Da Autoridade Secular - Martim Lutero
Em dezembro de 1522, Martim Lutero atendeu uma solicitação do pastor Wolfgang Stein e do duque João Frederico da Saxônia. No escrito, Lutero fala a respeito de governantes, de seu poder e autoridade. Além disso, verifica se uma pessoa cristã pode assumir cargo ou função política e até que ponto pode e deve obedecer a uma autoridade constituída.
Por trás deste texto de Lutero há uma questão que não estava resolvida em seu tempo e que seguidamente ressurge: como se pode renunciar ao uso da violência e, ao mesmo tempo, exercer uma função política? Além disso, pouco antes do surgimento do livro, sua tradução do Novo Testamento havia sido confiscada em Nürnberg, no Ducado da Saxônia e na Marca Brandenburgo. Desse fato decorreu outra pergunta, que Lutero busca responder em seu livro: até onde vai o poder da autoridade? Até onde o cidadão lhe deve obediência? É em decorrência dessas perguntas que Lutero fundamenta o poder político e descreve a posição do cristão em relação a este.
Segundo Lutero, as pessoas cristã vivem em dois âmbitos: no reino de Cristo e no reino do mundo. Elas pertencem ao reino de Cristo, que não é deste mundo. Não necessitam do poder temporal, do poder dos governantes, pois são guiadas pelo Espírito Santo. Tudo o que fazem é determinado pelo amor e pela disposição ao sofrimento. Ao invés de fazerem sofrer, preferem sofrer. As leis, porém, destinam-se aos injustos e têm a finalidade de desvendar o pecado. A maior parte da humanidade, por não ser de Cristo, pertence ao reino do mundo. Nesse reino, ela é forçada a uma convivência pacífica por meio da espada, da autoridade. Deus governa sobre todas as pessoas de duas maneiras: a espiritual e a temporal.
Na maneira espiritual de governar, Deus torna as pessoas justas. Na maneira temporal, ele mantém os maus sob controle e preserva a paz. Essas duas maneiras de Deus governar são imprescindíveis, pois, caso o mundo for governado apenas com o Evangelho, teremos o caos: as ovelhas serão devoradas pelos lobos. Caso o mundo for governado apenas com a espada, com a violência, jamais teremos a verdadeira justiça. É por causa do amor ao próximo que as pessoas cristãs, que a rigor não precisariam da autoridade secular, participam tanto ativa quanto passivamente do governo temporal. Elas intervêm em favor da paz e participam, inclusive, do poder secular. É por amor que elas desempenham uma função política.
Na segunda parte do texto, Lutero descreve os limites do poder da autoridade, para que essa não intervenha no reino de Cristo. As leis temporais restringem-se ao corpo e aos bens, não podendo, de modo algum, atingir as consciências. As consciências estão sujeitas apenas à Palavra de Deus, que as conduz e orienta. A autoridade não tem poder sobre as consciências. Como em seus dias está havendo confusão a esse respeito, Lutero exige que haja uma clara distinção, não separação, entre as duas maneiras de Deus governar o mundo. Por isso não admite que a autoridade civil resolva questões de heresia ou de fé. Heresia é da competência dos bispos e só pode ser enfrentada com a Palavra de Deus, jamais com a espada. Lutero é aqui um pensador moderno: ele postula a liberdade de consciência.
Ao final do escrito, Lutero instrui o governante para que também queira ser cristão. Ele não se deve ater a uma aplicação rígida das leis. Deve fazer uso de sua razão e verificar a situação antes de aplicar a lei. Para isso é necessária sabedoria, que o governante deve pedir de Deus, em oração. Pressuposto para quem quer ser um governante cristão é a concepção do governo como serviço aos governados. Esse serviço está ligado a dificuldades, nada tendo a ver com privilégios. Lutero também dá instruções com respeito à guerra. Guerra só é possível como guerra defensiva. O soldado cristão está comprometido com essa guerra; no entanto, quando souber que a guerra é injusta, deve negar obediência a seus superiores.
Este texto – Da autoridade secular – é fundamental para o estudo e a compreensão da ética política em Lutero. A ética política cristã busca distinguir e relacionar corretamente o reino de Cristo e o reino do mundo.
Martin N. Dreher