticos. Vale a pena comparar as anteriores (cf. PL v. V, p. 65; v. 24, p. 127; v. 27, p. 94; v. 37, p. 120). Cada uma possui suas características. É o que, a seu modo, vale também para os textos laterais. No livro do Êxodo é falado da preparação da primeira celebração da Páscoa antes de Israel sair do Egito. É o evento fundante desse povo, comemorado anualmente em grande ritual. Também Jesus nele se inspira, reunindo-se com seus discípulos “na noite em que foi traído” para com eles comer a Páscoa (Mc 14.12s; 1Co 11.23). Enquanto isso o assunto do Evangelho de João é o lava-pés ocorrido na mesma ocasião. Ambos os textos, pois, têm relação, mais ou menos direta, com a Santa Ceia cristã. E é essa que está em foco nesse texto da Primeira Carta aos Coríntios, razão para dedicar-lhe privilegiada atenção.

Paulo lança mão de tradição em curso nas comunidades. Assim ele o diz, e assim o confirmam os paralelos nos evangelhos sinóticos (cf. Mt 26.26-29; Mc 14.22-24; Lc 22.17-20), caindo em vista a particular afinidade entre a versão de Lucas e a citada por Paulo. Não há necessidade de discutir neste contexto a relação entre elas. Basta constatar haver concordância no sentido de atribuir a origem do “sacramento do altar” a um ato “instituinte“. E é isso o que interessa à pregação nesta oportunidade.

2. O texto

A citação da tradição, que Paulo diz ter recebido do “Senhor”, tem finalidade polêmica. A formulação certamente não sugere que ela remonte a uma revelação especial ao apóstolo. Reveste-se, isto sim, da autoridade do próprio Jesus Cristo, imune a emendas ou manipulações verbais. Ela se volta contra abusos na celebração da ceia na comunidade de Corinto. Houve quem a aproveitasse para verdadeira comilança. Já naquela época o ato sacramental havia sido transferido para o final da reunião, distinto da agape, que consistia numa refeição comum. Para esta os membros traziam os comes e bebes de casa para consumi-los em conjunto. E é ali que aconteciam os excessos.

Evidentemente, ninguém ficava excluído do sacramento no final da reunião. E, no entanto, houve quem voltasse faminto para casa. Em vez de repartir com os irmãos e as irmãs, os membros mais abastados ficavam entre si e se regalavam, transformando a “ceia do senhor” numa “ceia própria” (11.21). Desconsideravam os membros pobres, obrigados a comparecer mais tarde devido a compromissos que tinham com os amos a que serviam. A ceia, pois, em vez de ser um exemplo de amor fraternal, exibia vergonhosa desigualdade social. Paulo fala até mesmo em “cismas” (11.18). A lembrança das palavras da instituição pretende corrigir uma prática em flagrante desacordo com o espírito do evangelho.

E, com efeito! As palavras proferidas por Jesus na oportunidade não deixam dúvidas quanto ao sentido do que veio a ser chamado “santa ceia”. Ela celebra a memória daquele momento, obedecendo à ordem de seu Senhor para repetir o gesto (11.24-25). Mesmo assim, seu significado não se esgota num ato comemorativo. As palavras de Jesus afirmam uma presença. Qualificam o pão distribuído entre os comungantes como sendo seu próprio corpo dado em favor dos comungantes, sim, em favor da humanidade. Algo análogo vale para o cálice. Ele representa a nova aliança firmada no sangue de Jesus.

Reside nisso o específico dessa ceia. Nela já não comemos pão qualquer, e, sim, o corpo de Cristo. Nós não tomamos bebida qualquer, e, sim, aquela à qual Jesus associa a constituição da nova aliança de Deus com seu povo. Na história da igreja, muito se tem discutido sobre como entender a identificação em ambos os casos. Tem-se desenvolvido a ideia da transubstanciação. Essa diz que, no ato da consagração, pão e vinho se transformariam milagrosamente em corpo e sangue de Jesus. É essa a concepção da igreja católica até hoje. O luteranismo pensa de modo diferente. Afirma a presença de Cristo “em, com e sob” os elementos, concepção essa que não prende Jesus na hóstia e no cálice. Vincula a presença de Jesus Cristo não à “substância” de pão e vinho, e, sim, ao uso que deles se faz. Exclui-se dessa forma também o abuso dos mesmos como remédios sobrenaturais contra a desventura.

Verdade é que aquele “é” não tem equivalente na versão aramaica, língua que Jesus falou. Eis a razão por que, em princípio, a questão deve permanecer aberta. E, no entanto, a passagem de 1 Coríntios 10.16 indica uma pista. Ela fala em “comunhão”. Pão e vinho estabelecem comunhão com o corpo e sangue de Jesus. Eles são sinais representativos dos mesmos. Por eles Jesus se faz presente. Servem-lhe como meios de comunicação.

