Lutero, a economia e o mundo do trabalho
Quando nos ocupamos com as temáticas da economia e do trabalho, somos surpreendidos pelas colocações de Lutero – que se encontra no limiar entre a Idade Média e a Modernidade. Impressiona sua perspicácia já destacada por teóricos dos dois campos citados. O reformador viveu em dias de capitalismo incipiente. À época, estabeleciam-se casas bancárias na Alemanha (Welser e Fugger) e na Itália (Medici). O dinheiro não era mais gerado exclusivamente pela agricultura, mas a partir dele mesmo – o que chamou a atenção do monge. Em diversos escritos, inclusive, ele descreveu o que estava acontecendo: Pequeno sermão sobre a usura (1519), Grande sermão sobre a usura (1520), À nobreza cristã de nação alemã (1520), Sobre as boas obras (1520), Sobre comércio e usura (1524) e Aos párocos para que preguem contra a usura, Admoestação (1540).
Até então, os artesãos trabalhavam, produziam e vendiam seus produtos. Com a instalação das casas bancárias, porém, esse processo foi modificado. Mineiros –como o pai de Lutero –, que antes trabalhavam livres, passaram a atuar em minas compradas por essas casas que também começaram a fornecer matéria-prima aos tecelões. Isso fez com que eles deixassem de ser independentes. Os agricultores, por sua vez, estavam sendo expropriados e passavam a ser proletários livres ou servos da gleba.
Vivendo em um mundo no qual a atividade que mais assegurava o acesso ao céu dizia respeito à vida religiosa e em que a atividade profana era considerada de menor importância, mesmo que necessária, Lutero valeu-se do sacramento do batismo para afirmar o contrário. Para ele, esse era o sacramento da ordenação. E essa ordenação eliminava a distinção entre clero e leigo. Todo batizado passava a ser sacerdote. Se antes se aplicava o conceito “vocação” apenas aos religiosos que teriam sido chamados por Deus, agora, por causa do batismo, toda pessoa estava sendo vocacionada para a atividade que exerceria. Para Lutero, por causa do batismo, ser sapateiro ou ferreiro, por exemplo, era chamado de Deus. Eles tinham vocação para tal atividade e, por meio dela, serviriam ao próximo. Com essa concepção, o sacerdócio deixou de ser a atividade mais importante da sociedade.
Para marcar essa sua compreensão, Lutero criou uma nova palavra na língua alemã, um neologismo: Beruf. Ela passou a ser utilizada para designar profissão e vocação. Antes, Arbeit era o termo empregado para referir o trabalho. Note-se que no radical do vocábulo está o verbo alemão rufen, que significa chamar. Para o reformador, então, quando Deus chama alguém, o verbo a ser utilizado é rufen. Por isso, toda profissão passou a ser considerada vocação.
Conforme exposto pelo historiador Thiago de Oliveira Andrade (2017) no livro 500 anos de reforma protestante: perspectivas e reflexões, Lutero também tratou de buscar consenso entre o que chama de trabalho manual produtivo e trabalho intelectual, sugerindo respeito e prestígio a ambos. Na Carta aos conselheiros de todas as cidades da nação alemã, para que instituam e mantenham escolas cristãs, escrita em 1520, Lutero afirma que “Deus chamou o homem para trabalhar porque ele mesmo trabalha e se ocupa em ofícios comuns: Deus é o alfaiate que faz para o veado um vestido que durará mil anos [...] O próprio Cristo trabalhou de carpinteiro”. No mesmo texto, o reformador valoriza o esforço intelectual: “O escrever não empenha somente a mão ou o pé, deixando livre o resto do corpo para cantar ou brincar, mas empenha o homem inteiro”.
Segundo o historiador Martin Dreher, na atualidade, temos certa dificuldade com estas formulações de Lutero. Embora seja possível optar por uma profissão e ver nela chamado e vocação a serviço do próximo, é o mercado que decide qual será nosso ofício. “Ele regula toda a nossa vida. O trabalho, de novo, não é mais uma vocação, mas uma atividade que você exerce após haver se submetido à lógica do mercado. Mais e mais computadores substituem os trabalhadores. E os computadores não têm ‘próximo’. Seu serviço, portanto, não é vocação”.
Se Lutero pode fazer críticas ao novo modelo econômico emergente, depois por muitos rejeitadas, suas colocações relativas ao mundo do trabalho devem ser classificadas como exemplares. Ele pode ter influenciado pensadores que apostaram no social, tão utópicos quanto ele. Hoje, talvez, fosse crítico social e, mais uma vez, condenado.
Você sabia?
Alguns dos sobrenomes que conhecemos têm origem nas profissões mais comuns da época de Lutero e estão listados na obra Das Ständebuch (O livro dos estamentos), de Jost Amman. Confira, a seguir, 30 deles:
Balbierer: barbeiro
Bauer: agricultor
Beck ou Becker: padeiro
Bierbrauer: cervejeiro
Bildhauer: escultor
Brillenmacher: oculista
Drechsler ou Dreher: torneiro
Fischer: pescador
Glasser: vidreiro
Goldschmied: ourives
Gürtler: cintureiro
Jäger: caçador
Kauffmann: comerciante
Koch: cozinheiro
Krämer: mascate
Maurer: pedreiro
Metzger: açougueiro
Müller: moleiro
Müntzmeister: moedeiro
Nadler: agulheiro
Nagler: pregueiro
Sattler: seleiro
Schmied ou Schmidt: ferreiro
Schneider: alfaiate
Schreiner: marceneiro
Schuhmacher ou Schuster: sapateiro
Seyler: cordoeiro
Singer: cantor
Wagner: carroceiro
Weber: tecelão