Amados irmãos, amadas irmãs,
todos nós vivemos períodos de crises e desafios. Quando vencemos alguns desafios e acreditamos que teremos paz, surgem novos problemas com novos desafios a serem atendidos e superados. Em nossas vidas, parece que andamos em círculo, saindo de uma crise já se preparando para enfrentar outra.
De um lado, há os problemas externos: pandemia, dengue, guerras, mortes, injustiças, violência, terror, desastres naturais etc. Problemas que nos atingem profundamente – se ainda resta humanidade em nossos corações. Sofremos muito por males que estão muito além do nosso controle. Há famílias que sofrem também com o desemprego, a fome e a miséria. Talvez, pensemos: “ah se o mundo fosse diferente”, ou “ah se as pessoas fossem um pouquinho melhores”. Muitas vezes somos tomados de indignação diante da banalidade do mal. A triste morte de Genivaldo de Jesus esta semana demonstra isso. Parece que o ser humano esqueceu a importância do amor e da misericórdia. No Brasil, aparentemente, tudo se resolve apenas com violência, seja nos lares ou nas ruas. Que triste realidade! Vivemos um país onde a violência não é ocasional, mas estrutural!
Ao mesmo tempo, temos as nossas crises pessoais: depressão, transtorno de ansiedade, luto, desespero, doenças, desemprego, pobreza, falta de sentido etc. Trata-se do ser humano em luta consigo mesmo, para que possa existir, ser alguém, enfim, ser feliz! Nem sempre é fácil lidar conosco. Somos humanos e, portanto, mutáveis e imprevisíveis. Nem sempre conseguimos explicar o que está acontecendo conosco. Talvez, olhamos para o espelho e nos assustemos com o que nos tornamos. Quem sabe, nos perguntemos como chegamos tão fundo no poço... Talvez, achemos que não há mais saídas a nós mesmos e que a dor nunca terá fim.
Quais são as crises que você tem enfrentado? Quais desafios a sua família tem passado? Você está bem? Você se sente feliz? Ou é tudo mera aparência para agradar pessoas que nem gostamos? Como vai a sua vida?
Os primeiros cristãos também passavam por dificuldades. O evangelista Lucas escreveu sua segunda obra – Atos dos Apóstolos – entre os anos 80 e 90 depois de Cristo. Aqueles não eram os melhores anos para ser um cristão. A fé cristã era atacada de todos os lados. De 81 a 96, o Imperador Romano Domiciano desencadeou uma grande perseguição aos cristãos. Por que da perseguição? Porque os cristãos se negavam a chamar o imperador de “senhor”, visto que para eles apenas Jesus é o Senhor!
A perseguição acontecia de muitas maneiras: desde cristãos pendurados em postes com cera de velas derramada sobre eles para iluminarem à noite, até espetáculos de entretenimento no coliseu romano onde cristãos enfrentavam frente a frente os leões. O movimento do Deus que morre na cruz e ressuscita provocava medo nos Imperadores. Para eles, não era possível tolerar um movimento que venerasse um “Deus” tão fraco e decadente. O Deus da cruz era escandaloso demais para os imperadores romanos. Eles não concebiam que alguém pudesse escolher estar do lado dos fracos ao invés de ambicionar o poder a todo custo.
Além disso, a própria situação de Jerusalém era complicada. O Templo de Jerusalém foi completamente derrubado pelos romanos no ano 70 d. C. O inabalável centro religioso dos judeus já não existia mais. Os judeus, então, são dispersos pelo mundo. Ao viver nessa realidade, a impressão que dá é a de que não poderia haver amanhã. A crise da realidade dos cristãos e dos judeus era tão complicada e profunda que parecia ter chegado o fim dos tempos.
Nesta difícil realidade está inserido Lucas, alguém que não viu Jesus e nem caminhou pessoalmente com o Senhor. Lucas não foi uma testemunha ocular. Ele não seguiu os passos do mestre. Porém, isso não imobilizou Lucas. Ele, como médico e historiador, foi atrás dos fatos: “Visto que muitos já empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizam, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim pareceu bem, depois de cuidadosa investigação de tudo desde a sua origem, dar-lhe por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que você tenha certeza das verdades em que foi instruído”. (Lucas 1.1-4). Lucas escreveu seu evangelho e Atos dos Apóstolos para trazer à memória dos cristãos a esperança que há na vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo.
