Será que só faço coisas erradas?

No mês da Reforma, reformando motivações

05/10/2019


Romanos 7. 15 Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio. 16 E, se faço o que não desejo, admito que a Lei é boa. 17 Neste caso, não sou mais eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. 18 Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. 19 Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. 20 Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. 21 Assim, encontro esta lei que atua em mim: Quando quero fazer o bem, o mal está junto a mim. 22 No íntimo do meu ser tenho prazer na Lei de Deus; 23 mas vejo outra lei atuando nos membros do meu corpo, guerreando contra a lei da minha mente, tornando-me prisioneiro da lei do pecado que atua em meus membros. 24 Miserável homem que eu sou! Quem me libertará do corpo sujeito a esta morte? 25 Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!


Introdução
Uma das cenas mais paradoxais, mais absurdas, mais controversas, mais contestáveis, mais sem sentido e surpreendente ao mesmo tempo foi aquela do quadro da menina com o balão. Bansky é o nome do artista grafiteiro britânico, autor da obra, mas ninguém conhece sua identidade. Têm obras ao ar livre em Israel, na Disneylândia, na Cisjordânia e em outros muros e paredes do mundo. Vende estas obras, mas critica a venda das obras. Viaja sem ser identificado. Bom, o quadro foi colocado à venda pela casa de leilões e bastou o martelo bater, após a oferta de US$ 1,38 milhão, e a metade inferior de Menina com balão, foi triturada por um mecanismo escondido na moldura. Bansky estava presente e imediatamente postou em sua página social: “Indo, indo embora...”

Há muita controvérsia no ar. E não apenas no mundo das artes, dos negócios e da política. Biblicamente falando, são registradas várias controvérsias, ainda mais existenciais que a obra “Menina com balão” que em segundos se transformou em uma obra renomeada por Bansky em “O amor está no lixo”.

Polêmicas da reforma
Estamos iniciando o mês da Reforma Protestante. Há 502 anos as marteladas que anunciaram a fixação das 95 teses de monge Martin Luther na porta do templo do Castelo de Wittenberg ecoaram para dentro do novo tempo que a sociedade estava começando a viver. O tema central das teses afixadas, após anos de estudos rebuscados nas escrituras sagradas, dava conta que somos justificados de nossos pecados a partir da fé na graça de Cristo.

São 20 anos que nos separam da assinatura da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação por graça e fé. A polêmica ainda está causando grandes e constantes discussões teológicas entre católicos e luteranos, de tal forma que 20 anos ainda não foram suficientes para aproximar mais. Isso a ponto de ainda não podermos ter comunhão de mesa eucarística, segundo observa a doutrina católica.

Citando o Prof. Dr. Claus Schwambach, da Faculdade Luterana de Teologia: “Na introdução de seu conhecido livro ‘A justiça da fé’, Iwand escreve: ‘Lutero não é o fundador de uma orientação ou partido cristão, mas sim o reformador da igreja. Por isso suas doutrinas não são exclusividade confessional, mas bem comum da Igreja. Chegamos até mesmo a situação tal que Lutero se encontra hoje, em questões doutrinárias essenciais, em oposição tão intensa ao protestantismo moderno quanto em seu tempo ao sistema doutrinário católico-escolástico. Quem pensa poder tomar Lutero confessionalmente como herança, com facilidade corre o perigo de deixar de ver que justamente nós, a igreja que dele provém, somos por ele chamados à conversão e ao arrependimento’”.

A oportunidade da conversão
Nesta linha de pensamento, observamos em Romanos 7 que o embate que o apóstolo Paulo tem consigo mesmo é resultado da sua conversão: deixa de ser perseguidor de pessoas cristãs e se torna, ele mesmo, alvo de uma perseguição interior por causa de sua fé em Cristo Jesus.

Deixemos Paulo falar: -- Quando em mim existe o desejo de fazer o bem, então o mal está bem à mão, porque ele está dentro do mim. Assim, tanto o mal como o bem estão presentes ao mesmo tempo, pois ambos fazem parte da personalidade caída mas convertida. “Não entendo o que faço...”, clama o texto paulino. Gostaria de agir de uma forma, mas acabo agindo de outra. Parece que nunca as coisas dão certo.

