Um olhar retrospectivo para a história da Paróquia Bom Samaritano, com sua sede no bairro de Ipanema, significa percorrer uma trajetória muito importante da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro. Representa o acompanhamento do processo de abertura da Igreja para a realidade social da cidade do Rio de Janeiro e também para o esforço de superação de seu gueto étnico.
Os anos 50 e 60 do século passado foram marcados por um processo muito veloz de metropolização da cidade do Rio Janeiro. O afluxo de contingentes populacionais, fruto de onda migratória interna, para a capital do Brasil (que depois se tornou capital do Estado do Rio) e a expansão da mancha urbana para os municípios limítrofes fizeram com que a Igreja se visse compelida a acompanhar esta dinâmica da cidade. Embora tivesse vários pontos de pregação espalhados pela cidade, a vida comunitária propriamente dita, girava em torno de um centro único, localizado no centro da cidade.
No início da década de 60 torna-se cada vez mais evidente a necessidade de uma descentralização da atividade pastoral da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro. O acompanhamento das famílias que residiam, ou começavam a ter o seu domicílio na zona sul da cidade, fez com acontecessem cultos na Igreja Presbiteriana de Copacabana e reuniões de jovens na residência do Pastor Fritz Vath no Leblon. O referido pastor fundamentava este movimento, afirmando que: “A Igreja precisa estar de novo no centro da vida e não somente no centro da cidade.” e “Se as pessoas não vêm à Igreja, a Igreja tem a obrigação de ir até as pessoas. “ Uma outra liderança, o Dr. Rodolfo Doerzapf, que advogava um processo de abertura da igreja, assim se expressava: “... se a igreja deseja sobreviver na cidade grande, o altar deve ter rodas.”
O cenário dentro do qual se inscreve esta história tem a ver com o fato de que tomava corpo na Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro uma tendência mais alinhada com a nova Igreja nacional. Essa tendência defendia o uso da língua portuguesa e procurava vir ao encontro de uma geração nascida no Brasil que não tinha mais vínculos tão estreitos com o exterior. Dr. Rodolfo Doerzapf ao apontar os novos rumos dizia: “A Reforma de Lutero já há alguns séculos não é mais exclusividade dos alemães e de seus descendentes.”
A consciência da necessidade de uma nova dinâmica pastoral estava conjugada também com a percepção de que não se poderia dar conta do testemunho evangélico sem, ao mesmo tempo, levar em consideração a realidade sócio-econômico-cultural da população empobrecida dos morros cariocas. A favelização dos morros e baixadas chamava a atenção de todos. Esta realidade foi levada em consideração quando da construção do templo em Ipanema. O Pastor Fritz Vath assim se expressava em 1965: “Sobre nós Deus coloca a responsabilidade pelo irmão e pela irmã. Onde desperta esta idéia da responsabilidade, ali o reino de Deus faz um passo para frente em nossa cidade. Aí não há desvio, mas isso significa ‘mãos à obra!’ Nisso sabemos que nosso serviço, seja comunitário ou social é serviço a Deus.” Na mesma direção argumentava o Dr. Rodolfo Doerzapf em 1967: “Sim, como Comunidade Evangélica Luterana nós precisamos olhar para além das diferenças de classe e de raça e ajudar ao nosso próximo, em especial, no Rio de Janeiro onde a miséria se apresenta de forma tão abundante.”
A construção do templo e do prédio de cinco andares para o centro comunitário e social foi possível graças ao apoio financeiro do Comitê Nacional Americano da Federação Luterana Mundial e da Central Evangélica de Ajuda para o Desenvolvimento. Trabalharam ativamente o engenheiro Dr. Doebereiner e a Comissão de Obras foi dirigida pelos Srs. Eurico Leusin e Johannes Caesar. O lançamento da Pedra Fundamental ocorreu no dia 3 de abril de 1966 e a inauguração no dia 21 de junho de 1970.
Como primeiro coordenador dos trabalhos do Centro Social a Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro chamou o Pastor Gustavo Adolfo Schünemann.
