Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu? Certamente nós conhecemos essa frase. Ela é dita pela Rainha Má da antiga história da Branca de Neve e dos sete anões. Acredito que conhecemos essa história desde crianças, seja dos livros, desenhos animados ou de filmes. A Rainha Má fica muito indignada a saber que a Branca de Neve é mais bonita do que ela.
É uma história simples, mas que aponta um fato muito profundo: um bom espelho não mostra nada mais do que a verdade! Há espelhos que são capazes de distorcer as imagens nele refletidas. Porém, os espelhos que conhecemos hoje são os mais sinceros e verdadeiros possíveis. Diante de um espelho não encontramos nada mais do que a verdade sobre nós mesmos. Não é possível enganar o espelho. Também não é possível que o espelho nos engane. A não ser que inventem espelhos com filtros de imagens como as que já possuímos no celular, o espelho sempre revelará uma imagem sincera de nós mesmos, assim como a Rainha Má recebe com a sinceridade do espelho que Branca de Neve é mais bonita do que ela. A verdade pode chocar, indignar, marcar!
Nós estamos na série de pregações que se chama Quaresma: o Raio-X de nós mesmos. No último Domingo vimos as verdades sobre a cruz. Ela era inevitável a Jesus e também é inevitável a nós. O importante é assumirmos isso e carregarmos a cruz. Se cada um carregar um pouco, não fica pesado para ninguém. Agora, se não quisermos carregar a cruz, ela fica mais pesada para os outros. Isso se torna claro e evidente na situação que vivemos: se todos nós assumirmos a responsabilidade e tomar os cuidados mínimos – isto é, carregar a cruz –, quem sabe logo a situação se amenize. Porém, se não quisermos tomar os cuidados, ou seja, se não quisermos carregar essa cruz juntos, vamos passar ainda muito tempo nesta situação. Precisamos fazer a nossa parte. Se cada um tomar a sua cruz de cuidado, responsabilidade e amor, quem sabe logo esta situação será algo do passado e poderemos, inclusive, estarmos juntos outra vez em comunhão presencial.
Foi disso que falamos no Domingo passado. Iniciamos falando da cruz porque é para onde Jesus está indo. Daqui pouco tempo ele será crucificado. Estamos caminhando e aprendendo com ele nesta jornada onde aproveitamos para fazer um Raio-X de nós mesmos. Quaresma é tempo de avaliação, penitência, conhecer-se a si mesmo. Quaresma é tempo de interioridade, introspecção, reflexão. Quaresma é tempo de preparação, arrependimento e conversão. Ainda falta um tempo até a Páscoa. Ainda há tempo de consertar o que precisa ser consertado. Ainda há tempo para buscar a salvação de Deus.
Nesta segunda pregação da série, temos um texto que todos nós conhecemos muito bem. Aliás, deveríamos ter todas estas palavras decoradas desde o Ensino Confirmatório. Em Êxodo 20.1-7, encontramos os 10 Mandamentos. Moisés está no Sinai. Moisés recebeu as tábuas da Lei que até hoje servem de base para praticamente qualquer Constituição e qualquer sistema jurídico do mundo. Muitos destes mandamentos resumem e fundamentam os 245 artigos da Constituição Brasileira, por exemplo. Está tudo ali. Nos 10 Mandamentos nós encontramos a possibilidade de viver diante de Deus e do próximo.
O Reformador Martinho Lutero falava dos três usos da Lei. É muito interessante aquilo que Lutero explica sobre os usos da lei. Convido você a aprendermos juntos e sermos alimentados pela Palavra de Deus
1 USO CIVIL DA LEI
Imagine como seria uma terra sem lei. Ou pior: imagine um lugar onde não há leis de trânsito. Há alguns países que vivem isso, como a Índia, por exemplo. Imagine a Avenida 20 de Setembro sem a rótula da Paquetá. Imagine a João Correia com o grande movimento de pessoas nas lojas sem os semáforos. Imagine o que seria de Sapiranga se não houvesse leis de trânsitos e ferramentas que ajudam a organizar o trânsito. Quando não há leis, o mundo se torna um lugar perigoso e caótico.
Por isso, conforme Lutero, o primeiro uso da lei é o uso civil. A primeira função da lei é organizar a sociedade. Este usto não possui ligação espiritual, mas é o uso que beneficia o mundo secular. A primeira função da lei é organizar a sociedade. Para quê? Para que a vida seja possível! Isso é muito importante! A preservação da vida não faz parte do âmbito do evangelho, mas da lei. A lei é boa, pois é através da lei que a sociedade é organizada e a vida é preservada. O primeiro uso da lei está relacionado com a conservação da vida humana.
