Texto-base do Tema e Lema de 2016

25/11/2015

 

Texto-base do Tema e Lema de 2016

Introdução

Estamos às vésperas do 500º aniversário da Reforma, a celebrar em 2017. Juntamente com milhões de pessoas e comunidades cristãs, espalhadas pelos cinco continentes, estaremos celebrando cultos e cantando louvores a Deus pelas dádivas advindas com o Movimento da Reforma, iniciado na Europa no século XVI.

Como preparação para essa grande celebração, as Igrejas Luteranas, congregadas na comunhão da Federação Luterana Mundial – FLM, foram convidadas para refletir, no triênio 2015-2017, o tema Livres pela graça de Deus, e três subtemas: a) Salvação não está à venda; b) Seres humanos não estão à venda; c) Criação não está à venda.

 A Presidência da IECLB, ao definir o Tema do Ano para 2016, soma-se a esse esforço coletivo. Ela acolhe o convite da FLM como oportunidade para contextualizar a dimensão do cuidado, marca que vem sendo construída em toda a igreja ao longo dos últimos anos. Além disso, ao escolher como Lema bíblico o texto de Amós 5.14a, quer estimular uma reflexão sobre o tema ética. Trata-se de um tema atual e decisivo, tanto para o rumo de uma igreja missionária quanto para o futuro da sociedade.

A ética e a vida

Iniciamos a nossa refl exão com uma pergunta: por que o tema da ética é tão pertinente em nosso dia a dia? Respondemos, ilustrando com dois fatos da vida.

No primeiro, seu Firmino desabafa na roda de amizade: O que está havendo com nossa classe política? Haverá ao menos um deputado que não aceita propina? Com facilidade reajustam seus próprios salários, e justificam isso sem envergonhar-se! Mas, projetos para melhorar o atendimento às pessoas doentes, fi cam engavetados. É desvio e mais desvio; mentira e mais mentira. Pô, assim não dá! É quando um amigo de Firmino emenda: Não há mais ética na política! Esse é o problema.

No segundo, Firmino e sua esposa haviam decidido contratar uma doméstica. Suas aposentadorias permitiam pagar um salário mínimo, com carteira assinada. Maria, a doméstica, fora informada por Firmino: No fim do mês deposito o seu salário na sua conta e recolho o seu INSS. Com isso, terei algo mais a fazer como aposentado. Cinco anos se passaram e Maria requereu aposentadoria. Ao encaminhar seu pedido junto ao INSS, Maria ouviu esta informação: Nos últimos três anos a senhora não recolheu o INSS. Perguntado, Firmino respondeu: Maria, eu lamento, mas nós tivemos que fazer cortes aqui em casa. E eu decidi deixar de pagar seu INSS mensal. Maria não conhece o conceito ética. Mas, resignada, ponderou em silêncio: Não foi certo o que Firmino fez comigo.

Pois é, seu Firmino, seu amigo e dona Maria estão certos. A ética é como o pão de cada dia. Ética “tem a ver com o discernimento do mal e do bem, do correto e do incorreto, do que é responsável e apropriado para o comportamento humano em suas relações sociais e pessoais” (Roy H. May. Discernimento moral. Uma introdução à ética cristã. Editora Sinodal, 2008. p. 17). Quer dizer: a preocupação com a ética não é preocupação unicamente com aquilo que é bom para mim, mas com o que é bom para o convívio entre todas as pessoas.

O Lema

O Lema para o Tema de 2016 quer nos provocar e desafiar a organizar a vida toda pela ética, segundo o preceito: “Buscai o bem e não o mal” (Am 5.14a).

Estas palavras são do profeta Amós, que viveu no século VII a.C. Originário do reino de Judá, Amós recebe a ordem de pregar no reino vizinho, Israel. Sua atuação acontece num período de relativa paz, pois não havia ameaças do inimigo externo. O profeta interpreta essa situação como ação do Senhor e a percebe como oportunidade para grandes avanços no plano interno de Israel.

A chance, porém, não foi aproveitada. O povo esqueceu-se de viver responsavelmente a liberdade. E, em vez de ampliar e fortalecer o que revertesse no bem comum de todo o povo, praticou o mal. Por isso, Deus envia o profeta Amós e, pela sua palavra, condena: a prática do comércio com lucros ilícitos e a exploração dos pobres; a imoralidade (Am 2.6-7); o luxo e o acúmulo de tesouros, visível nas grandes casas de marfim e na soberba de quem as habitava (3.15; 4.1ss); as grandes festas com muita comida e bebida (2.8; 6.4); a religiosidade hipócrita, expressa com oferendas, dízimos e sacrifícios (4.4ss); as injustiças no tratamento das pessoas pobres e a insensibilidade diante daquelas que sofrem (5.11ss), além do seu tratamento injusto nos tribunais, levando à condenação pessoas inocentes (5.10-12).

A consciência de que nada de mal iria acontecer, se os ritos religiosos fossem cumpridos, gerou uma tranquilidade ilusória e um desleixo para com a ética, que visa ao bem comum. Diante disso, o profeta anuncia o juízo, que tem endereço claro: quem pratica e quem apoia essas práticas condenadas por Deus.