Em sua prédica de apresentação o referido Pastor afirmou: “A nossa Igreja (...) é chamada também a dar a estas populações o que tem de mais precioso: a pregação do Evangelho. Mas não pode fazê-lo só com os lábios, deve ao mesmo tempo, fazê-lo com as mãos. Não pode ficar na teoria, tem que ir também à prática. Não pode pregar, prometer dias melhores para o futuro, tem que oferecer soluções no presente. Precisa levantar sinais de solidariedade humana! Somos, pois, como cristãos, chamados a dar a nossa contribuição e cada um de nós dentro de suas possibilidades, dando o seu tesouro e tempo e oferecendo os seus dons em favor dos necessitados. Além do trabalho espiritual, que como Igreja Cristã sempre devemos oferecer aos nossos próximos, devemos também oferecer um trabalho social(...). Neste serviço e nesta assistência espiritual e social, no âmbito da comunidade ou em cooperação de várias comunidades, como igreja institucionalizada, reclama-se de nós contribuições materiais. Será campo onde podemos fazer uso correto de nossos bens, empregando-os para o bem físico e espiritual dos nossos próximos. Devemos fazê-lo também em cooperação com outras entidades assistenciais, igrejas, governo.”
Durante o período de sua atuação o Pastor Gustavo Schünemann procurou sensibilizar os membros da comunidade para o trabalho. Reuniu em torno de si uma equipe de médicos e educadores que desenvolveram um trabalho nas áreas de alimentação e saúde. Realizavam-se palestras sobre nutrição e higiene, cursos de culinária e corte e costura para mulheres, datilografia e aconselhamento de mães e jovens. As crianças das favelas foram envolvidas para canto, brincadeiras e trabalhos manuais. À noite aconteciam cursos de alfabetização para adultos ( cerca de 200 alunos) e o coordenador do Centro Social foi inclusive responsável pela Comissão de Divulgação do MOBRAL(Movimento Brasileiro de Alfabetização) na VI Região Administrativa da Gávea. A equipe era formada pelas seguintes pessoas voluntárias: Christa Noethlich Pimentel, Beate Schünemann, Dr. Hans Joachim Wolff, Lígia Diesel, Gertrude Lange, Natalie Dunker e jovens da comunidade. Anos depois foi contratado o Diácono Sadi Moreira.
A vida celebrativa acontecia majoritariamente em língua portuguesa e contava com a presença marcante de jovens. O trabalho pastoral procurava dar conta de um desafio já presente na cultura e mentalidade da sociedade dos anos 70, qual seja, vencer o individualismo mediante a oferta de espaços de comunhão. Neste período o ponto forte de Ipanema foi o trabalho com jovens. Eles debatiam temas cativantes e relevantes, se envolviam no trabalho social e realizaram várias viagens artísticas (Brasília, São Paulo, Foz do Iguaçu, Brusque) além de participarem da I Olimpíada Nacional da Juventude Evangélica em Rio do Sul em 1972.
A presença na vida ecumênica se fez sentir com a participação no Conselho Ecumênico do Rio de Janeiro. Além disso, Ipanema contou também com o trabalho da primeira formanda da Faculdade de Teologia de São Leopoldo/RS. Elisabeth Dietschi Moltmann atuou no Rio de Janeiro entre 1973-1974, desenvolvendo, entre outras atividades, um trabalho no Morro do Cantagalo.
Todo o trabalho da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro era coordenado pela diretoria e equipe pastoral. Entre os pastores, chamados e nomeados pela diretoria, havia uma divisão de tarefas segundo ênfases e áreas geográficas. Por isso por isso tornam-se inseparáveis as histórias do Centro Social Bom Samaritano, a história da atual Paróquia Bom Samaritano e a história da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro. O Pastor Gustavo Schünemann deixou os trabalhos no início de 1977 e foi substituído em 1978 pelo Pastor Richard Engelbrecht. A sua permanência foi muito breve em virtude das tensões existentes. Concepções pastorais e visões de igreja muito diferentes dificultaram os trabalhos. Em 1977, a partir de uma reforma estatutária, a Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro assumiu uma nova estrutura, conhecida como União Paroquial.
Decisivo para a implantação e consolidação desta nova estrutura da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro foi a presença do Pastor Karl Gerhard Braun a partir de 1980. Com formação teológica no Brasil e profundamente identificado com a estrutura da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, após larga experiência em paróquias no sul do Brasil, onde atuou inclusive como Pastor Distrital e Vice-Pastor Regional, Pastor Gerhard Braun colocou como condição para a sua atuação no Rio a delimitação das áreas geográficas das paróquias Centro e Ipanema. Sua investidura teve amplo apoio da direção nacional. Era chegada a hora de serenar os ânimos acesos pela falta de articulação entre as diversas áreas e setores da Comunidade Evangélica Luterana no Rio de Janeiro. Graças ao seu dinamismo e com forte apoio do Sr. Hermann Evelbauer Pastor Karl G. Braun conseguiu completar a inserção definitiva da Comunidade na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.