Assim sendo, cai sob juízo uma prática que abusa da ceia para simplesmente encher a barriga e até mesmo embriagar-se. A crítica de Paulo é categórica: Será que vocês não têm casas onde podem comer e beber? (11.22). A ceia da comunidade distingue-se radicalmente de uma festa qualquer destinada à diversão dos membros. Muito pelo contrário! A presença de Jesus Cristo no pão e no vinho confere ao consumo daqueles elementos natureza sagrada. É preciso discernir o corpo, diz o apóstolo (11.29), ou seja, importa fazer jus ao fato de ali, no pão e no vinho, encontrarmos o próprio Jesus Cristo. Ai de quem os desrespeita nesta qualidade. Torna-se culpado de participação indigna (11.27).

Isso significa que a Santa Ceia permanece sendo a “ceia do Senhor”. Ela não permite ser transformada numa “ceia da comunidade”. Como tal exige um comportamento que lhe corresponde. Jesus Cristo reprova o desinteresse na sorte dos pobres. Seu corpo compromete com o espírito que lhe é devido, insistindo em partilha dos recursos e em cuidado com os menos favorecidos. O corpo de Jesus Cristo não pode ser dissociado do corpo da comunidade. O respeito àquele implica o bem-estar deste. Por isso mesmo diaconia não é nada opcional. Ela é atribuição inalienável da igreja cristã.

Diga-se de passagem ser necessário afastar a conotação moralista da advertência de evitar a participação indigna. Jesus não exclui pecadores. Foi exatamente a esses que se sabia enviado (Mc 2.17). Ele não barra o acesso ao sacramento para gente consciente de suas dívidas com Deus, arrependida de seus pecados. Quem de fato se exclui são as pessoas impenitentes, aquelas que resistem a reconhecer seu pecado e que, portanto, se consideram “justas”. Da mesma forma, porém, celebração indigna acontece pela transformação da ceia em escândalo público, assim como se o observa em Corinto. O corpo de Cristo exige o cuidado com os irmãos e as irmãs carentes.

3. Meditação

Os problemas da comunidade de Corinto não são os nossos. Na IECLB, a celebração da Santa Ceia já há tempo deixou de ser acompanhada por algo semelhante à agape como isso era usual na igreja antiga. Hoje as festas da comunidade costumam acontecer em momentos distintos. Verdade é que também com relação a essas pode haver motivos de preocupação. Podem desandar, acabar em “bagunça” e envergonhar a comunidade cristã. É claro que ela não pode tolerar tais abusos. Entretanto, recomenda-se não confundir entre a situação em Corinto e a nossa.

Mesmo assim, existe um desafio comum entre ontem e hoje. Reside na exortação de “discernir o corpo”. Paulo constata verdadeira profanação da ceia em Corinto. Pão e vinho já não estão sendo vistos como mediadores da presença de Jesus. Eles servem apenas como ensejo para uma festa. É o que merece o protesto do apóstolo. Ele lembra serem os elementos portadores de um “poder de salvação”, portanto algo sagrado. Vale a pena insistir nisso também junto às comunidades da IECLB. Quando os instrumentos da Santa Ceia são jogados sem cuidado na sacristia, como já o vi, vejo um paralelo remoto com o que aconteceu em Corinto. Estarei errado ao diagnosticar certo desleixo na IECLB com respeito à celebração condigna da ceia do Senhor?

Aliás, como igreja de confissão luterana, nós nos orgulhamos de ser igreja da “palavra”. Jesus se comunica por pregação e ensino do evangelho. E é bom que assim façamos. Importa lembrar, porém, haver além da “palavra audível” também uma “palavra visível”. Jesus se encarna no pão e no vinho da Santa Ceia, dando com isso ênfase à visibilidade do testemunho como tal. Não é por acaso que em Corinto faltasse a preocupação social. Pois quem despreza o exemplo visível do evangelho não terá escrúpulos em ignorar as pessoas necessitadas ao lado. O confronto com Jesus Cristo no pão e no vinho impossibilita tal insensibilidade. Ela conflita com o espírito daquele Senhor que, por nós, a si mesmo se entregou e em cuja morte celebramos a constituição de um novo pacto com seu povo. Isso significa que à palavra falada deve associar-se o gesto explicativo, diaconal, caritativo. Sem diaconia o evangelho perde a credibilidade.

Outro aspecto implícito na exortação de “discernir o corpo” é a dimensão universal da paixão de Jesus. A cristandade celebra em Jesus o início de um novo tempo. No seu sangue, ou seja, em sua morte, Deus firma nova aliança com seu povo. Cumpre-se antiga profecia (Jr 31.31s). É verdade que é surpreendente a escassez da expressão no Novo Testamento. Em outra passagem o apóstolo fala do “ministério da nova aliança” que, como pregador do evangelho, lhe foi confiado (2Co 3.6). Mais explícita é a passagem da Carta aos Hebreus que compara as duas alianças, a antiga e a nova (Hb 8.8s). No mais, porém, a nova aliança não é tema.

