Servo arbítrio e livre arbítrio

Auxílio Homilético

27/04/2016

 

 

Prédica: Filipenses 2.12-13
Leituras: Jeremias 1.4-10 e Marcos 9.24
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data: Jubileu 500 Anos da Reforma
Data da Pregação: Em aberto
Proclamar Libertação - Volume: XL

 

 

Servo-arbítrio / livre-arbítrio

 

 

1. Introdução

Os três textos sugeridos para leitura e pregação colocam em pauta a relação entre a vontade de Deus e a do ser humano. Jeremias é chamado para ser profeta.Ele se opõe, mas acaba se rendendo. No Evangelho de Marcos, o pai do jovem possesso pede a Jesus a cura de seu filho. Para tanto é imprescindível a fé. Aquelehomem diz que tem. Ao mesmo tempo, porém, pede ajuda para a sua falta de fé. A vontade para crer é incapaz de superar a incredulidade. O apóstolo Paulo, enfim, encoraja os membros da comunidade de Filipos a empenhar-se em favor de sua salvação com temor e tremor, muito embora ou justamente por ser Deus quem opera neles tanto o querer como o fazer. Como entender?

O tema da pregação proposto para esta oportunidade é um dos mais polêmicos na época da Reforma. Seremos donos de nosso próprio nariz ou obedecemos a ordens alheias? Já em 1518, no debate de Heidelberg, Lutero havia afirmado que o livre-arbítrio seria “um mero título, ao qual não corresponde nenhuma realidade”. É o que provocou o protesto de Erasmo. Ele reagiu com um escrito intitulado “Da livre vontade”. Negar a possibilidade da livre decisão seria uma ofensa à nobreza do ser humano. Lutero, em contrapartida, insiste na “vontade cativa”, no que enxerga uma consequência fatal do pecado. Esse escraviza as pessoas, condicionando seu querer e seu agir.

Proponho basear a pregação em Filipenses 2.12-13. Justamente em sua paradoxalidade, esse texto é instrutivo para o assunto em debate.

2. Observações exegéticas

Julgo necessário iniciar com uma tradução própria. É assim que Paulo escreve:

V. 12 – Portanto, meus amados, assim como sempre foram obedientes, não sejam apenas na minha presença, mas agora muito mais na minha ausência. Trabalhem por sua salvação com temor e tremor.

V. 13 – Pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer como o realizar para seu agrado.

Com a palavra “portanto” Paulo retoma as exortações anteriores da carta (cap. 1.27-2.4) e encaminha uma conclusão. Ele solicita à comunidade de Filipos “obediência”, não à sua pessoa, e sim a Deus. Obediência foi o que marcou a conduta de Jesus Cristo (2.8). Por isso é compromisso que inclui os e as que o seguem. Trata-se de cumprir a vontade de Deus. Paulo quer que essa obrigação seja respeitada também em sua ausência. O imperativo não se prende à presença física do apóstolo. Em termos concretos, ele espera dos cristãos e das cristãs de Filipos que se engajem em favor de sua salvação. O verbo kathergazestai é de difícil tradução. Na raiz está a palavra “trabalhar”. Por isso a maioria das traduções alemães falam em sich mühen um (esforçar-se por). Portanto importa empenhar-se em favor de sua salvação.

A passagem desencadeou fervorosas controvérsias. Por um lado, ela parece abrir as portas para a cooperação do ser humano na obra redentora de Deus e legitimar o que se chamou de “sinergismo”. Ela poderia insinuar não haver salvação sem algum esforço próprio. É indiscutível que ela vem de Deus, mas o ser humano deveria fazer a sua parte. É uma interpretação reforçada quando se traduz aquele “trabalhar em favor” por “completar”. Porventura devemos acrescentar algo à obra de Deus? Simultaneamente, porém, a passagem parece excluir qualquer participação humana na salvação. Pois se é Deus quem rege a vontade e a conduta das pessoas, qualquer ação humana chega tarde. Nesse caso, Deus é o único responsável por salvação ou perdição. O ser humano não passaria de um joguete nas mãos de Deus. Sinergismo ou determinismo, qual é a resposta correta?