Este foi também o ponto sensível para o monge nascido em Eisleben na família Luther. Quando teve acesso à Bíblias, no mosteiro Agostiniano de Erfurt, e amparado nas doutrinas de Santo Agostinho, Martin Luther começou a entender que questão está no “eu não”. O ser espiritual, que vive responsavelmente, só vê sentido naquilo que de Deus é gerado. Por isso ele não se submete ao mal, que ele faz, porque somente reconhece o que é o bem. Não se torna dependente o mal que faz, porque não vê sentido nisso. Assim como, por outro lado, aquilo que não faz, o reconhece muito pois vê uma razão para isso, ou seja, razão para fazer o bem. O que poderia se tornar uma discussão filosófica, passa a ter um foco na questão espiritual. (1Co 2.14-15) “Mas o homem natural não aceita as verdades do Espírito de Deus. Elas lhe parecem loucura, e ele não consegue entendê-las pois apenas quem é espiritual consegue avaliar corretamente o que diz o Espírito. Quem é espiritual pode avaliar todas as coisas, mas ele próprio não pode ser avaliado por outros.” (NVT)

Com isto chegamos ao âmago de toda a discussão que hoje ainda separa cristãos.

Simul iustus et peccator
Chama-nos a atenção o sujeito que está por detrás de toda a argumentação de Paulo, “eu”. Neste texto e nos temas circundantes, o apóstolo faz uso do pronome “eu” inúmeras vezes. Alguns biblistas acreditam que Paulo esteja falando da sua fase de infância, enquanto vivia sem a lei. Com treze anos, por ocasião do seu bar miztvah, se tornou filho do mandamento. Com isso reconheceu sua condição de devedor a Deus. Outros biblistas acreditam que o apóstolo missionário estivesse falando da sua vida adulta, antes da sua conversão. Estaria se referindo ao período da vida em que perseguia cristãos, como um exigente e legítimo fariseu. Já outros biblistas, entre eles Käsemann, acredita que Paulo esteja se referindo a Adão. Aliás, chegam a encontras seis fases distintas da vida de Paulo que se enquadram paralelamente à vida de Adão. De qualquer maneira, mas de forma muito sincera e autêntica, Paulo se coloca como alguém contraditório, assim como é contraditória toda a humanidade, eu e você.

Na discussão pós Reforma Protestante, “os católicos [ainda] não conseguem aceitar a afirmação de que o cristão permanece pecador até a morte, mesmo depois da justificação. Para os católicos, o batismo elimina o pecado e a concupiscência que permanece após o batismo não é considerada realmente como pecado. É antes um defeito ou fraqueza’.

Os documentos que foram surgindo nesta discussão fraterna entre entre luteranos e católicos tentaram mostrar que, de alguma forma, ambos têm razão. Se referindo ao texto de Romanos 7, cogitam até que o personagem da controvérsia nem seja cristão. Ou então que o “simul” esteja se referindo apenas a um sentimento natural do ser humano e não a uma realidade teologicamente comprovável. Não resta dúvida de que, do nosso ponto de vista, essa interpretação estará nos distanciando da Reforma Protestante e nos acomodando numa teologia de obras benéficas à salvação.

O benefício da graça
“...não faço o que desejo, mas o que odeio...” Parafraseando, é isto que diz o v.19 de Romanos 7. O Salmo 36 corrobora ao afirmar: “Tudo que diz é distorcido e enganoso; não quer agir com prudência nem fazer o bem. Mesmo à noite, trama maldades; suas ações nunca são boas, e não se esforça para fugir do mal”. (v.3-3 NVT) Continuando com a argumentação de Paulo, chega ao absurdo de dizer “...admito que a Lei é boa...” A lei quer o meu bem e eu quero também o que é bom. Portanto, desta forma, dou razão à lei. Isso o ser carnal não faz, pelo contrário, preferiria que não houvesse lei.

Se realmente estivermos em busca de uma aplicação legítima de Roma¬nos 7 para os nossos dias, os versículos 4-6 são provavelmente cruciais. Afinal, estes versículos colocam em nítido contraste as duas ordens ou eras e as duas alianças ou testamentos, refe¬rindo-se a eles como a velha forma da lei e o novo modo do Espírito.

“Assim, meus irmãos, vocês também morreram para a Lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerem a outro, àquele que ressuscitou dos mortos, a fim de que venhamos a dar fruto para Deus. Pois quando éramos controlados pela carne, as paixões pecaminosas despertadas pela Lei atuavam em nosso corpo, de forma que dávamos fruto para a morte. Mas agora, morrendo para aquilo que antes nos prendia, fomos libertados da Lei, para que sirvamos conforme o novo modo do Espírito, e não segundo a velha forma da Lei escrita.” Romanos‬ ‭7.4-6‬ ‭NVI‬‬.

Ambos são colocados no contexto de serviço, só que a velha forma é caracterizada como letra (um código escrito), enquanto que o novo modo é caracterizado como Espírito (ou seja, a presença deste habitando em nós). Na velha ordem nós estávamos casados com a lei, éramos contro¬lados pela carne e produzíamos fruto para a morte, enquanto que, como membros da nova ordem, estamos casados com o Cristo ressurreto, fomos libertados da lei e produzimos fruto para Deus.

