Sobre trabalho infantil: o que vivi e como reflito o tema hoje

11/07/2019

1 | 1
Ampliar

Em nossa sociedade vários assuntos “quentes” são colocados semanalmente sobre a mesa de debate e discussão. Nos últimos dias o tema é trabalho infantil. E quero compartilhar com você um pouco da minha história de vida e qual a reflexão que faço dela hoje para dentro do contexto urbano.

Tenho como ponto de partida o texto bíblico de Gênesis 22, o não sacrifício de Isaque. Abraão é um homem íntegro e importante referência de nossa fé ainda hoje. Deus fala a ele: pega o teu filho Isaque, a quem amas, e “oferece-o ali em holocausto” (Gn 22.2) como prova do teu amor por Mim. Sabemos que, ao final, em lugar de Isaque um cordeiro é imolado (Gn 22.12-13). A vida de Isaque é preservada.

Tiro do texto duas considerações para nossa reflexão: 1ª: a intenção de Deus não é saber se Abraão é capaz de cometer uma maldade contra a vida do pequeno Isaque, mas saber se Abraão é capaz de amar mais a Deus do que a seu filho. Por amor a Deus, Abraão está disposto a impor um sacrifício a Isaque; 2ª: Abraão vive um dilema que é amar a Deus e a seu filho. E o dilema, à luz do pedido de Deus, gera dor e sofrimento visível em Abraão. Deus, que vê sofrimentos, intervém com misericórdia. Eis nossa esperança, pois o pequeno Isaque sequer sabe o que está acontecendo e é incapaz de oferecer resistência.

A ideia de que crianças precisam ser sacrificadas não é nova. Muitos estudiosos defendem a tese de que o capitalismo é como uma religião e que pede sacrifícios reais às pessoas sob pena de amargar dores e infortúnios na vida. E pior: sofrer o abandono e exclusão social completos. Não quero aqui analisar esta dinâmica. Deixo esta tarefa para especialistas. Quero tão somente considerar verdadeiro o sacrifício de vida exigido de todas as pessoas - sobretudo das crianças – assim como o fora com Isaque.

O luteranismo está fortemente implicado no debate do trabalho infantil por duas considerações principais: a) a Reforma do Século XVI ensinou ser necessário a criança ir para a escola e aprender uma profissão em casa; b) trabalhar desde cedo é uma tradição na casa de muitos imigrantes alemães. Como filho de pequenos agricultores do oeste de Santa Catarina eu ia para a escola em um turno e trabalhava na lavoura com meus pais e irmãos no outro. Até os 15 anos aprendi todas as tarefas que um/a pequeno/a agricultor/a realiza, desde as mais símplices até as mais complexas.

O que dizer deste tempo? Foi muito importante aprender com a família a valorizar todo dinheiro gerado na propriedade e a economizar, valorizar todo fruto colhido, aprender o trabalho em equipe, a solidariedade entre os irmãos e irmãs, etc. Mas também é verdade que as exigências de trabalho eram grandes. Quando não estávamos dispostos ao trabalho ouvíamos a frase dita de forma a pressionar: “Precisa trabalhar. Se você não trabalhar, quando for adulto, não fará o suficiente para a comida da mesa”. O incentivo tinha um objetivo claro: preguiça não era aceita e considerada grande vergonha por toda a vizinhança. Ócio ou tempo livre não era dado a ninguém. Ensinar a trabalhar é afastar o perigo do ser vagabundo. Todo mundo entendia isso como zelo e era feito em boa fé. O ‘educar os filhos para não serem preguiçosos’ era considerado virtude. A decisão era dos pais e mães e filhos/as obedeciam. Assim como na relação entre Abraão e Isaque.