Ora, o texto não admite essa nem aquela interpretação. Já a expressão “com temor e tremor” o acusa (1Co 2.3; 2Co 7.15). Ela designa uma atitude de reverente humildade. Seria petulância aproximar-se de Deus com reivindicações e reclamações. A confi ança em Deus não dispensa o temor que sabe de sua radical dependência da graça. Por isso proíbe-se qualquer forma de vanglória. Eu não salvo a mim mesmo. Era esse também o propósito da inclusão do hino cristológico citado por Paulo (2.5-11). Uma nova realidade se fez desde que Jesus Cristo, obediente até a morte na cruz, foi exaltado e feito Senhor no céu e na terra. Está aí a salvação. Pois onde Cristo governa, o reino de Deus chegou. Logo, engana--se quem julga necessário agregar à obra de Deus algum adendo próprio. O ser humano pode tão somente aceitar o que Deus fez por ele. Mais lhe é impossível.

E é a tanto que Paulo conclama os filipenses. Trabalhar pela salvação não pode ter outro sentido senão acolher o dom de Deus. Tal acolhida possui a um só tempo uma dimensão passiva e outra ativa. Ao receber um presente, sou a princípio um sujeito passivo. Alguém me dá algo sem nada cobrar. Estou sendo presenteado (!). Mesmo assim, devo estender a mão e apropriar-me daquele presente. Devo tornar-me ativo. O mesmo acontece com a salvação. Devo investir na aprendizagem da fé. Ela não vai cair do céu. Para tanto é fundamental buscar a informação, a discussão sobre dúvidas, a leitura da Bíblia e muito mais. Cruzar os braços e lamentar que Deus, infelizmente, desconsiderou-me na distribuição dos talentos religiosos não é desculpa. E, todavia, apesar dos esforços, vou descobrir no fim das coisas que foi Deus quem efetuou em mim tanto o querer como o realizar. Foi ele quem me motivou, foi ele quem me inspirou, foi ele quem despertou em mim a fé. Vou confessar com o apóstolo Paulo: Pela graça de Deus sou o que sou (1 Co 15.8).

Isso significa que deve ser afastada a ideia de um Deus tirano. O Deus de Jesus Cristo não exerce pressão. Ele busca a livre adesão do ser humano à fé. Sempre que se preconizou a imagem de um Deus impositivo, opressor, despótico, o evangelho sofreu perversão. Certamente não é fácil fugir da vocação de Deus. Existem exemplos bíblicos comoventes de pessoas que lutaram com a incumbência que receberam. Disso é exemplo não só o profeta Jeremias. Também Jonas procurou fugir, embora inutilmente. O próprio Paulo falou numa “coação” que pesava sobre ele (1 Co 9). Sente-se obrigado a pregar o evangelho. Ao mesmo tempo, porém, faz questão de deixar claro que o faz voluntariamente. Por esse motivo desistiu da remuneração pelas comunidades, documentando assim sua gratidão pelo privilégio de ser apóstolo. Deus não dispõe das pessoas como de escravos. Ele quer a sua concordância. Oferece-lhes a possibilidade de rejeitar a palavra de Deus, de cair da graça (1Co 10.12), de trair o evangelho. Falar em vontade cativa não é sinônimo de negação da vontade como tal. Deus não apaga o ser humano, não o transforma em peça morta. Ele o respeita como pessoa, como parceiro, como filho e filha.

Seguem, em Filipenses 2.14-18, algumas exortações, insistindo que a comunidade seja exemplo de retidão, sem falha e mácula na sociedade. Tal apelo demonstra, por sua vez, a possibilidade de opções por parte dos fiéis. Eles de modo algum estão atrelados a um Deus que programou suas ações, assim como também não os deixa sem orientação do que espera deles.

3. Meditação

Em tempos mais recentes, a posição de Lutero parece ter recebido respaldo tanto da psicologia como das neurociências. De acordo com S. Freud, estaria comprovado que o ser humano não é senhor nem mesmo dentro de sua própria casa. Estaria sendo manipulado por impulsos e paixões inconscientes. Já para as neurociências, ele é refém de seu cérebro, que toma as decisões antes da pessoa dar-se conta. Em ambos os casos, o livre-arbítrio seria uma ilusão. Trata-se de uma tese inaceitável. Ela conflita com a experiência diária. Pois ninguém se comporta como máquina. Nós tratamos as pessoas como seres livres, apelamos ao bom senso, ao juízo, à sua responsabilidade. O ser humano é dotado de livre-arbítrio, sim. Ele não é robô. Essa liberdade, porém, não é total. Não menos flagrantes são os condicionamentos a que o ser humano está sujeito. Não escolhemos o sexo nem os genes, nem mesmo os pais e a data de nascimento. Não poucas pessoas sentem-se como que engaioladas em sua vida. Se tivéssemos um livre-arbítrio, nossas opções seriam outras. Também Freud não deixa de ter razão.O inconsciente exerce forte infl uência na personalidade. Há muito o que cerceia a liberdade. Como pensa o luteranismo a esse respeito? Quem tem razão: Erasmo ou Lutero?

