Vida feliz

Artigo

03/04/2010

O desejo ardente por felicidade estimula a uma pergunta curiosa; o questionamento acompanha a humanidade desde os seus primórdios: o que é felicidade? A busca por vida feliz leva a humanidade a tentar conquistá-la, a todo custo e a qualquer preço, até mesmo na contramão do bom senso, da razão e da vocação específica, sendo filhos ou filhas de Deus. Muitos são os valores próprios e os sinais de subjetividade que têm determinado a busca desenfreada por felicidade. O mercado dos bens finitos, o ímpeto do consumo, as promessas nascidas no mundo do prazer, da cultura e da economia desenvolveram referenciais para revelar o mistério da vida feliz.

As ciências humanas e sociais, a psicologia, a teologia e a antropologia dedicaram largos espaços ao assunto. Reflito o tema vida feliz justamente no tempo da Quaresma; um tempo litúrgico especial que faz meditar sobre a relevância do arrependimento, sobre as marcas do sofrimento do Cristo e da nossa própria situação sofredora. A vida de Cristo é exemplar: foi construída sobre o mandato da obediência e da renúncia ao poder hierárquico. Esvaziou-se a si mesmo.

O advento da Reforma da Igreja, no século 16, sua teologia deixou marcas profundas e reconhecidas no contexto eclesial e na sociedade. Mudanças aconteceram em relação à visão do ser Igreja; mudou o perfil do ser humano que descobriu, a partir do Evangelho, sua liberdade para viver intensamente a sua humanidade. Na qualidade de, simultaneamente, justo e pecador, pode sentir-se à vontade para viver a sua existência sob os raios do sol da graça, oferta do Deus amoroso.

Em contraposição à teologia calcada sobre a imagem do Deus imbatível e Senhor de todas as situações, um pressuposto para o agir glorioso e forte da Igreja, a Reforma luterana argumentou com a teologia da cruz (teologia crucis). Deus nasce da fraqueza, vivencia a loucura da cruz e declara “felizes os mansos e humildes, os que choram, porque serão chamados filhos e filhas de Deus”.

O poder da graça de Deus gera nova esperança ao excluído e ao pecador, à pessoa não merecedora de recompensa. A logomarca da cruz, sinal da fragilidade humana, contempla o ser humano como pessoa amada e valorizada pela misericórdia divina. A cruz de Cristo transforma-se em fonte de salvação e manancial de felicidade.

Aristóteles, o filósofo clássico grego, ensinou que o bem maior do indivíduo é a vida feliz, sem máculas, bem vivida. A vida deve ter como alvo maior a realização da vida plena, felicidade sem limites.

Jean Jacques Rousseau, pensador suíço, no século 18, repartiu a visão da filosofia clássica e destacou que “a educação pessoal tem como alvo o reconhecimento da própria existência, a serviço das próprias potencialidades e da busca de realização e de felicidade”.

A espiritualidade luterana e a sua argumentação teológica e ética, fundamentadas nos princípios da teologia crucis, jamais contraditaram a vida feliz e plenamente realizada. Diversas, no entanto, são as fontes da felicidade. A busca da felicidade, fruto da autopromoção e das obras meritórias, assim como a submissão irrefletida aos princípios da filosofia, sinaliza a pessoa humana que procura “ser igual a Deus”. Extrapola, pois, o lugar que Deus lhe concedeu no mundo. Vida feliz será sempre um espelho do amor e da graça do Deus encarnado em Jesus Cristo e, sobremaneira, bondoso.

Manfredo Siegle
Pastor sinodal do Sínodo Norte Catarinense


Autor(a): Manfredo Siegle
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Natureza do Texto: Artigo
ID: 8172
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