Amós argumenta que a prática do mal não só remete ao juízo divino, mas também leva à ruína individual e da comunidade toda. Se as pessoas não atuarem em favor do bem de toda a comunidade – buscai o bem –, mais cedo ou mais tarde a sociedade estará fadada à ruína. E a ruína afetará todas as pessoas que compõem essa sociedade. Deste modo, quem tira proveito das outras pessoas agora, está trabalhando, a médio e longo prazo, contra si mesmo.

Para quem esta palavra profética estava dirigida restava somente uma remota esperança: a conversão ética. Deem meia-volta! Busquem o bem e aborreçam o mal! Porque na prática do bem, do que é correto, do que é bom, do direito que abrange toda a gente, Deus estará disponível com sua bênção.

Esta imperativa palavra do Deus, vinda pelo profeta Amós, vale também para os dias de hoje. Ela é atualizada para nós por meio do Lema: Buscai o bem e não o mal. É palavra dirigida principalmente para nós, pessoas e comunidades cristãs que vivem sob os impulsos das demandas éticas do Evangelho.

Com certeza ninguém irá colocar objeções às palavras antes anotadas. Concordamos que a ética faz parte do dia a dia, e que ela tem a ver com o exercício do discernimento. Cada dia e toda hora a vida nos desafi a a discernir e optar entre o útil e o inútil; o saudável e o doentio; o correto e incorreto. Enfi m, entre o bem e o mal. Isso pode parecer algo fácil, mas não é. Quem, no esforço de fazer o bem e evitar o mal, já não teve a experiência relatada pelo apóstolo Paulo? Ele escreve: “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico” (Rm 7.19). Pois é, como diz o ditado: “falar é fácil, fazer é que é difícil”.

Então, onde reside a difi culdade para a prática da ética, para o exercício do bem?

Uma dificuldade encontra-se no fato de que o exercício do discernimento e a escolha entre o bem e o mal pressupõem que a pessoa seja livre para realizar
suas próprias escolhas. Entretanto, querendo ou não, cada um e cada uma nasce e cresce dentro de uma comunidade que tem a sua história. Por isso, toda pessoa herda algo e contribui com alguma coisa para sua vida e para a vida comunitária. Neste contexto, a maior ilusão é acreditar que a liberdade consiste em ser a própria pessoa referência para sua existência. Portanto, se a liberdade para discernir e optar pelo que é correto estiver viciada, se faz necessário libertar a liberdade.

E agora, como sair desta encruzilhada? Onde encontrar subsídios que nos auxiliem a discernir?

O Tema

O Tema do Ano – Pela graça de Deus, livres para cuidar – fornece-nos elementos-chave para nossa pergunta. Na condição de pessoas com a liberdade comprometida, o Deus da graça age, vindo até nós em Jesus Cristo. Nas palavras do apóstolo: “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça” (Rm 3.21-24). Deus discerne os nossos desejos e intenções e desvenda o profundo do nosso coração. Ao mesmo tempo, cobre nossas faltas e falhas de forma que nada nos acusa. A sua graça nos sustenta e renova, possibilitando novas chances para a vida. Foi o que Paulo disse aos gálatas: “Deus enviou seu Filho (...) para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4.4-5).

Da graça de Deus, que se manifesta como amor incondicional no Cristo crucificado e ressurreto, o ser humano se apropria por meio da fé. Como nos ensinam as escrituras: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2.8). A graça de Deus, recebida pela fé, liberta de um viver como pessoa devedora e conduz sua vontade e motivação para o amor, inspirando-a a viver da gratidão. Como diz a palavra apostólica: “Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus” (1Pe 4.10). Desta forma, a pessoa, justa e pecadora, encontra-se livre perante Deus. Já não mais existe como um ser exigido, sob cobrança, mas como pessoa amada, agradecida e livre. Agora, pela graça de Deus vinda pela obra de Jesus Cristo, a pessoa tem sua liberdade de volta. Assim Paulo exorta os irmãos e as irmãs: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou” (Gl 5.1).

Libertada por Cristo, a pessoa sabe-se livre. E essa liberdade estará configurada do querer e ir como Cristo quer. Esse querer está motivado pelo amor, porque, como ensina o apóstolo, essa liberdade consiste no amor. “Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5.14). É o amor, mostrado em, com e por Cristo, que tira a pessoa do egoísmo e a coloca no caminho da liberdade responsável. Liberdade esta que faz com que a pessoa cuide de si mesma, das outras pessoas e da criação toda. Em outras palavras, a partir da graça, Deus recria a liberdade da pessoa, que pela fé aceita o seu amor. Consequentemente, em gratidão, o ser humano constrói seu projeto de vida com criatividade, inspirado no amor de Deus. Pela graça, a pessoa cristã está investida de responsabilidade. Em Cristo, a pessoa é livre para ser responsável, para viver eticamente.

