Dia da Reforma



ID: 2892

Isaías 62.6-7,10-12

Auxílio Homilético

31/10/1997

Prédica: Isaías 62.6-7,10-12
Leituras: Romanos 3.19-28 e João 8.31-36
Autor: Antônio C. Ribeiro
Data Litúrgica: Dia da Reforma da Igreja
Data da Pregação: 31/10/1997
Proclamar Libertação - Volume: XXII


1. Introdução

Esta sexta-feira nos traz uma data especial. O que a torna diferente de outras não é uma razão de natureza pessoal ou o fato de lembrar gestos heróicos à sombra dos quais podemos descansar, mas algo que aponta para a nossa condição de pecadores justificados e para a nossa responsabilidade como Igreja semper reformanda, cujo afã é o de ser serva da palavra de Deus.

Nosso pano de fundo hoje é uma sociedade de poucos donos, que já conseguiu vitórias expressivas, mas ainda está encabrestada a um modelo quase feudal de controle do processo de produção e distribuição da riqueza, exercido de forma excludente e sustentado ao custo de um voraz apetite por vidas humanas.

No Dia da Reforma da Igreja Católica há menos motivos para comemorar do que para se penitenciar. Sob a ótica da penitência, devemos ler o texto do Evangelho de João (8.31-36). Com temor e tremor vamos adentrando o texto e nos defrontando com quem se envaidece de ser descendência de Abraão e de nunca ter sido escravo de alguém. Diante deste quadro Jesus não apenas mantém o diagnóstico (quem peca é escravo do pecado), mas também reafirma a possibilidade da liberdade para os que aceitam a sua intervenção (se o Filho vos libertar, sereis livres).

O texto de Rm 3.19-28 aponta para o resultado da intervenção do Cristo que torna justos homens e mulheres por sua graça, mediante a fé (vv. 22-24). Jesus Cristo atualiza a justiça eterna, essência do próprio Deus, torna as pessoas livres para assumirem sua culpa, fraqueza e vulnerabilidade. Os que foram libertos têm nova visão, nutrem nova compreensão da vida e se dispõem a servir aos outros.

E o texto indicado para a pregação (Is 62.6-7,10-12) nos ensina como anunciar a salvação para gente machucada, ser ministros da consolação e sonhar com o direito e a justiça no dia-a-dia da cidade, mesmo em meio à escuridão momentânea.

2. Considerações Exegéticas

A maioria dos livros de introdução ao AT dedica pouquíssimo espaço à profecia do Trito-Isaías. Situam-no em Jerusalém no período imediatamente se¬guinte ao retorno do exílio. Afirmam que alimentou seu trabalho a partir da vida comunitária e acabou se tornando uma fonte para o judaísmo pós-exílico.

Outros se acercam mais de perto desse profeta revestido dum ministério de consolação, no qual a cura da alma exercia um papel importante, ao mesmo tempo que teve de enfrentar faltas graves, circunstâncias sociais e jurídicas quase catastróficas (Is 57.1) e um governo deficiente (Is 56.9) (G. von Rad).

Já usada para a pregação no Advento e no Dia da Reforma (Proclamar Libertação, vol. II, p. 423; vol. VIII, p. 331; vol. XIX, p. 279), a perícope traz palavras de ânimo e de preparação para um tempo que o profeta consegue vislumbrar adiante, dirigidas ao povo que voltou do exílio e agora tem uma enorme dificuldade de crer. Ao que parece, por trás do medo do povo de depositar sua fé em Deus está um passado de grandes dificuldades, insegurança política, devastação e vexames, ainda vivos na memória. Talvez por isso o parceiro de Deus nesta relação não seja o indivíduo, mas sim uma coletividade (...) aqueles que já retornaram a Jerusalém (...) convidados a 'preparar o caminho e a limpar as pedras da estrada''' (M. Siegle).

Na tradução do texto hebraico, feita por Ramona E. Weisheimer, vemos acentuados o empenho e a determinação das sentinelas de não silenciar e não dar descanso a Javé, por causa das suas promessas, no v. 6. O v. 7 segue a mesma linha de pensamento, enfatizando a expressão até que estabeleça Jerusalém e a ponha por objeto de louvor na terra. A palavra povo aparece no v. 10 como alvo do trabalho de preparação a ser realizado, expresso em verbos de ação (atravessar, arrumar, aterrar, limpar as pedras, erguer bandeiras). Os moradores de Sião são o alvo das bênçãos (a salvação e o galardão vêm; será uma cidade procurada e não abandonada) anunciadas nos vv. 11 e 12.