Concluíndo
Depois de analisarmos tudo isso, concluímos que é melhor ficarmos atentos, tanto em rela-ção a nós mesmos como aos outros, para que não retrocedamos e não voltemos à velha ordem. De igual forma, que não haja recaída de uma pessoa para um sistema arcaico, da liberdade para a escravidão, da habitação do Espírito para o código humano das ações corretas, de Cristo para a lei.

Observem com atenção: o que Deus espera de nós não é que sejamos cristãos de acordo com os princípios do Antigo Testamento, revivificados mas ainda vivendo em escravidão à lei e em sujeição ao pecado que habita em nós. Pelo contrário, seu desejo é que sejamos cristãos do Novo Testa¬mento, os quais, tendo morrido e ressuscitado com Cristo, vivem na liberdade do Espírito que habita em nós.

Basta de sermos igreja morna. A Igreja da Reforma – que não é necessariamente confessional, mas histórica e universal – nos ensina que deixou para trás ser demagógica; não é uma Igreja amiga do caos, do quanto pior, melhor. Não podemos voltar a ser a Igreja da “fraseologia” com sua palavras sem consequências. Não as teorias, mas as ações práticas resultantes do amor gracioso de Jesus devem ser a essência da vida.

É certo que, toda vez que quisermos viver o cristianismo a partir da lei, estaremos fazendo o mesmo que foi feito da obra da “Menina com balão”. Seremos triturados e “nossa obra” acabará sendo um “O amor está no lixo”, enquanto o malfeitor estará festejando nas páginas sociais “Indo, indo embora...”

Sejamos fiéis à graça d e Jesus, o Cristo de Deus. Converte a tua vida a Jesus para que Sua ação liberte você da lei.

Amém!

Versões bíblicas utilizadas: NVI – Nova Versão Internacional
                                            NVT – Nova Versão Transformadora

Anexo:
 

Da declaração conjunta de 20 anos atrás, destaco:
Luteranos entendem que a pessoa cristã é ao mesmo tempo justa e pecadora: ela é totalmente justa porque Deus, por palavra e sacramento, lhe perdoa o pecado e lhe concede a justiça de Cristo, da qual ela se apropria pela fé e a qual em Cristo a torna justa diante de Deus. Olhando, porém, para si mesma através da lei, ela reconhece que continua ao mesmo tempo totalmente pecadora, que o pecado ainda habita nela (cf. 1 Jo 1, 8; Rm 7, 17.20): porque reiteradamente confia em falsos deuses e não ama a Deus com aquele amor indiviso que Deus como seu criador dela exige (cf. Dt 6, 5; Mt 22, 36-40). Essa oposição a Deus é, como tal, verdadeiramente pecado. Não obstante, graças ao mérito de Cristo, o poder escravizante do pecado está rompido: já não é pecado que domina a pessoa cristã por estar dominado por Cristo, com o qual a pessoa justificada está unida na fé; assim a pessoa cristã, enquanto vive na terra, pode ao menos em parte viver uma vida em justiça. E, a despeito do pecado, não está mais separada de Deus, porque no retorno diário ao batismo ela, que renasceu pelo batismo e pelo Espírito Santo, tem seu pecado perdoado, de sorte que seu pecado já não lhe acarreta condenação e morte eterna. [15] Portanto, quando luteranos dizem que a pessoa justificada é também pecadora e que sua oposição a Deus é verdadeiramente pecado, não negam que, a despeito do pecado, ela está inseparada de Deus em Cristo e que seu pecado é pecado dominado. Neste último aspecto estão em concordância com os católicos romanos, apesar das diferenças na compreensão do pecado da pessoa justificada.


Destaco ainda que, quando o assunto é “lei e evangelho”, conforme a declaraçào conjunta, “os luteranos sustentam que a distinção e a correta correlação de lei e evangelho é essencial para a compreensão da justificação. A lei, em seu uso teológico, é exigência e acusação às quais está sujeita durante a vida inteira toda pessoa, também pessoa cristã, na medida em que é pecadora; e a lei põe a descoberto seu pecado para que na fé no evangelho, ela se volte inteiramente para a misericórdia de Deus em Cristo, a qual unicamente a justifica”. 

No assunto “segurança da salvação”, ainda dentro da declaração conjunta, destaco: “Isto foi acentuado de maneira especial pelos reformadores: em meio à tribulação a pessoa crente não deve olhar para si mesma, mas inteiramente para Cristo e confiar somente nele. Assim, na confiança na promissão de Deus, ela tem certeza de sua salvação, mesmo que, olhando para si mesma, nunca esteja segura.”


 


Autor(a): Pr. Rolf Rieck
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Rio de Janeiro - Martin Luther (Centro-RJ)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 7 / Versículo Inicial: 15 / Versículo Final: 25
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 53633
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Provérbios 1.8-9
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