No período de sua atuação o trabalho na Zona Sul da cidade recebeu grandes impulsos. Floresceram os trabalhos com crianças, jovens, mulheres e casais. Novos pontos de pregação foram criados na Barra da Tijuca (Union Church), em Nova Iguaçu/RJ e Resende/RJ. A partir de uma visitação intensa e acompanhamento direto dos membros a Paróquia cresceu e dobrou o seu número de membros. O acolhimento e a recepção de novos membros por meio de profissão de fé foi intenso. Os contatos e as relações ecumênicas foram retomadas na esfera mais institucional. Estes contatos e aproximações possibilitaram o ingresso no quadro de obreiros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil do Pastor Mozart João Noronha de Melo em 1987.
No ano de 1979 foi fundada a creche Bom Samaritano no espaço do Centro Social. Isso foi possível a partir do empenho e da dedicação da Sra. Renate Mannshardt. A Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro assinou um convênio com a Legião Brasileira de Assistência para a instalação de uma creche Casulo. As instalações do Centro Social foram adaptadas e o caráter do trabalho começou a se concentrar no acompanhamento de crianças e famílias das favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho.
Nos anos 80 várias assistentes sociais e comunitárias foram contratadas e um Conselho procurava dar a direção política do trabalho. O pastor da Paróquia Bom Samaritano de Ipanema fazia a ponte entre o trabalho diaconal e a Diretoria da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro a qual a creche estava subordinada. A sustentação financeira acontecia a partir de um círculo de amigos na Alemanha e de convênios e apadrinhamentos locais.
O aspecto educacional mereceu atenção especial a partir de um intercâmbio maior com outras entidades congêneres e um trânsito constante com os órgãos públicos da cidade do Rio de Janeiro. Procurou-se superar a imagem de creche como depósito de crianças. Investiu-se numa equipe multidisciplinar que proporciona às crianças um desenvolvimento integral e possibilita uma estrutura emocional que a capacite para uma melhor integração na escola.
Para qualificar e ampliar o atendimento de crianças a Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro adquiriu duas residências localizadas aos fundos do Centro Social. A sua adaptação e integração permitiu a duplicação do número de crianças da Creche Bom Samaritano.
Com a morte repentina do P. Gerhard Braun em 1991, a paróquia foi atendida provisoriamente pelo P. Mozart João de Noronha Melo, pastor cedido pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil para a Igreja Cristã de Ipanema. Neste mesmo ano incorporou-se à Paróquia um grupo significativo de membros desta igreja. Este grupo também foi pastoreado pelo P. Mozart João de Noronha Melo. Algum tempo depois o referido pastor foi eleito como pastor da Paróquia e anos mais tarde exerceu, juntamente com a atividade pastoral local, também as funções de Pastor Distrital do Distrito Eclesiástico Rio de Janeiro e de Vice-Pastor Sinodal do Sínodo Sudeste . A assimilação e integração desses novos membros de tradição reformada aconteceu de forma gradativa e hoje o espaço de celebração fica aquém das necessidades.
A presença e participação na vida pública e ecumênica por parte da Paróquia Bom Samaritano deram visibilidade ao trabalho da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro não só na zona sul como também em toda da cidade. A estreita relação com a população dos morros Cantagalo, Pavão e Pavãozinho bem como a sensibilidade e a abertura para questões relativas à promoção da cidadania levaram a um enorme reconhecimento e uma grande credibilidade nestas três décadas de atuação.
Ao longo dos anos a Creche foi coordenada, entre outras pessoas, pela Diácona Lorita Krüger, a pedagoga Silvia de Oliveira Schünemann e a Diácona Vilma Petsch, sempre dentro de um espírito de ministério compartilhado.
O testemunho da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro por meio da atuação da Paróquia e Creche Bom Samaritano é motivo de muita alegria e gratidão. Milhares de pessoas receberam alimento espiritual, experimentaram comunhão e partilha, tiveram apoio solidário em suas dificuldades e consolo em seus momentos de dor e de crise. O trabalho sensibilizou dezenas de pessoas ao longo dos anos. Despertou e aprimorou lideranças e prestou um serviço significativo à população. Sinalizou positivamente para a impossibilidade de separar fé e vida, fé e sociedade, fé e cidade, fé e cidadania.
Rolf Schünemann
[Publicado no livro 180 anos de história e fé.]