Sobre as desgraças da vida

26/02/2016

Estimada Comunidade:

Diante das notícias de violência é muito comum que alguém diga: “Provavelmente essa pessoa deve estar envolvida com drogas”, numa nítida interpretação a partir do critério “colheu o que plantou”, ou ainda, “isso não acontece comigo porque sou uma pessoa boa”. Já quando o ato de violência acontece com uma pessoa de nosso convívio ou num ambiente que nos é familiar ou comum, então entendemos que nada pode justificar tal ato de violência. Surge a pergunta: “Por que isso aconteceu essa pessoa? Isso não é justo!” Chega-se a questionar a justiça de Deus.

A reflexão de hoje vai se referir as situações históricas que recebem uma interpretação religiosa. Por exemplo: no ano 2010 eu tive a oportunidade de ir para Porto Príncipe no Haiti. Estive lá seis meses depois do terremoto em que morreram 230mil pessoas. O terremoto durou menos de 2 minutos, mas 6 meses depois ainda havia muitos sinais da destruição, gente procurando algo no meio dos destroços, ou então pessoas andando de um lado para o outro, parecendo desorientadas.

O terremoto destruiu quase toda a cidade, porque as construções não aguentaram. No meio dos destroços não se via barras de ferro, por exemplo. As pessoas com quem conversei me disseram que a maioria das casas estavam construídas com blocos, areia e um pouco de cimento. Por isso, a maioria das pessoas morreram porque as construções caíram em cima delas. No entanto, alguns pastores(as) de igrejas milionárias nos Estados Unidos diziam que a culpa pela tragédia era da idolatria dos próprios haitianos. No Haiti se pratica o vodu - que é uma religião haitiana com fortes elementos de povos africanos como os iorubás, além de elementos dos indígenas caribenhos como os taínos . É uma religião semelhante ao candomblé e a umbanda aqui no Brasil. Na mentalidade popular, o vodu foi associado como os zombies e as bonecas do vodu. Desta forma, o vodu é visto como bruxaria. Portanto, o terremoto foi interpretado como castigo de Deus pela bruxaria do povo haitiano.

Vivemos um tempo em que as pessoas falam com muita “autoridade” sobre as outras. “Cada um colhe o que planta” é uma afirmação recorrente em rodas de conversa. Numa outra formulação, no facebook, apareceu a seguinte frase: “Porque Deus é bom, deixa-nos plantar o que quisermos; mas porque Deus é justo, nós colhemos o que plantamos”. São afirmações aparentemente cheias de razão, mas devemos ter muito cuidado ao pronunciá-las. Não apenas refletir a quem dizemos isso, mas principalmente o que estamos querendo dizer quando as falamos.

O que significa essa mensagem sendo ouvida por um pai ou uma mãe que perderam seu filho, morto por um motorista embriagado? Quando individualizamos tal afirmação, somos obrigados a reconhecer que não colhemos apenas o que nós plantamos; colhemos também aquilo que as outras pessoas plantam.

Para as pessoas que no texto do Evangelho trataram de justificar o massacre de Pilatos ou desabamento da torre de Siloé, dizendo que eles foram castigados por Deus, Jesus faz um alerta: “Se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”. Em palavras de nossos dias poderíamos dizer: se não houver uma conscientização e mudança de comportamento no trânsito, mais vidas serão ceifadas. Se não houver uma conscientização em relação a eliminação dos focos da dengue, mais pessoas estrão em risco. Portanto, nossas atitudes e nossas omissões tem consequência. Ninguém de nós é uma ilha. A questão não é cada um por si e Deus por todos, mas faça aos outros o que você gostaria que eles te fizessem. Somos tod@s responsáveis pelos nossos atos.

A partir dessa reflexão, acredito que o texto é uma grande oportunidade para refletirmos sobre o conceito de karma, que, de forma crescente, influencia um número cada vez maior de pessoas. É conhecida a afirmação: se alguém sofre, está pagando suas dívidas desta ou de outra vida; se alguém está bem, está usufruindo de suas boas ações nesta ou em outra vida. Não encontramos em Jesus Cristo embasamento para tal pensamento de culpa-castigo, causa-efeito, pobreza-doença. Isso podemos encontrar no Antigo Testamento, mas não em Jesus. Jesus não justifica o mal (as desgraças) do mundo com interpretações religiosas. Diante das dificuldades, Jesus se mostra solidário, compassivo e se mobiliza para uma transformação positiva.

Jesus nos quer ajudar a escutar a voz de Deus através dos acontecimentos da história. Ele quer nos ajudar a ver onde Deus está se revelando nos acontecimentos do dia-a-dia. Para falar sobre a revelação de Deus, Jesus usa a imagem da figueira estéril. Uma árvore que não tem frutos. Para Jesus, Deus se revela nesse mundo – não pela quantidade de desgraças – mas ele quer revelar-se através dos bons frutos das pessoas. Quando deixamos de fazer o bem, quando nossa fé em Deus deixa de produzir bons frutos, estamos deixando de revelar a presença de Deus nesse mundo.

Mas, será que Deus precisa de minhas boas obras? Será que Deus precisa de minhas boas obras para me salvar? Martin Lutero responderia que não. Deus não precisa de nossas boas obras. Mas o meu vizinho sim, também os meus filhos e os as pessoas com as quais eu me relaciono – todas elas precisam de minhas boas obras. As pessoas com quem eu me relaciono são afetadas pelas minhas atitudes e minhas opiniões. Por isso, as boas obras não são condição para a salvação, elas são consequências de quem sabe que já foi salvo por Jesus.

Portanto, o evangelho nos chama para duas coisas: diante das desgraças e da maldade do mundo, não apontar somente o dedo acusador ou nos colocar como juízes dos outros. Ao invés disso, devemos avaliar também a nossa responsabilidade diante do mal do mundo, afinal “se não vos arrependerdes , todos igualmente perecereis (v.5). O segundo elemento, é que nossa fé seja capaz de produzir bons frutos. E para isso Deus está disposto a dar-nos uma segunda chance. Ao invés do machado que serve para cortar a árvore estéril, Jesus está disposto a usar a pá para cavar em volta da árvore, para dar-lhe um tratamento e uma atenção especial, para ver se os bons frutos aparecem. Quantas pessoas afirmam que uma doença ou a proximidade da morte fizeram-nas rever seu modo de viver e fizeram uma avaliação sobre os frutos que estão produzindo com sua vida? Seria interessante se todos nós pudéssemos nos perguntar sobre os frutos que estamos produzindo e os frutos que Jesus gostaria de encontrar em nossas vidas.

Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus nosso Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam no meio de nós. Amém.
 


Autor(a): Nilton Giese
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 13 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 9
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 36903
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1Coríntios 3.16
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