Em meio à crise, precisamos ser lembrados dos feitos de Deus para que sejamos mantidos na fé. Não há fé sem a memória; da mesma forma, não há a memória sem a fé. Jesus já não estava mais corporalmente entre seus fiéis. Então, como crer em Jesus quando o mundo ao redor está desabando? Como permanecer firme na fé quando se é caçado/a pelas próprias autoridades? Como ter esperança se o mundo nos conduz ao desespero?
1 MEMÓRIA PARA TEMPOS DE CRISE
Lucas nos traz à memória os eventos do evangelho para que não percamos a fé em meio às crises. “Fazer memória ajuda a superar as crises. Não é difícil imaginar, além das crises internas, o quanto o monstruoso Império Romano era um entrave à vida das pequenas comunidades cristãs espalhadas em seu meio”1.
Em meio à crise, é preciso lembrar de Jesus e trazer à memória o que pode nos dar esperança. Por isso, Lucas nos lembra: “Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar até o dia em que foi elevado às alturas, depois de haver dado mandamentos por meio do Espírito Santo aos apóstolos que tinha escolhido. Depois de ter padecido, Jesus se apresentou vivo a seus apóstolos, com muitas provas incontestáveis, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas relacionadas com o Reino de Deus”. (Atos 1.1-3).
A primeira coisa que Lucas faz no seu segundo livro – Atos dos Apóstolos – é fazer com que os primeiros cristãos lembrem de Jesus. Em meios às nossas crises e em meio aos nossos desafios diários, lembremos de Jesus, sua vida, sua morte e sua vitória sobre a morte. Em meio ao nosso sofrimento, temos a presença real do Cristo crucificado e ressurreto que compartilha conosco o seu amor e a sua empatia, pois ele sofre conosco em nossos sofrimentos. Não fomos deixados órfãos através da Ascensão de Jesus, mas temos a sua presença na força do Espírito Santo. Lembremos daquele que viveu a nossa vida e morreu a nossa morte para que um dia ressuscitemos tal qual ele ressuscitou.
2 MEMÓRIA PARA TERMOS ESPERANÇA
Não é fácil ter esperança, pois parece que a missão do tempo presente é assassinar o tempo futuro. Em outras palavras: é difícil crer em um amanhã melhor. Quanto mais vivenciamos as dores do presente, mais dificuldade teremos de crer na esperança do amanhã.
Lucas, porém, não desistiu, pois ele sabe o quanto a memória e a esperança estão conectadas. Não há como crer no amanhã sem lembrar daquilo que já aconteceu no passado, pois são os acontecimentos do passado que nos ajudam a viver o presente na esperança do amanhã. Ou seja, é graças à memória que vivenciamos a espera ativa de que o melhor está por vir, pois é vendo que o sol se põe e se levanta todos os dias que podemos crer no seu nascimento amanhã, mesmo que agora tudo se torne escuro.
Para haver esperança, é preciso haver a memória. Por isso, Lucas faz questão de registrar, repetir, repassar o conteúdo do evangelho para que os eventos de Jesus não sejam esquecidos. O esquecimento da fé gera o desespero. Quando não lembramos mais de Deus, iremos nos agarrar no que em meio à crise? O que nos restará será o vazio de sentido: nada mais fará sentido e tudo se tornará obra do acaso; a vida perderá o propósito; não parecerá haver luz no fim do túnel.
Só há esperança onde há memória e só há memória onde a fé cristã é vivida diariamente, pois pertencemos à Igreja – Corpo de Cristo. Isso significa que não estamos sozinhos em nossos sofrimentos, mas somos encontramos por Cristo através dos nossos irmãos que nos ajudam a levar as nossas cargas (cf. Gálatas 6.2).
Por isso, para termos esperança, precisamos superar o individualismo do nosso tempo. O benefício de ser comunidade é a contínua formação de memórias da fé. Como diria o pastor Dietrich Bonhoeffer, “a Igreja é Cristo existindo como comunidade”2. A própria Igreja é a presença de Cristo no mundo. Porém, sem a comunidade, a presença de Cristo morre, matando-se a memória e, consequentemente, a esperança.
Assim como Lucas, lembremos de Cristo para que saibamos qual (ou quem) é o fundamento da esperança que temos como irmãos e irmãs em meio aos sofrimentos no mundo.