Tanto mais importante é a tradição da Santa Ceia, para a qual esse tópico é fundamental. Cristo morreu para os nossos pecados (1Co 15.3s). Muito de acordo com isso, a cristandade apregoa a irrupção de novidade neste mundo. Trata-se de convicção que permeia o testemunho cristão como tal e lhe imprime a marca. É por isso que a coletânea de escritos apostólicos, na qual a igreja reconhece sua norma de fé, é chamada de “Novo Testamento”. Em tradução verbal isso significa “Nova Aliança”. Distingue-se assim dos escritos do “Antigo Testamento”. Esses certamente não perdem sua validade, visto que Deus não revoga seus compromissos assumidos com o povo de Israel. E, no entanto, os termos do antigo pacto são excedidos pelo novo início que Deus fez em Jesus Cristo. O antigo pacto está sendo “globalizado”, estendido a todas as criaturas da terra e por isso também em certos aspectos reformulado. Incluem-se nesse pacto também os povos não cristãos. Vale a pena refletir sobre a novidade que com Cristo foi introduzida no mundo.

Assim sendo, todos os movimentos que falam de uma radical mudança nos rumos históricos da humanidade, a exemplo da Nova Era, chegam tarde. A principal virada já aconteceu. É verdade que o anseio por um outro mundo, diferente deste que aí está, recuperou vigor. O coronavírus para tanto contribuiu. As pessoas estão cansadas das restrições impostas a seu convívio. Suspeitam que maciços interesses corporativistas aí se misturam. Será verdade? Ética na comunicação passou a ser uma das grandes urgências da atualidade. Sonhamos com um modelo de sociedade que prima por veracidade e que já não esteja fixado no fetiche do lucro e no princípio da brutal concorrência. Diz-se que depois do coronavírus o mundo já não será o mesmo. De fato, o mundo terá que mudar. Pergunta-se se para melhor ou para pior. De qualquer maneira, é grande o anseio por mudanças radicais que venham em benefício de um mundo maltratado e de povos explorados. A promessa de uma nova aliança de Deus com seu povo vem em boa hora.

4. Imagens para a prédica

Não é de hoje a visão de um mundo sem fome. O texto para a prédica na Quinta-Feira Santa vem colocá-la novamente em pauta. O respeito ao corpo de Cristo não permite o desrespeito à sorte dos Lázaros à nossa porta. À luz da polêmica do apóstolo com a comunidade de Corinto, as desigualdades sociais, chagas na maioria dos países, adquirem especial gravidade. O novo pacto de Deus com seu povo não prevê “pandemia da fome” nem bolsões de miséria nos centros urbanos espalhados pelos continentes. A celebração da Santa Ceia é oportunidade para tal lembrança, bem como motivação da comunidade para esforços na remoção desse mal. Pelo que somos informados, não faltam as condições para alcançar a meta. Sobram alimentos no mercado internacional. O problema é a distribuição, o desperdício, a solidariedade. O que falta é a comunhão entre irmãos e irmãs, de que o corpo de Jesus Cristo é imperativo e símbolo.

5. Subsídios litúrgicos

Oração do dia: Senhor, nosso Deus! Na pessoa de Jesus Cristo mostras que não te satisfazes em permanecer em distância virtual. Queres proximidade “presencial”, materializada em pão e vinho da Santa Ceia. Nós te agradecemos pela coragem de arriscar tal comunhão conosco. Faze com que se traduza em fraternidade em nossa sociedade, sinalizando algo do novo pacto já inaugurado em Jesus Cristo. Amém.

Confissão de pecados: Nós abominamos a maldade que não deixa de ser realidade também em nós. Sempre de novo nossas boas intenções sofrem derrota. Perdoa-nos a fraqueza, isso não só em termos individuais. Existem pecados sociais, embutidos em estruturas, costumes e práticas viciadas. Tua presença queira fortalecer nosso testemunho e nossa ação, corrigindo o que está errado. Nós te rogamos: Kyrie eleison!

Intercessão: Senhor, nós intercedemos por um mundo terrivelmente dividido. Aparentemente necessitamos de inimigos em que descarregamos a culpa pelas agressões entre os povos, as raças, as religiões, enfim entre nós e os outros. A cada dia aumentam as polarizações, resultando em perigosos conflitos. Nós te pedimos por paz neste mundo. Trazemos perante ti as vítimas das atrocidades cometidas por guerras quentes e frias, por violência e perseguição, por ódio e cinismo. Ouve seu clamor e concede-lhes o teu socorro. Nós te pedimos por tua igreja. Capacita-a para a ação corajosa no mundo em testemunho do novo pacto que firmaste por Jesus Cristo. Nós rogamos: venha o teu reino. Amém.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal, 2010.
CONZELMANN, Hans. Der erste Brief an die Korinther. 11. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969. (Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament, 5. Abt.).


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Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: Quinta-feira Santa
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 11 / Versículo Inicial: 23 / Versículo Final: 26
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2021 / Volume: 46
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 68585

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