É por isso que faz parte do primeiro uso da lei – o civil – a economia e a política. Aqui Lutero não está falando de política partidária, mas política no sentido da participação de todos os cidadãos na sociedade. A economia significa no grego as regras da casa. Quase todas as casas têm armários. Algumas até possuem uma despensa. É o lugar onde armazenamos os alimentos da família. Quando vemos que os armários ou a despensa estão ficando vazios, precisamos olhar na carteira ou no banco e ir ao supermercado comprar alimentos para abastecer os armários ou a despensa. Isso é economia. Economia não é só guardar dinheiro ou bens. Economia são as leis que ajudam a administrar bem os próprios recursos. Economia não é apenas guardar, mas também as leis que ajudam a gastar adequadamente.
Assim, uma casa bem administrada é uma casa que existirá por gerações. A função da economia – leis de administração da casa comum – é a preservação da vida, pois a preservação da vida é o primeiro uso da lei, conforme Lutero. Logo, economia e vida não são duas realidades diferentes, mas uma só e mesma realidade. Assim, não há como ter economia sem que haja vidas! Este é o primeiro uso da lei que Lutero já abordou há 500 anos atrás. É o uso civil que quer organizar a sociedade, permitindo a vida e administrando bem os recursos para a preservação da vida humana.
É por isso que existe, por exemplo, o mandamento não matarás. Não está falando simplesmente de pegar uma faca e matar alguém. Lutero vai mais longe do que isso. Olha o que Lutero explica sobre esse mandamento no seu Catecismo Maior:
transgride este mandamento não só quem pratica o mal, mas também quem pode fazer o bem ao próximo – antecipando-se, impedindo, protegendo e intervindo para que não sofra dano físico – e deixa de fazê-lo. Quando você manda embora uma pessoa que não tem o que vestir, quando poderia vesti-la, você a deixou passar frio. Se você vê alguém passar fome e não o alimenta, você o deixa morrer de fome. Se você vê uma pessoa condenada à morte ou em dificuldade semelhante e você não abrir a boca, quando conhece meios e formas de intervir, você a matou. E não adianta alegar que você não teve como ajudar, nem recurso nem meio disponível, porque você a privou do amor e do benefício pelo qual ela teria continuado a viver.1
Percebeu? Não mata apenas quem esfaqueia outra pessoa, mas também mata quem pode fazer o bem, cuidar, proteger, e não faz! Mata quem pode usar as leis para viver bem em sociedade e para o bom funcionamento da administração da sociedade, mas que pode fazer o bem, mas deixa de fazer o bem, praticando o mal. E mal não é apenas uma atitude. Mal pode ser simplesmente deixar de fazer o que é bom e correto. Omissão também é mal tão grande quanto a própria mentira. Por isso, Lutero continua dizendo: “Por isso também é cabível que Deus chame de assassinos todos aqueles que não ajudam na necessidade e no risco para a saúde e vida”2.
O mesmo acontece em relação aos outros mandamentos. As explicações de Lutero sobre eles no Catecismo Maior são muito interessantes e atuais. Este é o primeiro uso da lei: o uso civil que quer organizar a sociedade e preservar a vida. Vamos ao próximo:
2 USO PEDAGÓGICO DA LEI
Pedagogia nos lembra professores, não é? Pois é isso mesmo. A lei tem também uma função como se fosse uma professora. Ela quer ensinar o caminho certo a se seguir e também corrigir quando o caminho certo não é seguido. A lei como uma professora nos acusa em nossos erros e sempre tenta novamente nos ensinar qual é o caminho correto. A lei ensina. Quando alguém comete um crime e é condenado, a lei está ensinando que esse é o caminho para quando alguém comete aquele crime. O mesmo em relação a qualquer outro crime. A lei ensina. A condenação ensina a consequência gerada pela desobediência à lei. Claro, quando há tanta impunidade como em nosso país, quem sabe a lei esteja ensinando mais como dar jeitinhos para conseguir o que se quer do que, de fato, ensinando aquilo que deveríamos aprender: obediência.
O uso pedagógico da lei é também aplicado à espiritualidade. Nós estamos diante da lei de Deus. Conhecemos as leis de Deus. Aprendemos os 10 Mandamentos. Quem sabe até ainda os conheçamos de forma decorada. Mas é aqui que a lei cumpre um papel de espelho: ela revela quem nós somos, pois não as conseguimos cumprir totalmente.