A resposta está no 18º Artigo da Confissão de Augsburgo. Eis o texto: Sobre o livre-arbítrio (os assinantes da Confissão) ensinam que a vontade humana tem certa liberdade para operar justiça civil e escolher entre as coisas sujeitas à razão. Não tem, entretanto, a força para operar, sem o Espírito Santo, a justiça de Deus... O luteranismo é realista. Sabe que o ser humano tem liberdades. Ele pode errar ou acertar, escolher esse ou aquele caminho, fazer o bem ou o mal. E, no entanto, ele permanece sendo pecador, incapaz de erradicar o mau desejo dentro de si. Não consegue libertar-se das amarras do egoísmo, da dúvida, do cinismo e de outros vícios. É cego quem projeta no ser humano uma bondade original. As pessoas ficam em débito com Deus e seus semelhantes. Eis por que não conseguem salvar-se a si mesmas. São fracas demais para produzir a fé, o amor e a esperança. Para tanto necessitam da ajuda do Espírito Santo. Elas precisam do perdão de seus pecados, da certeza de serem acolhidos pela graça de Deus, da transformação de sua mente.

O que vale para o indivíduo em particular vale para a sociedade em geral. Também ela está presa a seus caprichos, seus interesses, suas ficções. Isso não desculpa seus desajustes. Para a eliminação dos males, das ameaças, da violência, bastam a mobilização do bom senso e o exercício da responsabilidade decorrente do livre-arbítrio humano. A ação política, comprometida com o bem comum, pode perfeitamente garantir a paz e a justiça. Enquanto isso, os sonhos de uma sociedade perfeita devem ser sepultados. Eles costumam conduzir a regimes autoritários. O estado religioso atrofi a a democracia, tolhe a liberdade e instala a ditadura. A construção do reino de Deus está fora do alcance humano. Ela é prerrogativa do Espírito Santo.

Voltando ao texto para a pregação, faço um tríplice destaque:

1) Paulo exorta a trabalhar pela salvação. Isso de modo algum é natural. Prevalece no mundo de hoje, justamente em seus segmentos secularizados, um diabólico prazer na destruição, na violência, no horror. Convém lembrar que um mundo sustentável requer o decidido mutirão em favor da salvação das pessoas, do meio ambiente, do planeta. Para sobreviver, o mundo global necessita de urgente mudança de paradigma político, mental e social. Deve repensar prioridades e estratégias.

2) Quem embarca nessa empreitada (e seria estúpido não fazê-lo) vai inevitavelmente defrontar-se com os limites de suas potencialidades. Vai perceber o quanto depende de inspiração para algo novo. A igreja cristã prega o evangelho como poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.15). Aqui está a novidade pela qual o mundo anseia. Ela tem Deus por autor. Pois fé, amor e esperança têm nele sua fonte.

3) Mas quem faz a cabeça das pessoas? Ora, são inúmeros os agentes que disputam a preferência. A vontade humana sofre as mais diversas influências, nem todas benéficas. Enquanto isso, o apóstolo Paulo confessa: “Somos determinados (constrangidos) pelo amor de Cristo” (2Co 5.14). Portanto é ele, Jesus Cristo, quem opera em nós tanto o querer como o realizar. Por isso mesmo somos exortados a buscar o reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33), a acolher a obra redentora de Deus e a traduzi-la em trabalho por salvação neste mundo.

4. Imagens para a prédica

Na era digital, a opinião pública obedece aos ditames da mídia. Jornal, rádio, televisão e, sobretudo, a internet são imagens das forças que comandam a vontade e o comportamento das pessoas. É essa a versão moderna da controvérsia entre Lutero e Erasmo. Quem tem a coragem para afi rmar o livre-arbítrio na guerra das propostas, da propaganda, dos comerciais? Quem consegue distinguir entre verdade e mentira na informação? Seria trágico se nos comportássemos como simples “consumidores” de programas alheios. Temos não só o direito ao juízo próprio, como também o dever de fazer uso dele. A democracia depende de cidadãos conscientes, criteriosos, responsáveis. Ela não tolera manipulação nem censura. O livre-arbítrio é condição da dignidade humana, e a liberdade de expressão, um dos pilares democráticos.

