Amados irmãos, amadas irmãs,
provavelmente todos nós nos últimos dias vimos alguma coisa sobre Walter Orthmann, o brasileiro que entrou para o Guiness Book (Livro dos Recordes) como funcionário mais antigo do mundo. No dia 19 de Abril, Walter comemorou 100 anos de vida. Ele trabalha há 84 anos na mesma empresa na cidade de Brusque em Santa Catarina. Em entrevista a um jornal, Walter disse com todo o orgulho: “Sou evangélico luterano”1. Aliás, Walter recebeu também sua educação na escola evangélica da comunidade de Brusque/SC2. Além disso, todas as noites o Sr. Walter se senta para orar e ler a sua Bíblia3.
Esta é uma história maravilhosa, pois combina com aquilo que nós chamamos de “ética protestante do trabalho”. A visão protestante sobre o trabalho tem moldado profundamente o Ocidente e levado países que aderiram ao protestantismo à prosperidade material – embora, muitas vezes, esta prosperidade material se traduza também em um esquecimento de Deus.
Hoje nós comemoramos o Dia do Trabalhador (ou o Dia do Trabalho). Como igreja cristã, não podemos esquecer esse dia. Por isso, queremos olhar com carinho para este dia a partir da tradição luterana. A Bíblia e Lutero falam muito sobre o trabalho. Certamente, teremos muito o que aprender nesta manhã.
Basta lembrarmos de Provérbios 6.6 para sabermos o quanto o trabalho era – e é – importante para o povo de Deus: “Vá ter com a formiga, ó preguiçoso”. Em outras palavras: vá conversar com a formiga e veja o quanto ela trabalha. A Palavra de Deus não diz que o trabalho nos torna dignos. Somos dignos por termos sido criados à imagem e semelhança de Deus. Contudo, há grande ênfase na importância do trabalho na Bíblia.
1 O TRABALHO É VOCAÇÃO
Uma das interpretações protestantes do trabalho vai afirmar que o trabalho é sempre o cumprimento da vocação. Antes da Reforma Protestante, acreditava-se que apenas o sacerdócio na Igreja era realizado através da vocação. Em outras Palavras, os únicos vocacionados (chamados por Deus) eram os padres, bispos e o papa. Na época, acreditava-se que quando Deus chamava alguém, seria para ser padre.
Martinho Lutero – em sua interpretação das Escrituras – alterou esta forma de ver a vocação. Para o reformador alemão, Deus não vocaciona apenas os padres ou os cargos religiosos, mas a todas as pessoas. Assim, Lutero passou a ver toda profissão (Beruf) como sendo, ao mesmo tempo, uma vocação (Berufung). Isso significa que não apenas os padres receberam um chamado divino para o seu trabalho, mas todas as pessoas. Este é o Sacerdócio Geral de Todos os Crentes: se o/a padeiro/a faz um bom pão, ele/a serve a Deus por meio do próximo e cumpre sua vocação; se o/a professor/a ensina bem, ele/a serve a Deus por meio do próximo e cumpre a sua vocação; se o/a agricultor/a cuida bem da sua plantação, ele/a serve a Deus por meio do próximo e cumpre a sua vocação. E assim em todas as profissões. Na ética luterana, a profissão é vocação onde o/a cristão/ã serve a Deus por meio do próximo. Lutero diz:
a pessoa não vive somente para si mesma neste corpo mortal, para operar nele, mas também para todas as pessoas na terra, sim, ela vive somente para os outros e não para si. Pois para isso sujeita seu corpo, para assim poder servir aos outros com mais sinceridade e liberdade.4
Na visão de Lutero, assim como Cristo, em sua vocação, nos serviu através da sua morte na cruz em amor, da mesma forma nós, em gratidão, servimos amorosamente ao próximo:
E nesse mesmo sentido também é cristão cuidar do corpo, para que, por meio de seu vigor e bem-estar, possamos trabalhar, adquirir bens e preservá-los para subsídio daqueles que têm carência, para que assim o membro robusto sirva ao membro fraco, e sejamos filhos de Deus, um preocupado e trabalhando pelo outro, carregando os fardos uns dos outros e assim cumprindo a lei de Cristo.5
Portanto, “a pessoa cristã não vive em si mesma, mas em Cristo e em seu próximo, ou então não é cristã. Vive em Cristo pela fé; no próximo, pelo amor”6. Dessa forma, a vocação do cristão não se realiza apenas na Igreja. Seus dons não são colocados à serviço apenas no culto. Ao contrário, é no mundo que o cristão cumpre a sua vocação, servindo a Deus por meio do próximo. Se acreditamos que nascemos para fazer o que fazemos, podemos crer que estamos cumprindo a nossa vocação no mundo.
2 O TRABALHO É OBRA
Uma das interpretações equivocadas sobre o trabalho é vê-lo como castigo. Quando o trabalho é visto nesta perspectiva, ele se torna pesado e triste. Neste caso, não haverá alegria ou prazer quando o despertador tocar e for a hora de ir trabalhar. Quando isso acontece, trabalha-se hoje já pensando na aposentadoria, vivendo-se na expectativa de um futuro distante.