Quando estamos diante da Lei, o pecado aparece, assim como a poeira aparece ao ser clareada por um pequeno feixe de luz. Nunca matamos ninguém com uma faca, mas, sim, já podemos ter assassinado muitas pessoas apenas na negação do auxílio ou quando deixamos de protegê-las, enfim, quando podíamos fazer o bem e não fizemos. A lei é cruel: ela mostra quem de fato nós somos. Diante do espelho da lei, nós enxergamos quem de fato somos sem nenhuma distorção. Os 10 Mandamentos não estão na Bíblia para mostrarmos o quanto somos bons em cumpri-los, mas para reconhecermos o quanto somos pecadores e que não conseguimos cumprir as leis de Deus.
A lei é uma professora que ensina o verdadeiro caminho e que ao mesmo tempo aponta que não conseguimos seguir pelo caminho correto, por mais que queiramos. Por isso, a lei não produz salvação, mas apenas condenação. A função da lei de Deus não é salvar. Quem quer se salvar através das práticas da lei está procurando a salvação por obras e não pela graça. A função bíblica da lei não é salvar, mas condenar. Por isso há uma maldição sobre a lei, pois embora ela seja boa para organizar a sociedade, é, ao mesmo tempo, incapaz de produzir salvação ao pecador.
O segundo uso luterano da lei nos leva ao conhecimento de quem nós somos. Ela demonstra que não há possibilidade de salvação em nós mesmos. Ela demonstra que nós (querendo ou não) sempre descumprimos a lei de alguma forma, a todo momento, em todo instante. O segundo uso da lei revela em um espelho quem eu sou diante de Deus: não um santo, mas um pecador; não um herói, mas um miserável; não um fiel, mas um infiel.
Assim, a lei é necessária para organizar a sociedade, mas não é santa, pois não há possibilidade de salvação para o pecador através da lei. O apóstolo Paulo irá escrever uma carta só sobre isso. Leia a carta aos Gálatas. São apenas seis capítulos. Perceba naquela carta como Paulo aponta que é impossível haver salvação através da lei. Isso não significa que a lei é jogada fora. Ao contrário, ela é importante no seu uso de corrigir e condenar e ao demonstrar quem somos, de fato, como seres humanos caídos e pecadores.
É por isso que a salvação é somente pela graça. O segundo uso da lei ensina que não posso me salvar a mim mesmo, pois sou pecador. O segundo uso da lei apresenta uma lista de todos os nossos pecados ao ponto de desesperarmos. Porém, Cristo cumpriu toda a lei por nós. Ele não pecou. E ele, sendo justo, nos doa a sua justiça para que sejamos aceitos diante de Deus. Deus não nos aceita por cumprirmos a lei, mas porque Jesus a cumpriu integralmente. Ele é justo e nos doa a sua justiça. Ele assume a nossa condenação para que sejamos inocentados diante de Deus. A lei não salva, mas conduz o pecador desesperado ao Cristo misericordioso e justo.
A lei é um espelho que nos leva ao reconhecimento da nossa imagem como pecadores. Mas se olharmos apenas para este espelho, iremos desesperar completamente. Por isso, o Evangelho é o convite a olharmos para a cruz onde Cristo sofreu para nos salvar. Ele assumiu o nosso desespero para nos dar esperança. Ele assumiu a nossa indiferença para nos dar amor. Ele assumiu a nossa condenação para nos sentenciar como inocentes. Sempre devemos olhar a Palavra de Deus como Lei que me condena e como Evangelho que me salva. Esta é dinâmica. Por exemplo, o que diz o Salmo 23.1? O Senhor é o meu pastor, nada me faltará! O que é lei neste versículo? Quem sabe o Senhor não seja o nosso pastor; quem sabe temos outros deuses em nossa vida; quem sabe desconfiemos da sua promessa de que nada nos faltará. Esta é a lei. É olhar para si mesmo e ver onde não conseguimos obedecer a este versículo. Porém, em seguida vem o Evangelho: ele é o meu Senhor! Ele fez tudo por mim! Ele não me deixa faltar nada! Ele me ama! Sou sua ovelha! Etc. Lei e Evangelho: Lei que acusa e evangelho que perdoa.