Essa liberdade, porém, vive ameaçada. Pode ser abusada para fins não só dúbios, como criminosos, ou seja, ela pode ser colocada a serviço não da salvação, e sim da repressão, da exploração, do terror. A promessa de salvação então é vã e acaba produzindo desgraça. Enquanto cultua projetos centrados em vantagens econômicas, interesses classistas, conquista de poder e objetivos semelhantes, a vontade das pessoas mostra-se irremediavelmente cativa. O remédio para essa enfermidade é o evangelho. Comprometendo com o amor de Cristo, ele desprende as pessoas de si mesmas, promove a libertação das ilusões e capacita para novidade de vida (Rm 6.1s).

5. Subsídios litúrgicos

Gratidão

Senhor, nosso Deus! Estamos lembrados de teu convite que diz: “Venham a mim todos vocês que estão cansados de carregar as suas pesadas cargas, eu lhes darei descanso”. Estamos aí neste culto para buscar alívio e novas forças. Nós te agradecemos por tua palavra, que nos conforta na caminhada; pela promessa de estar ao nosso lado nas difi culdades do dia a dia; pelo perdão quando falhamos. Liberta-nos de nossa falta de fé e dirige nossos olhares à obra de Jesus Cristo, teu Filho, que veio para demonstrar-nos teu amor. Dirige os nossos pensamentos e capacita-nos para cumprir a tua vontade. Amém.

Confissão

A honestidade, Senhor, obriga-nos a confessar que ficamos em débito contigo e com as pessoas ao nosso lado. Nós nos irritamos quando deveríamos ter paciência. Nós falamos mal de nossos vizinhos. Somos desconfi ados sem motivos. Permanecemos indiferentes quando deveríamos ajudar. Muitas vezes, nem nos damos conta de nossas omissões nem das feridas que causamos por nosso falar e agir. Pedimos que nossa confissão de pecados seja mais do que formalidade. Nosso orgulho dificulta a admissão de culpa. Procuramos esconder e negá-la. Tu, porém, enxergas os nossos corações. Sabes onde falhamos. Apelamos à tua misericórdia. Perdoa-nos as dívidas e apaga nossas transgressões. Por Jesus Cristo te pedimos. Amém.

Intercessão

Ao rogar por tua proteção, Senhor, para nós, nossos familiares e amigos, nós o fazemos na solidariedade de todas as pessoas que necessitam de teu auxílio. A cada momento nos chegam notícias de atrocidades, de calamidades, assassinatos e guerras sangrentas. A maioria é causada pelo próprio ser humano, incapaz de garantir a paz. É pavoroso o saldo de vítimas mundo afora e enorme o sofrimento. Isso não só em países distantes. Também o povo brasileiro sofre sob violência e privação. Nós imploramos por tua clemência. Ouve o clamor da criatura maltratada e vem em seu socorro. Acaba com a injustiça em nosso país, com a corrupção, a mentira, com o descaso do poder público para com os legítimos direitos civis. Nós queremos um país seguro, que ofereça condições de vida condigna a cada cidadão e cidadã. Nós nos lembramos dos enfermos e moribundos, dos enlutados, dos desesperados. Fica a seu lado, dá-lhes força para resistir e fortalece-lhes a fé. Necessitamos de gente comprometida com a tua causa, de pais, professores, pastores, políticos que sejam exemplos na boa condução de seu ofício. Não por último, pedimos-te por tua igreja, pelas comunidades da IECLB, por todos os seus membros. Dá vigor a seu testemunho para que não fi quem devendo à sociedade a palavra de teu evangelho. Ah, Senhor, nós temos tanta coisa para te pedir. Atende
nossas súplicas e concede-nos a tua bênção. Amém.

Bibliografia

BARTH, Gerhard. Der Brief an die Philipper. Zürcher Bibelkommentare. NT 9. Theologischer Verlag Zürich, 1979.
KÄSEMANN, Ernst. Philipper 2.12-18. Exegetische Versuche und Besinnungen, v. 1. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1960. p. 293-297.


 


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Área: História / Nível: 500 Anos Jubileu
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2015 / Volume: 40
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 35216
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Muitos bens não nos consolam tanto quanto um coração alegre.
Martim Lutero
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