Seguimos no fluxo da Reforma

Prédica do Domingo da Reforma 2017

29/10/2017

 

Alguém me ajuda a entender o que estamos celebrando com os 500 anos da Reforma:

- Será por acaso que celebramos o Super-Homem Lutero? Eu já cansei de ver como Martim Lutero é celebrado e louvado como se não tivesse tido nenhum defeito. Mas, sejamos sinceros, pode até ter sido uma pessoa avançada para a sua época. Porém, em muitas coisas ele foi totalmente imperfeito. Era uma pessoa muito complicada, impaciente, grossa, teimosa. Se olharmos para os textos de Lutero no fim de sua vida sobre a questão dos judeus podemos ver como aquelas letras destilam veneno. Veneno esse que foi bem usado até pelos nazistas para justificar o holocausto. Então não, não pode ser que estejamos celebrando por São Lutero. Tem que haver outra razão.

- Será que celebramos que hoje em dia o cristianismo está tão dividido que dá vergonha na sua missão diante dos não cristãos? Porque uma das principais consequências da Reforma foi justamente a criação de uma infinidade de confissões. Verdade que o cristianismo já estava dividido em dois grandes galhos (ortodoxos e romanos), mas depois de 1517 surgiram tantos galinhos que é difícil de identificar totalmente. Será que celebramos a divisão, a guerra religiosa que assolou a Europa e outros tantos países até hoje? Então não, não pode ser que estejamos louvando a Deus por poder ser intolerante com aquela pessoa que não tem a minha mesma fé. Tem que haver outra razão.

- Será que hoje podemos celebrar que Bíblia está ao alcance de qualquer pessoa, não somente que possa ler, mas que simplesmente possa escutar ou ler Braile em seu próprio idioma. Mas, se ligarmos a TV num canal gospel ou tarde na noite, vamos descobrir que a Bíblia na mão de algumas pessoas vira uma arma poderosa sendo modificada ao gosto do freguês. Será que hoje celebramos que a Bíblia passou de ser uma total desconhecida a ser mal utilizada por gente esperta que ofende, machuca e até mata com uma leitura fundamentalista das letras impressas na Palavra de Deus. Então não, não pode ser que estejamos celebrando tanta gente privada de sua dignidade e integridade em nome de Deus. Tem que haver outra razão.

Então esqueçamos de São Lutero, esqueçamos da divisão, esqueçamos do mau uso da Bíblia. O que nós temos? O que permanece ainda? Paremos de olhar para os pecados resultantes da Reforma, chega da lei que nos mostra o nosso pecado como instituição e como grupo humano. Olhemos com detalhe para aquilo que podemos considerar o Evangelho, a coisa boa que aconteceu da aquela Reforma na igreja ocidental no outono da Idade Média. Tem que haver alguma coisa pela qual celebrar. Talvez até a palavra celebrar esteja errada, será que é melhor dizer comemorar? Porque o que temos feito durante todo o tempo em que os 500 anos estão sendo lembrados é justamente trazer à lembrança, evocar aquele momento divisor de águas que foi a publicação das 95 teses.

Então o que eu posso rememorar sem sentir a dor de tanto sofrimento causado pela Reforma que iniciou em 1517? O que eu posso celebrar? Porque nós estamos aqui tão alegres e festivos? Para mim, a história é como um fluxo que em espiral vai crescendo. Os fatos que aconteceram no passado me afetam, queira eu ou não. Seja eu evangélico luterano ou não, os acontecimentos do 31 de outubro de 1517 afetam minha vida hoje, afetam o mundo inteiro na sua existência. O mundo não foi igual depois daquelas 95 teses. O fluxo da história vem o nos leva. Assim como um rio caudaloso leva uma canoa. Os efeitos da Reforma Luterana ainda hoje são sentidos, não somente na Alemanha de hoje onde aconteceram os fatos, mas nos mais remotos vales de Papua-Nova Guine onde também comemoram a Reforma.

Com certeza cada um de vocês terá sua opinião pessoal sobre aquele 31 de outubro. Mas, eu quero partilhar com vocês um detalhe que muitas vezes fica relegado a um segundo plano. A liberdade que trouxe a Reforma.

