Atenção! Esse ano não vai ter Páscoa! | 1 Coríntios

6º Domingo após Epifania

13/02/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs:

“Esse ano não vai ter Páscoa!” Certamente, nos assustaríamos se ouvíssemos uma frase como essa, afinal de contas, nem sequer podemos imaginar como seria um ano sem a Páscoa. E claro, não estou falando aqui dos presentes, chocolates e ovos, mas do sentido verdadeiro da Páscoa que é a vitória de Jesus sobre a morte.

Por incrível que pareça, havia na Comunidade em Corinto pessoas que não queriam comemorar a Páscoa. Os irmãos de Corinto começaram a achar que a vida cristã já estaria completa e já seria suficiente apenas para este mundo. Talvez, eles até lembrariam da Sexta-feira da Paixão; porém, para eles, a Páscoa não seria algo a se comemorar. Para eles, seria muito improvável que Jesus tivesse de fato ressuscitado em corpo. Por isso, estavam se acostumando a manter a sua esperança apenas nas coisas deste mundo presente. Com a morte, tudo simplesmente terminaria. A comunidade de Corinto é uma comunidade que tem dificuldade em crer na esperança da Ressurreição.

Por isso, o apóstolo Paulo não menciona o assunto de modo passageiro. Em sua primeira carta aos Coríntios, encontramos um capítulo inteiro só sobre o tema da ressurreição. São 58 versículos abordando diretamente o assunto. Só nos versículos que nós ouvimos (v. 12-20), a palavra ressurreição ou suas derivações aparecem doze vezes; a palavra Cristo aparece nove vezes. Portanto, o tema que perpassa as palavras do apóstolo Paulo é a Ressurreição de Cristo.

Não apenas naquela época as pessoas estavam desacostumadas a crer na ressurreição. Talvez, ainda hoje há quem acredite que a esperança cristã só é esperança para esse mundo, negando qualquer além que possa vir após a nossa morte. Em um mundo em que a razão quer medir todas as coisas, pedem-se provas, argumentos. Na verdade, a própria Palavra nos traz provas da ressurreição. Paulo nos diz em 1 Coríntios 15.6 que o Jesus Cristo ressuscitado foi visto por mais de quinhentas pessoas de uma só vez. Não foi apenas uma dúzia de pessoas, mas quinhentas testemunhas oculares.

De outro lado, talvez estejamos caminhando cada vez mais para uma Páscoa que perde todo o seu sentido bíblico original. Nos acostumamos a falar dos chocolates, dos ovos e do coelho. Infelizmente, as crianças têm ouvido mais falar do coelho do que de Jesus. O mundo tem feito a Páscoa perder o seu sentido cristão. O problema é que tem muito cristão caindo nessa conversa fiada e ensinando seus filhos e filhas de maneira errada em casa. É preciso ensinar às crianças que a Páscoa é a vitória de Jesus sobre a morte. Se também nós estamos perdendo o sentido cristão da Páscoa, o capítulo 15 de 1 Coríntios serve também para nós.

O reformador Martinho Lutero escreveu um enorme comentário bíblico sobre 1 Coríntios 15. Lutero percebeu que a dificuldade na crença na ressurreição não era um problema apenas dos dias de Paulo, mas também dos seus dias. Por todos os lados, Lutero via pessoas que se diziam cristãs, mas que não criam na verdadeira esperança da ressurreição. Por isso, Lutero vai abordar em seu comentário bíblico a gravidade que representa para a fé cristã e para a própria pessoa cristã esse tipo de descrença. Nesta manhã, nós vamos abordar o assunto seguindo a própria linha de raciocínio de Lutero e olhando também para algumas frases do próprio reformador alemão sobre o assunto.