Talvez tenha faltado a Abraão e a nossos pais/mães a coragem de fazer perguntas no sentido de que o socialmente convencionado para afastar ameaças também gera problemas e dores nas pessoas, sobretudo nos/as pequeninos/as. Exemplo disso, lembro-me bem, ouvi em dois momentos em relação aos meus amigos vizinhos: “ele ainda é muito pequeno para esta tarefa” (significa: ainda não tem a força física para cumpri-la) seguidas de um alerta: “quando for adulto terá problemas de saúde” eram comuns. Infelizmente relatos de dores na coluna, problemas de nervos, mutilações nas mãos ou pés, ... são frequentes inclusive em jovens. Também em relação a escola ouvia-se: “o filho do fulano não tira notas boas. Coitado, precisa trabalhar muito”. Via de regra famílias bastante carentes onde cada pessoa (também as crianças) eram uma enxada a mais na lavoura. Aqui a ideia não era aprender uma profissão mas aumentar a produção para ajudar no sustento da casa. Situação semelhante passavam os amigos que eram incentivados a aprender a profissão de mecânico: o ofício era aprendido na prática e “quanto mais pequeno melhor para aprender a profissão” dizia-se. Ou as meninas que eram levadas para casa de família a fim de fazer faxina, lavar roupa, cuidar de outras crianças, ... Algumas crianças, sem o saberem, foram levadas ao altar do sacrifício, fosse por necessidade da família ou por crença no aprendizado da profissão. O deus mercado foi servido de tudo feito em boa fé.

Hoje pergunto-me sobre essa relação na dinâmica urbana. E vivo este dilema em casa com duas filhas adolescentes/jovens. É que ofícios clássicos da cidade (advogado, psicóloga, médica, marceneiro, pedreiro, pintor, administrador, farmácia, ...) via de regra não são aprendidos em casa. Em nosso caso optamos pela dinâmica dos cursos profissionalizantes. E esta dinâmica está dentro do viés da educação. Cremos que Deus se dá por satisfeito com essa dinâmica.

A realidade, porém, da maioria dos e das adolescentes e jovens é outra. E pior ainda a das crianças. São muitas as que ajudam no sustento da casa pedindo moedas nas ruas ou vendendo um doce nos semáforos. Muitas frequentam a escola porém sem as condições mínimas de aprendizado por falta de infraestrutura da escola, por fome, por violência física, sexual ou até mesmo recrutadas pelo tráfico. A esperança de um futuro promissor é destruída na origem. São aqui, sem de nada ou muito pouco saberem da vida, levadas ao altar do sacrifício. Têm aqui a sua vida aqui aniquilada. E não é por culpa dos pais e mães. As injustiças sociais impõem também a eles esta realidade. Imagino que, assim como Abraão, devem desesperar-se vendo seus filhos e filhas no altar do sacrifício.

Na busca por soluções percebo que as crianças dependem, exclusivamente, da ajuda do Estado e da misericórdia de Deus através da Igreja para serem socorridas. É por esta razão que o trabalho infantil jamais poderá ser adotado como política de Estado ou defendido pelas igrejas. Antes, é nossa tarefa como comunidade cristã fazer o que Jesus fez: pegar as crianças no colo (Mateus 19.14) e pagar aos pais o justo pelo seu dia de trabalho (Mateus 20.1ss) a fim de que tenham condições de dignamente sustentar a casa. Só assim as crianças poderão aprender um ofício sem ser necessário trabalhar para o sustento da casa.

Concluo voltando ao texto de Gênesis 22: Deus teve certeza da fé de Abraão sem sacrificar Isaque. Creio ser possível os pais e mães terem certeza da boa educação dos seus filhos e filhas sem trabalho infantil. Creio ser possível o Estado educar bem e ensinar um ofício sem sacrificar nenhuma criança. Oro por mais creches, por mais escolas de ensino fundamental e profissionalizantes, por mais políticas do primeiro emprego, por mais espaço para o/a jovem aprendiz, por mais pessoas misericordiosas e capazes de tirar as crianças indefesas do altar dos sacrifícios. Amém.

P. Sinodal Marcos Jair Ebeling.
 


Autor(a): P. Sinodal Marcos Jair Ebeling
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Meditação
ID: 52545
REDE DE RECURSOS
+
Deus nos conhece completamente.
2Coríntios 5.11
© Copyright 2024 - Todos os Direitos Reservados - IECLB - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - Portal Luteranos - www.luteranos.com.br