Talvez todos esses sentimentos estejam enraizados na própria palavra trabalho. A
palavra “trabalho” (assim como em francês, espanhol e italiano) tem origem no vocábulo latino tripalium, que era um instrumento de tortura, ou seja, três paus encruzados para serem colocados no pescoço de alguém e nele produzir desconforto.7
Nesta perspectiva, o trabalho não é visto como um chamado divino, mas como algo indecente, imoral, de quem não conseguiu nada na vida e está sendo punido por causa disso. Um trabalho assim cansa, decepciona e se torna enfadonho.
Por isso, precisamos alterar o significado da palavra trabalho. Quando uma criança cria um castelinho de areia na praia, ela fica feliz, pois aquilo é sua obra; quando alguém cuida bem do seu jardim e das suas flores, essa pessoa fica feliz, pois aquilo é sua obra; quanto alguém cria uma pintura, uma música ou outro tipo de arte, essa pessoa fica feliz, pois aquilo é sua obra. Neste caso, trabalho não é mais tripalium (castigo), mas poiesis (poesia, obra). Nesta perspectiva, podemos olhar para o que fazemos com alegria e satisfação. Não sou escravo do que estou fazendo, mas estou realizando uma obra no mundo. O próprio trabalho se torna uma obra de arte pessoal.
Claro que não é tão simples assim. Muitas vezes o salário não é “aquilo tudo”; outras vezes, o tratamento recebido no local de trabalho não é “dos melhores”; e outras vezes, realiza-se apenas uma função no trabalho, perdendo-se a noção do todo. Trabalha-se em apenas uma área da linha de produção onde você não vê o produto, mas só uma parte dele. Talvez, também isso colabora para que o trabalho seja visto como um castigo e não como uma obra a ser realizada. Neste caso, acaba se tornando castigo de fato e mudar a interpretação do trabalho para vê-lo como uma obra se torna ainda mais difícil.
3 O TRABALHO É BÊNÇÃO
Um último aspecto importante sobre o trabalho é que ele é uma bênção. O trabalho é também interpretado muitas vezes como castigo por causa da expulsão do ser humano do Jardim do Éden, quando Deus diz a Adão: “No suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, pois dela você foi formado; porque você é pó, e ao pó voltará”. (Gênesis 3.19). Entretanto, Deus não está castigando Adão. Seria castigo se Adão e Eva fossem impossibilitados de terem seu sustento, pois morreriam de fome. Por isso, o trabalho é uma bênção que Deus concedeu ao ser humano para que ele permaneça vivo. Contudo, o próprio Deus deixa claro que não é o trabalho (a obra humana) que confere salvação eterna ao ser humano. Mesmo trabalhando muito, um dia o ser humano volta a ser pó.
Por isso, o trabalho é uma bênção. Através do trabalho, Deus sustenta a nossa família e nos dá a possibilidade de ajudar também a outros. Toda ajuda ao próximo precisa ser libertadora, não escravizadora, para que a pessoa emancipe a si mesma e com o trabalho possa adquirir o seu sustento. Paulo faz essa recomendação em 2 Tessalonicenses 3.10-12: “Se alguém não quer trabalhar, também não coma. Pois, de fato, ouvimos que há entre vocês algumas pessoas que vivem de forma desordenada. Não trabalham, mas se intrometem na vida dos outros. A essa pessoas determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que, trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão”. Assim, o trabalho é bênção por libertar a família de depender de outras pessoas para que o esposo e a esposa possam adquirir seu próprio sustento: “se empenhem por viver tranquilamente, cuidar do que é de vocês e trabalhar com as próprias mãos, como ordenamos, para que vocês vivam com dignidade à vista dos de fora, e não venham a precisar de nada”. (1 Tessalonicenses 4.11-12).
Amados irmãos, amadas irmãs,
vamos nós trabalhar, somos servos de Deus! No dia de hoje, comemoremos a nossa profissão ou reflitamos se estamos no lugar certo... Amamos aquilo que fazemos? Ou estamos em determinada profissão porque é a que mais dá dinheiro? Vale a pena permanecer uma vida inteira em uma mesma profissão sem gostar dela?
Lembre-se:
1) Trabalho é vocação: Você foi chamado/a a servir a Deus por meio do próximo em sua profissão. Através do trabalho, sirva a Deus não apenas na Igreja, mas também no mundo. Este é o Sacerdócio Geral de Todos os Crentes;
2) Trabalho é obra: Trabalho não deve ser visto como um castigo, mas como algo para o qual você olha e sente orgulho de ter feito. Veja a sua profissão como oportunidade de realizar algo seu;
3) Trabalho é bênção: Através da sua profissão, você sustenta a si mesmo e a sua família. Portanto, agradeça a Deus pela sua profissão: ela será importante até nos tornarmos pó novamente.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
3º DOMINGO DA PÁSCOA | BRANCO OU DOURADO | CICLO DA PÁSCOA | ANO C
01 de Maio de 2022
P. William Felipe Zacarias
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4 LUTERO, Martinho. “Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã”. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. O programa da Reforma. Escritos de 1520. v. 2. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. p. 451.
5 LUTERO, Martinho. 1989. p. 452.
6 LUTERO, Martinho. 1989. p. 453.
7 CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a tua obra?. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 17. Grifo do autor.