 

1     NEGAR A RESSURREIÇÃO SIGNIFICA NEGAR A EXISTÊNCIA DE DEUS (vs. 12-13)

 

Os evangelhos testemunham a nós a ressurreição de Cristo. Encontramos nos evangelhos os relatos sobre a vitória de Jesus sobre a morte. Ao não acreditarmos na ressurreição, estamos dizendo que a Palavra de Deus não é autêntica ou verdadeira. Então, o que acontece? Nós divinizamos as nossas próprias ideias enquanto consideramos a Palavra de Deus uma mentira, uma farsa.

Além disso, Deus tem poder para ressuscitar, pois ele é Deus! Ao negarmos a ressurreição, negamos que Deus tenha poder de fazer alguém voltar a vida. No fim das contas, isso significaria a própria inexistência de Deus. Deus deixaria de ser Deus. Se negarmos a ressurreição, negamos tudo àquilo que traz sentido à vida cristã: a fé, o batismo e o Evangelho. Lutero diz que negar a ressurreição

equivale a negar totalmente a Deus e a Cristo, a renegar sua fé, Batismo e Evangelho e a desmenti-los, dizendo: acredito que não há Deus nem Cristo; que é tudo invencionice e mentira o que se afirma a respeito da fé.1

 

Portanto, negar a ressurreição de Jesus não significa negar apenas um fato, mas a própria existência de Deus. Negar a ressurreição significa negar o primeiro mandamento, destronando Deus de seu lugar e colocando a razão humana como a medida de todas as coisas. Negar a vitória de Jesus sobre a morte não significa negar apenas uma parte da Palavra de Deus, mas a negação de toda a Palavra de Deus, pois toda a Escritura é colocada sob desconfiança se uma parte dela não estiver dizendo a verdade.

Creio ser esse um dos motivos pelos quais a Páscoa tem deixado cada vez mais de ser cristã, pois o mundo não acredita em Deus. Assim, substituem o sentido cristão da Páscoa para que cada vez mais pessoas deixem de acreditar em Deus ao mesmo tempo em que lucram muito vendendo ovos, chocolates e outras coisas. Temos de ficar atentos a isso!

 

2     NEGAR A RESSURREIÇÃO SIGNIFICA FECHAR AS PORTAS DA IGREJA (vs. 14-16)

 

Se Cristo não ressuscitou, eu posso agora mesmo tirar esse talar, fechar a minha Bíblia e fechar essa igreja. Se Cristo não ressuscitou, então tudo isso aqui não passa de um grande trabalho inútil. Se Cristo não ressuscitou, toda a fé cristã desaba!

O apóstolo Paulo nos fala sobre isso no v. 14: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e é vã a fé que vocês têm”. Sem a ressurreição, toda a fé cristã se torna algo vão e fútil. Lucas nos relata no livro de Atos dos Apóstolos que as primeiras comunidades cristãs fundadas pelo mundo antigo estavam fundamentadas na esperança de que Jesus Cristo venceu a morte. Em Atos 17.16-33, por exemplo, o apóstolo Paulo faz um longo debate sobre a ressurreição com filósofos gregos que estavam na cidade de Atenas. Além disso, o espalhamento do Evangelho se dá pelas palavras ditas pelo próprio Cristo vivo: “Mas, vocês receberão poder, ao descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra”. (Atos 1.8). Portanto, só pode existir comunidade cristã se existir fé na ressurreição.

É sobre isso que o apóstolo Paulo está falando nos vs. 14-16. Se Jesus não ressuscitou, todos os quilômetros que ele já percorreu, todos os apedrejamentos, todas as prisões e todas as humilhações por causa da pregação do Evangelho de nada valeram. Pesquisadores da Bíblia estipulam que o apóstolo Paulo viajou um pouco mais de 11.050 quilômetros via mar em um total de 11 dias e 13.730 quilômetros via terra em um total de 552 dias, totalizando 24.780 quilômetros em viagens para pregar o Evangelho2. Se Jesus não ressuscitou, Paulo fez tudo isso em vão.