Esse é o uso pedagógico da lei conforme a tradição luterana. Vamos ao terceiro e último uso da lei:
3 USO DIDÁTICO DA LEI
Assim sendo, a lei não apenas nos orienta a vivermos reconhecendo os nossos pecados e a nossa condenação ao mesmo tempo em que corremos aos pés de Jesus, mas também nos ajuda a vivermos e a permanecermos na fé. Por isso, não há fé cristã sem leitura da Bíblia. Não há verdadeiros cristãos se no lar não acontece a leitura e conhecimento das Escrituras.
Este uso da lei tem a ver com aquilo que Lutero fala na sua quarta explicação sobre o Batismo, onde ele diz:
o velho homem em nós, por contrição e arrependimento diários, deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos, e, por sua vez, sair e ressurgir diariamente como novo homem, que viva em justiça e pureza diante de Deus eternamente.3
Este é o terceiro uso da lei. Tem ligação com a espiritualidade, com o estar diariamente na presença de Deus em arrependimento sincero ao mesmo tempo em que há o perdão e a completa renovação. Já sabemos que somos filhos de Deus somente em Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador; através do terceiro uso da lei, aprendemos a nos comportar com filhos de Deus, embora muitas vezes nós desobedeçamos e precisemos de perdão.
O terceiro uso da lei é para a regeneração, o arrependimento, a conversão diária. O terceiro uso da lei é para o viver o batismo e colocar os dons a serviço, como diz o tema da IECLB para o ano litúrgico de 2021.
Amados e amadas,
estes são os três usos luteranos da lei: 1) civil: para organizar a sociedade; 2) pedagógico: para ensinar e corrigir a vida do cristão; 3) didático: para nos levar ao arrependimento diário. Vemos o espelho que é a lei nos seus três usos. Ela de fato mostra quem somos e ela não pode nos salvar. Não há salvação pela lei. Não há salvação pelas boas obras. É ao contrário: o salvo é que faz boas obras. A lei é necessária, mas não é santa; a lei é importante, mas não é salvadora. Santo e Salvador é somente o Senhor Jesus Cristo que cumpriu toda a lei por nós para que a justiça de Deus seja pela graça e não por obras. A lei é fundamental, mas não é a lei quem justifica o pecador. A justificação é somente pela fé em Cristo Jesus.
É tempo de Quaresma. Tempo de avaliação, arrependimento, conversão, renovação. Hoje a lei vem diante de nós como um espelho. O que nós vemos? Quem nós vemos? Não é uma boa imagem, pois “todos pecaram e carecem da glória de Deus”. (Romanos 3.23). Talvez devêssemos mudar a pergunta da rainha lá da história da Branca de Neve. Quem sabe, a pergunta não seja “espelho, espelho meu: existe alguém mais belo do que eu?”, mas, “espelho, espelho meu: existe alguém mais feio do que eu? Existe alguém mais pecador do que eu?” Diante da lei, sabemos que somos nós mesmos os maiores pecadores que conhecemos, afinal de contas, diante de Deus não existe pecadinho ou pecadão. Não! Diante de Deus só existe o pecado. As consequências terrenas entre roubar uma caneta ou matar uma pessoa são diferentes. Porém, diante de Deus ambas são apenas igualmente pecado.
A lei é um espelho. À luz da Palavra de Deus e nos três usos da lei, vamos avaliar a nossa vida. Estamos cuidando do nosso próximo? Estamos sendo ensinados? Estamos arrependidos? Ao mesmo tempo, não olhemos apenas para o espelho, mas para o Cristo crucificado onde está a beleza da salvação revelada na imagem da tragédia da cruz. Lei e Evangelho é olhar para o espelho e olhar para a cruz.
Faça uma avaliação da sua vida. Perceba que não há salvação em você mesmo. Mas também receba a salvação que fez tudo por você. A partir disso, aceitemos também o convite de vivermos bem, seguindo a Jesus, tomando a nossa cruz. Deus nos conceda diariamente sua graça e seu amor.
E a paz de Deus que excede todo o entendimento guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
3º DOMINGO NA QUARESMA | VIOLETA | CICLO DA PÁSCOA | ANO B
07/03/2021
Série de Pregações: Quaresma: O Raio-X de nós mesmos | Episódio 2
1 LUTERO, Martim. Catecismo Maior - 1529. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 55.
2 LUTERO, 2012. p. 55.
3 LUTERO, Martim. Catecismo Menor – 1529. in: DREHMER, Darci (Ed.). Livro de Concórdia. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2006. p. 376.
P. William Felipe Zacarias