3 MEMÓRIA PARA IRMOS EM MISSÃO
Jesus subiu aos céus. Já não estava mais corporalmente entre seus discípulos. Aquela cena deve ter sido esplêndida: ver o Senhor ser entronizado nos céus. Porém, foi-lhes chamada a atenção: “E, estando eles com os olhos fixos no céu, enquanto Jesus subia, eis que dois homens vestidos de branco se puseram ao lado deles e lhes disseram: - Homens da Galileia, por que vocês estão olhando para as alturas?” (Atos 1.10-11a). O convite da Ascensão de Jesus é que não fiquemos toda a nossa vida o contemplando ser levado aos céus. Ao contrário, o convite da Ascensão de Jesus é que a partir da sua vitória, vivamos a nossa vida em missão.
Um pouco antes da Ascensão, Jesus disse: “Mas vocês receberão poder, ao descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra”. (Atos 1.8). Aqui encontramos o programa missionário de Atos dos Apóstolos: o testemunho acerca da memória de Jesus inicia na cidade de Jerusalém, mas não se fecha nela; o testemunho passa pela Judeia, que é a região de Jerusalém; passa também pela Samaria que é o território vizinho. A partir daí, não há limites: o Evangelho deve ser espalhado até os confins da terra. Lucas estruturou o livro de Atos dos Apóstolos exatamente a partir desse versículo, uma vez que o livro inicia em Jerusalém e termina em Roma.
Portanto, não fiquemos parados de braços cruzados olhando para o céu e esperando Jesus voltar, até porque isso é certo. A nossa tarefa é descruzar os braços e colocar as nossas mãos à obra. É preciso trabalhar pelo Reino de Deus e divulgar as coisas que Jesus fez para que mais pessoas possam crer; é preciso testemunhar do Evangelho, mesmo que isso possa custar a nossa própria vida; é preciso levar esperança aos desesperados, alento aos desanimados, fé aos desconfiados, alimento aos que tem fome, água aos que tem sede, dignidade aos que foram excluídos, paz aos que estão em guerra, a alegria da salvação aos que estão tristes, justiça aos injustiçados, teto aos desabrigados, cuidado aos doentes, consolo aos que estão de luto, inclusão aos excluídos e tantas outras obras de misericórdia para que a presença de Cristo seja conosco em cada sofrimento.
Por meio da memória, somos levados a ação! Então, vamos colocar em prática tudo o que aprendemos da Palavra de Deus.
Amados irmãos, amadas irmãs,
assim a Ascensão de Jesus não significa a sua ausência do mundo; ao contrário, a Ascensão de Jesus significa a sua presença entre nós através da Igreja Cristã que é o próprio Corpo de Cristo no mundo. A presença invisível de Cristo se torna visível na comunhão da Ceia do Senhor onde o pão é o corpo de Cristo e o vinho é o sangue de Cristo, sem deixarem de ser pão e vinho. A Ascensão de Jesus nos leva a celebrarmos a Santa Ceia confiantes de que ela não é um mero alimento humano, mas a presença real de Cristo entre nós: “Da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie de pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos”3.
Portanto, em meio às crises que vivenciamos – sejam internas ou externas –, estejamos perseverantes de que Cristo está entre nós. Não ficamos órfãos e não estamos abandonados: no próximo Domingo, lembraremos do dia do Pentecostes onde Deus Pai enviou, por meio do Filho, o Espírito Santo, nosso Consolador.
Jesus voltará! Quando, não sabemos! Até lá, vivamos a Igreja com alegria e disposição, tendo a memória como conforto e esperança em meio à crise e impulsionados pela missão, colocando nossos dons a serviço de Deus através do próximo.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
ASCENSÃO DO SENHOR | BRANCO OU DOURADO | CICLO DA PÁSCOA | ANO C
29 de Maio de 2022
P. William Felipe Zacarias
1 FRANK, Valdir. “Ascensão de Nosso Senhor”. in: STRECK, Edson; SCHNEIDER, Nélio (eds.). Proclamar Libertação. Auxílios homiléticos. v. XX. São Leopoldo: Sinodal, 1994. p. 156.
2 BONHOEFFER, Dietrich. Sanctorum Communio. Eine dogmatische Untersuchung zur Soziologie der Kirche. München: DBW, 1930. apud: BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2007. p. 196.
3 Confissão de Augsburgo, Artigo X: Da Santa Ceia. in: DREHMER, Darci (ed.). Livro de Concórdia. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: Ulbra; Porto Alegre: Concórdia, 2006. p. 32.