“…Se a morte eu sofrer,
se os bens eu perder:
Que tudo se vá!
Jesus conosco está.
Seu Reino é nossa herança!
(do hino HPD I: 97
“Deus é castelo forte e bom”
Martim Lutero, 1528).
Quantas vezes já cantamos essa última parte do hino, distintivo da reforma. O original alemão ainda menciona “mulher e filhos” entre as possíveis perdas. A vida, os bens, a família “que tudo se vá” Jesus Cristo e o reino de Deus parecem bastar a Martim Lutero.
O reformador não era nenhum espiritualista que vivesse distanciado da dura realidade de seu tempo. Não, ele vivia com os dois pés no chão sofrido de sua época. Construiu família e curtia família, sempre defendeu a afirmação da vida e não abria mão de seus compromissos de cidadania, lutando por escola para todos, exigindo formação também para as meninas. Assumiu posições diante de abusos do sistema econômico, denunciando a prática da usura. Não se absteve de posturas diante da luta social dos camponeses. Denunciou as injustiças cometidas a essa camada dependente dos senhores de terras, mas também cometeu erros, esperando que esses mesmos donos das terras mantivessem a ordem. Seu lema era: omissão jamais, mesmo isso signifique incorrer em erros.
Mesmo assim o centro da reforma do século 17 não tem o seu centro numa nova ética social ou econômica na igreja e sociedade de seu tempo. O movimento da reforma não se limitou ao engajamento por costumes mais humanos, por comportamentos mais verdadeiros no convívio social. É verdade, o movimento da reforma fazia parte do despertamento humanista, mas ele queria mais.
Qual era então a causa pela qual o reformador Martim Lutero se engajou?
A questão que pôs a reforma em movimento resumia-se numa só: de onde arrancamos para a nossa lida, para nossa luta, para o nosso viver e morrer?
Qual é nosso ponto de partida para enfrentar essa realidade marcada por “dor e tormento” e dominada por trevas e poderes infernais, como Lutero canta no seu hino?
A nossa base de lançamento para a aventura chamada vida é uma só: “Jesus conosco está!”
Na estrofe acima, ele formula essa mesma pergunta com outras palavras: “Quem trouxe esta luz?” Sua resposta é a mesma: “Foi Cristo Jesus,...”
Compartilhamos com todos os seres humanos a mesma lida cotidiana, a mesma luta por um viver digno, tanto no plano individual quanto coletivo, e somos confrontados todos com a realidade da morte nos rodeando e finalmente nos atingindo. Como não ficar com medo, com insegurança e tomados pela ansiedade? O que, ou melhor, quem pode nos dar liberdade e coragem para viver?
A resposta afirmativa de Lutero nos surpreende: só Cristo Jesus! Mas em que sentido Jesus Cristo pode dar conta de tanta coisa?
Ele é o rosto amoroso do Deus que cria e mantém toda a realidade, por mais dura que ela possa parecer. Em Jesus Cristo, Deus abriu seu coração e mostrou seu verdadeiro intento com esse mundo e seus moradores. Jesus Cristo é o sinal mais claro de que Deus quer partilhar seus bens conosco: seu amor que perdoa até inimigos, sua solidariedade que não para diante dos os casos perdidos, sua companhia na mesa que a todos acolhe.
Este gesto de Deus, encarnado em Jesus Cristo, não foi entendido; foi silenciado e morto na cruz. Este jeito de Deus reinar neste mundo parece não ter vez. Queremos construir o nosso mundo do nosso jeito. E deu no que deu!
Mas quando confessamos que Jesus Cristo é nosso ponto de partida, é a base de onde nos lançamos vida adentro, queremos dizer algo mais. O Jesus Cristo da cruz foi ressuscitado. Deus não abriu mão deste mundo e de seu amor por ele e por nós todos. Com isso, Deus está aí, de volta ao seu mundo, no Jesus Cristo crucificado e ressuscitado, apesar de nossa rejeição ao seu jeito de reinar, apesar de nossa vontade incontrolada de fazer a vida do nosso jeito.
Custa percebermos que “a minha força nada faz, sozinho estou perdido”, como Lutero o expressa. Só o amor de Deus pode nos libertar de nós mesmos e do nosso intento insano de dar sentido à nossa vida. Desta perdição, Cristo nos liberta para recebermos a vida como graça, como dádiva e não como tarefa a ser cumprida, como projeto a ser construído. Todo o nosso agir, toda nossa luta, toda nossa lida é resposta grata e alegre desse amor que nos Deus oferece desde o nosso batismo. Podemos arrancar para o nosso dia a dia mais libertos, mais leves, e sem medo de errar, porque “Jesus conosco está”, e com ele vida nos oferecida como dádiva, perdão e liberdade que queremos partilhar, construindo relações de amor em casa e fora dela, ousando gestos que querem o bem estar, a justiça e a inclusão daquelas pessoas que sempre sobram. Mesmo quando a morte nos ameaçar e encher de medo, o hino nos lembra de que “Jesus conosco está, seu Reino é nossa herança!” e não o reino da morte.
P.Renatus Porath
Pastor da IECLB – São Paulo/SP.