3. Breve Análise do Texto

Parece que a tarefa do profeta está retratada na função das sentinelas. Neste texto, ela está voltada para um trabalho pastoral no meio do povo cuja base era a palavra. Lutero identifica nas sentinelas a função dos pastores e bispos que acompanham, supervisionam todo o tempo o ensino da palavra pura. Eles preci¬sam estar atentos. Sua tarefa continua sendo a de vigia. Apesar de a tarefa agora ser lembrar o Senhor, eles também não ficam quietos a respeito desse Senhor. Recordar não é lembrar-se em particular, mas pregar publicamente, rememorar, louvar e dar graças, insiste o reformador. Para von Rad em lugar nenhum a tradição foi retomada sob fornia tão grandiosa quanto no texto que fala das sentinelas sobre os muros de Sião, cidade de Deus, com quem Javé se reconcilia quando da chegada dos primeiros peregrinos para a festa.

Aí começa o trabalho de reconstrução da história interrompida do povo judeu. Na sua memória há um hiato (um período marcado por fragmentos) entre as remotas lembranças da Jerusalém pré-exílica e o presente, no qual ainda não se reencontrou. Entre os dois momentos está um período histórico incómodo. Não adianta tentar se livrar dele. Quanto maior é o esforço para esquecer a Babilónia, mais ela se eterniza. É impossível torná-la uma ausência, já que ela está tremendamente presente. Em meio a essa luta atroz, surge o profeta. A única maneira de reassumir a história cindida e enxertada é redescobrindo a fé em Javé.

Jerusalém é o centro em torno do qual gravitam todas as aspirações dos que retornaram do exílio. Ao mesmo tempo é a cidade ainda não resgatada, que precisa continuar gritando por Javé, sem lhe dar descanso, até que tenha a glorificação esperada. O Trito-Isaías parece incorporar a mensagem de que Javé se aproxima de sua cidade, apesar do atraso, para passar pelas portas, que, segundo Lutero, significa o lugar dos governantes. 'Ser nobre às portas' quer dizer estar no governo. Trata-se de um hebraísmo: 'sentar às portas' é estar no governo. Assim as nossas portas são a Igreja, e essas portas estão abertas. Aberta, a Igreja prega. E Deus promete e jura: Venham, venham, não se envergonhem e acolham a Palavra (ap. R. Rieth).

4. Meditação: Pastoral da Reconstrução

Como interpretar esse texto, contextualizando-o para dentro da realidade brasileira e das nossas comunidades? Lendo a interpretação de Lutero (R. Rieth, p. 279-85), percebemos como está próxima do seu tempo e da realidade eclesiástica vivida na Alemanha do séc. 16. Não é difícil para nós compreender os conflitos vividos por quem voltou do exílio e tem a sua vida cindida por este fato. Apesar de não termos vivido o exílio, sofremos a exclusão dentro do nosso próprio país, como a maioria da população brasileira.

A tarefa dos vigilantes é exigente. São incumbidos de permanecer sobre os muros e não se calar dia e noite, pedindo a Deus que restabeleça Jerusalém. Lutero entendeu que lembrar o Senhor era pregar publicamente sobre Cristo. Parece que a simples pregação do Cristo é uma força estupenda, capaz de alavancar estruturas sociais arcaicas e instaurar novidade de forma consistente e duradoura. Por isso as igrejas brasileiras incomodam profundamente os donos do poder com a sua pregação. Não incomodam as igrejas que pregam a salvação individual, a conversão de cada um que mudará o todo, e nem as que mandam seus representantes ocupar cargos públicos em Brasília, alimentando o fisiologismo. Incomodam as igrejas cujos pastores não dissociam evangelho e vida para os excluídos, salvação e respeito aos trabalhadores, serviço à vida e compromisso com os famintos deste país campeão mundial de concentração de renda.