É isso que o apóstolo tem em mente ao dizer “é vã a nossa pregação” (1 Coríntios 15.14). Ele conhece toda a sua trajetória pelo Evangelho. Ele sabe por tudo o que passou. E agora, o que aconteceu? Uma comunidade se nega a crer na ressurreição. Paulo – que passou por tantas coisas pela mensagem da ressurreição – agora ouve dos irmãos coríntios que não há ressurreição. Se eu fosse o apóstolo Paulo, teria ficado muito indignado. Se Jesus não ressuscitou, todo o trabalho de Paulo foi em vão.

Entretanto, essa indignação não pertence só a Paulo, mas também está presente hoje. Se tem algo que pode deixar um pregador bíblico frustrado, desanimado e até indignado é a descrença da Palavra na comunidade. Negar a ressurreição de Jesus significa fechar as portas da igreja. Se não estamos aqui porque cremos na vitória de Jesus sobre a morte, então nem deveríamos estar aqui. Conforme Lutero, muitos cristãos

levam uma vida boa e não se importam com Deus nem com a outra vida em todos os sentidos, como se não houvesse inferno nem céu, mesmo que se denominem cristãos e sejam batizados e, por mais que se lhes pregue, fazem pouco caso e o ridicularizam.3

 

Sobre os pregadores, Lutero diz: “se não soubéssemos de outra vida, também ficaríamos bem calados, deixando o pessoal viver como as vacas e os porcos que, certamente, também sabem por si próprios o que lhes serve”4. Com isso, Lutero está nos dizendo que os animais conhecem muito bem o que precisam para sua vida aqui neste mundo. Da mesma forma acontece com aqueles que negam a pregação da ressurreição: vivem as coisas apenas deste mundo, sem crer na esperança da vida eterna. Por isso, ele diz: “se não desejas nem acreditas em outra vida, não vás à pregação. Se não queres ter um Deus, não precisas escutar-nos, nem nós precisamos pregar para ti”5.

O sentido da existência da igreja e do próprio ouvir a Palavra aos domingos é que confiemos nas promessas de Deus, mesmo ainda não vendo seu cumprimento. Sem a confiança na ressurreição de Jesus, a igreja se torna inútil e desnecessária.

 

3     NEGAR A RESSURREIÇÃO SIGNIFICA NEGAR O CONFORTANTE SACRIFÍCIO DE JESUS (v. 17)

 

Se Cristo não ressuscitou, então a sua morte foi uma morte comum. Se Cristo não foi ressuscitado dos mortos, então ele não era Deus. Logo, se Cristo não ressuscitou, não foi Deus quem morreu na cruz pela nossa Salvação, mas apenas um outro ser humano como qualquer um de nós. Neste ponto, nós voltamos ao primeiro: negar a ressurreição significa negar a existência de Deus em Jesus.

Desta forma, se Jesus não é o Deus que morreu na cruz e que foi ressuscitado no terceiro dia, então permanecemos em nossos pecados. Se Jesus não morreu como Deus-homem, então não há salvação para nós. Sem a cruz e a ressurreição do Deus-homem Jesus Cristo, não há salvação para ninguém e estaríamos todos condenados ao esquecimento eterno.

Além disso, negar a ressurreição de Jesus seria também negar o consolo para a hora da morte, seja a nós mesmos ou a pessoas queridas. Sem a certeza do perdão dos nossos pecados e da vida eterna, morreríamos angustiados, cheios de culpa e com medo do inferno. Lutero diz:

seu coração tem que assar diariamente no fogo, constantemente apavorados e tremendo de medo sempre que lhe passa pela cabeça a morte e o rigoroso juízo de Deus, tendo de se preocupar constantemente se ele indignou a Deus e mereceu o inferno, ainda que seja reto e bem treinado na fé. Pois esses pensamentos não largam dele.6

 