Como pessoas e comunidades cristãs, somos livres para cuidar, para fazer o bem e evitar o mal. “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). Isso significa que o bem e o mal não são valores entre outros. Segundo o texto bíblico, o bem é a vida e o mal é a morte (Dt 30.15-19). Assim, a distinção entre o bem e o mal é tão importante quanto a distinção entre a vida e a morte. Entretanto, desde a fé, o exercício do discernimento ético, a opção e a prática do bem, mesmo não sendo fáceis, estão sob os impulsos da graça de Deus. É o amor de Deus em Cristo o que nos motiva, nutre e molda para buscar o bem e desprezar o mal no emaranhado da vida; para sermos pessoas éticas!

Fácil? De jeito nenhum! É por isso que Lutero diz que a vida da pessoa e da comunidade cristã está moldada pelo batismo diário: por uma luta entre um morrer e um ressurgir. Quer dizer, pelo exercício do discernimento e da opção pelo bem, algo morre e algo ressurge, em nós e na sociedade. E o resultado do que vai surgindo, o recebemos como a digna e justa manifestação do amor de Deus no mundo.

Os Subtemas

O Tema deste ano traz consigo três subtemas. Com eles se quer orientar o nosso exercício ético pelo cuidado com relação a Deus, às pessoas e à criação. O desafi o é para que nossa liberdade responsável, em, com e por Cristo, seja praticada no contexto onde a comunidade cristã se confronta diariamente. Para tanto, chamamos a atenção para as seguintes considerações:

Que a salvação não está à venda é algo com que todo mundo concorda. A afirmação de que a salvação é dádiva de Deus é o núcleo central da doutrina da justifi cação. Nada nem ninguém pode negociar com Deus o seu amor. Esse amor salvador incondicional de Deus, em Cristo, é projeto de Deus para a humanidade. Ao serem incorporadas a este projeto, as pessoas passam a viver suas vidas em gratidão e usam a liberdade recebida para a prática do amor e da diaconia. Todavia, a salvação é ameaçada toda vez que a dádiva é tida como fonte de privilégios e isenção de responsabilidades. Ela é colocada a perder em cada intento falido de autojustifi cação. Que a salvação seja um dom gratuito de Deus é uma contundente crítica diante das concepções que tratam o acesso ao sagrado e seus benefícios como produtos de negociação, de um mercado religioso. Neste contexto, por exemplo, nunca será suficiente enfatizar que a relação entre a pessoa e a comunidade está orientada pela fé, gratidão e compromisso.

Por outro lado, afi rmar que as pessoas não estão à venda pode parecer um exagero ou algo do passado, a ser esquecido. Contudo, lamentavelmente, as diversas formas de tráfico de pessoas só vêm aumentando. Entre essas diversas formas é possível citar aquelas ligadas ao trabalho escravo, à prostituição e à venda de órgãos humanos. O tráfi co, que atinge principalmente as mulheres, se alimenta da pobreza, da falta de condições para uma vida digna, da ausência de perspectivas futuras, das multiformes práticas de discriminação e exclusão, entre outras coisas. Por isso, hoje, mais do que nunca, é necessário afi rmar que cada pessoa é criada à imagem de Deus e deve ser respeitada integralmente na sua dignidade e integridade. Ao mesmo tempo, é necessário realizar um exercício ético para enfrentar criticamente as políticas e práticas que criam ou ampliam a pobreza, a discriminação, a exclusão e tudo que diminui o valor humano.

Ao mesmo tempo, significativo é nos lembrarmos mais uma vez que a natureza não está à venda. Não é segredo que a continuidade da raça humana está vinculada ao futuro da natureza. Por isso, a natureza precisa ser respeitada em seu todo e protegida como boa criação de Deus, colocada ao nosso cuidado. Não pode ser que recursos essenciais, como água, ar, sementes originárias, espécies animais e vegetais diversos, por exemplo, deixem de ser um bem comum, público, para serem exclusivamente fonte de recursos para exploração e lucro privados. Precisa-se discernir o bem do mal nas leis e ações que permitem e possibilitam intervenções predatórias nos recursos naturais. Precisamos e podemos evoluir e desenvolver novos tipos de relacionamento com as outras formas de vida, que incluem respeito, dignidade e utilização sábia e sustentável de recursos. Precisamos muito mais da natureza do que a natureza de nós.

Resumindo

Pela sua morte e ressurreição, Cristo nos liberta da lei e do pecado. Esse ato de amor, apropriado pela fé, nos atinge, envolve, transforma e sustenta, de forma que nos coloca sob os impulsos da gratidão. Gratidão que molda a vida e orienta a liberdade para um agir responsável – ético – para com a salvação recebida, as pessoas e toda a criação.

Só quem se sabe e se sente pessoa cuidada é livre para cuidar. Só quem vive a partir da gratidão, que vem do amor de Cristo, pode afi rmar: a salvação, as pessoas e a natureza não estão à venda – e, pela prática do bem, pode trabalhar eticamente em prol da preservação da liberdade responsável que Cristo conquistou para nós.

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