A expressão lembrar faz sentido nestas terras capixabas, onde grupos de extermínio com fôlego para resistir a governos ditos populares não somente matam e somem com o corpo, mas conseguem varrer todos os sinais da existên¬cia de uma pessoa. Como uma máfia instalada nos poderes da República, têm capacidade para destruir provas, atrasar processos, ameaçar e matar testemunhas. A luta ingente pela memória da pregação do Cristo e dos que tombaram na luta do povo é o esforço de comunidades e movimentos populares. O P. Geraldo Graf, pregando no enterro simbólico de Laurindo Buss, um agricultor desapa¬recido, disse: Nós não podemos acusar, mas podemos clamar. E clamamos porque somos Igreja. Comunidade que não dá descanso é aquela que insiste em lembrar das crianças de rua, dos índios com terras invadidas, dos desempregados urbanos.

Passar pelas portas é hoje acolher os gritos de milhares de pessoas que não têm com quem contar. As portas das igrejas são a última esfera de poder onde esperam não ser barrados, as últimas ainda abertas a acolhê-los e a alimentá-los de confiança e força para a luta. São elas o último espaço onde os pobres podem ver caminhos planos, ou a última aliada no trabalho de afastar pedras e fazer chão. Utópicas, as igrejas criam espaço (topos) para o povo organizar sua luta, no dizer de Lutero, para que o povo não possa ser ofendido. Pois nosso objetivo é que o povo piedoso e bem instruído possa com simplicidade andar no caminho, sem ir de encontro à pedra de tropeço (ap. Rieth). O Concílio do Distrito Eclesiástico Sul do Espírito Santo, reunido na semana em que ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás (PA), destinou a oferta do culto às famílias das vítimas e escreveu ao presidente da República: A voz do sangue do teu irmão clama a mim da terra (Gn 4.10).

A Igreja serva da Palavra é corpo que assume os membros pequenos, como no exemplo de Lutero na sua exposição de l Co 12, onde fala de alguém que bate com o dedinho em algum obstáculo. Que acontece ao sentir a dor? A boca grita de dor, o rosto se contrai, o tronco se dobra em direção ao dedo machucado, a mão o apalpa, os olhos verificam o que houve, isto é: todo o corpo humano preocupa-se e ocupa-se com o menor dos membros que está sofrendo (ap. Altmann, p. 128). Assim a Igreja age pastoralmente para ajudar na reconstrução de vidas, de projetos comunitários, de esperança para contingentes cada vez maiores de sobrantes do projeto neoliberal vigente.

5. Subsídios Litúrgicos

Confissão dos pecados: Senhor, estamos perdendo a força de nosso testemunho como Igreja da Reforma. Perdemos a capacidade de pregar. Nossa mensagem não toca o coração de homens e mulheres, não temos disposição para interceder pelo teu povo e perdemos a capacidade de desafiar os poderes deste mundo. Senhor, nos sentimos fracos para guardar a memória dos teus feitos, estamos frágeis para testemunhar o teu poder e ação, já não conseguimos clamar e esperar contra a esperança. Senhor, não fomos capazes de manter as portas da Igreja abertas, para que teus filhos se fortalecessem na tua força. Sem passar sob as tuas portas, teus filhos perdem a legitimidade e se enfraquecem no embate com os lobos. Por isso pedimos que nos perdoes e nos dês força para romper o silêncio com a pregação. Dá-nos determinação para guardar a memória da tua força e dá-nos portas abertas ao teu povo. Amém.

Oração de coleta: Deus, nós nos reunimos neste dia sob as tuas portas para celebrar o movimento da Reforma. Nem nos damos conta de que sob as tuas portas estamos comprometidos pelo teu poder e com os teus propósitos neste mundo. Fortalece as igrejas para o testemunho do evangelho, mesmo que signifique risco por causa dos pequenos filhos do Pai. Ajuda-nos a viver na tua aliança. Amém.

6. Bibliografia

ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação; Releitura de Lutero em Perspectiva Latino-Americana. São Paulo, Ática; São Leopoldo, Sinodal, 1994.
RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. 4. ed. São Paulo, ASTE, 1986. vol. 2.
SIEGLE, Manfred. Isaías 62.1-12. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1979. vol. I/II, p. 423-29.


Autor(a): Antônio Carlos Ribeiro
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Dia da Reforma
Natureza do Domingo: Dia da Reforma

Testamento: Antigo / Livro: Isaías / Capitulo: 62 / Versículo Inicial: 6 / Versículo Final: 12
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1996 / Volume: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 17650

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