Sem a morte de Jesus na cruz para o perdão dos nossos pecados e sem a confiança na esperança da ressurreição, tornamo-nos pessoas incertas e talvez até desesperadas quanto ao futuro. Se não confiamos que Jesus morreu em nosso lugar para nos dar a salvação por graça, nos sentiremos tão culpados que não conseguiremos viver nem mesmo essa vida aqui. Por isso, a vitória de Jesus é consolo e conforto: ele já venceu os nossos pecados, os nossos medos e todo o inferno. Em Jesus, não é preciso temer a morte e o juízo de Deus, pois a ressureição é certa e Jesus será o nosso Advogado. Por isso, Lutero diz:

Por isso, mesmo que eu seja um pecador digno da morte e do inferno, este deve ser o meu consolo e a minha vitória: meu Senhor Jesus Cristo vive e, além disso, ressuscitou para me livrar, enfim, do pecado, da morte e do inferno.7

 

Assim, vamos ao quarto e último ponto da pregação de hoje. Ele fala por si:

 

4     CRER NA RESSURREIÇÃO SIGNIFICA CRER NA EXISTÊNCIA DE DEUS, NA IMPORTÂNCIA DA IGREJA E DA PREGAÇÃO E NO SACRIFÍCIO CONSOLADOR DE CRISTO NA CRUZ (vs. 18-20)

 

O apóstolo Paulo diz: “Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos as pessoas mais infelizes deste mundo.” (1 Coríntios 15.19). Por isso, a nossa vida não diz respeito apenas a este mundo. Nós cremos no além. O melhor ainda está por vir. Jesus foi o primeiro a ressuscitar. Em sua vitória, nós também venceremos. Nessa certeza, sabemos que Deus existe, amamos a igreja e nos consolamos no amor de Jesus. Não precisamos ficar tristes e desesperados, pois a vida não acaba aqui. Continuamos vivos na memória do Pai que se lembrará de nós e nos acordará em nossas sepulturas para a vida eterna no dia da volta de seu Filho Jesus Cristo dos céus. Portanto, viva a sua vida neste mundo aguardando a entrada na Jerusalém celestial.

Concluo fazendo um maravilhoso anúncio a todos nós: “Esse ano vai ter Páscoa!” Sim, vai ter Páscoa para quem crê que Jesus venceu a morte! Teremos a Páscoa se seguirmos as palavras do Apóstolo Paulo em 1 Coríntios 15, preservando o verdadeiro sentido da Páscoa e colocando a vitória de Jesus sobre a morte como consolo diário em nossa vida. Esse ano vai ter Páscoa para quem realmente acredita em Deus, para quem ama viver a comunhão com irmãos e irmãs na igreja, para quem ama ouvir a Palavra de Deus e para quem recebe o conforto vindo do sacrifício de Jesus na cruz. Lutero nos diz: “Se a morte eu sofrer, se os bens eu perder: que tudo se vá! Jesus conosco está! Seu Reino é nossa herança”8.

Amém.


6º DOMINGO APÓS EPIFANIA | VERDE | CICLO DO NATAL | ANO C

13 de Fevereiro de 2022


P. William Felipe Zacarias


LUTERO, Martinho. O capítulo 15 [da Primeira Carta] de S. Paulo aos Coríntios – 1534. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: Interpretação do Novo Testamento – Mateus 5-7 – 1 Coríntios 15 – 1 Timóteo. vol. 9. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2005. p. 325.

Cf. SCHNABEL, Eckhard J. Paul the Missionary. Downers Grove. Westmont: InterVarsity Press, 2008. p. 122

LUTERO, 2005. p. 326.

LUTERO, 2005. p. 327.

LUTERO, 2005. p. 327.

LUTERO, 2005. p. 329.

LUTERO, 2005. p. 330.

LUTERO, Martinho. O Salmo 46 – Deus noster refugium er virtus – 1528. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas: Vida em Comunidade: Comunidade – Ministério – Culto – Sacramentos – Visitação – Catecismo – Hinos. 2. ed. vo. 7. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2016. p. 538.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Coríntios I / Capitulo: 15 / Versículo Inicial: 12 / Versículo Final: 20
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 66095
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Martim Lutero
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