Liberdade de ser consciente de que sou eu quem está diante de Deus. Não precisamos arrumar um amigo de um amigo para ser encontrados por Deus. Um dos pilares que até hoje são fundamentais para nós e nossa forma de pensar no século 21. O centro do poder, da toma de decisões trocou de lugar. Não é mais um homem purpurado quem diz que posso ou que não posso. A postura firme de Martim Lutero diante do Imperador na dieta de Worms fez tremer as bases da sociedade daquela época. A Reforma rompeu as correntes e nós em 2017 ainda sentimos isso. O ser humano foi colocado no centro e sua consciência foi elevada de status. Um precioso presente dado a todos nós, mas um presente que deve ser usado com muito cuidado e respeito. Porque se é mau utilizado pode ser destrutivo.

Por isso, também nos devemos lembrar da liberdade em amor. Ainda que possa viver a minha vida sem amarras humanas, seja na fé ou na sociedade, devemos cuidar para que em amor possamos coexistir. O uso do precioso presente da liberdade só pode ser desincumbido em laços de amor. Esse amor que recebemos de Deus e que por isso podemos sentir sua força e vigor em nossa existência. Amor que nos leva a um outro nível. A Reforma nos deu a possibilidade de evolucionar como seres humanos ao encontrar fundamento de nosso exercício cristão no amor. Olhe para o Catecismo Menor de Lutero, um dos documentos confessionais de nossa IECLB, lá nos mandamentos está escrito em cada explicação: Devemos temer a amar a Deus por isso... Não é o amor romântico, mas o amor que se vive no dia a dia. O amor que é exercitado com aquela pessoa chata. O amor que permite enxergar as coisas de forma diferente. Não podemos esquecer que o fluxo da Reforma ajudou a reconhecer a escravidão como pecado, e mostrou ao mundo que o Apartheid era um regime totalmente equivocado.

A Reforma trouxe a liberdade de não lutar por uma cadeirinha no céu, mas a liberdade de lutar por um mundo melhor. Por enxergar o brilho do Reino de Deus em nosso meio e cuidar para que continue a florescer. Se não precisamos nos preocupar por agradar a Deus, ocupemos por fazer de este mundo um melhor lugar para todas as pessoas e para toda a criação. Nossa energia depois da Reforma foi redirecionada para as pessoas que estão ao nosso redor. A Reforma me libertou para ocupar-me no que verdadeiramente devo: cuidar dos pequeninos de Deus. Antes de Lutero, poucas pessoas tinham acesso à educação, depois as autoridades são exortadas para que todos, meninos e meninas tenham acesso. Antes da Reforma os cristãos inventaram os hospitais, depois ajudaram a fazer caixas de seguridade social. Ser cristão depois da Reforma significa que eu só posso estar bem se meu próximo está bem. É liberdade para servir em amor.

Vocês detalharam a capa da liturgia de hoje? É uma representação daquilo que está pintado no altar da igreja da cidade em Wittenberg. O que se procurou em Wittenberg, por Martim Lutero, Filipe Melanchthon, João Bugenhagen, ou fora de Wittenberg por Olympia Morata, Catarina Zelle, Elisabeth Cruciger e tantos outros nomes que muitas vezes esquecemos, foi a Reforma da Igreja. Muita gente ainda hoje entende o esforço daquela época como um movimento para fundar uma nova igreja. Outro dia vieram estudantes do Colégio Santo Agostinho para perguntar: quem fundou a Igreja Luterana? Ficaram surpresos quando indiquei que a fundação da Igreja luterana se deu no dia de Pentecostes. Lutero não tinha vontade ou poder para fundar uma nova instituição eclesiástica. Lutero queria permanecer na Igreja, reconhecia Igreja também lá em Roma onde ele mesmo indicava a origem de muitos erros. Por isso, não podemos fazer de conta que a Igreja começou em 31 de outubro de 1517. Nós professamos a nossa fé com o Credo Niceno-Constantinopolitano, lá diz que acreditamos e fazemos parte na Igreja una, santa, católica e apostólica. Quem dize que católico é só romano? Nós somos católicos porque fazemos parte da mesma fé dos apóstolos, nós temos a base comum com toda a cristandade. Não somos um grupo exclusivista como algumas pessoas que se dizem luteranas pregam. Cristo está conosco sim, mas também está em todo lugar onde seu nome é reconhecido como Senhor e Salvador. A Reforma me deu a liberdade de alegrar-me porque não estou sozinho louvando a Deus. Nós não inventamos a Igreja, ela é fruto do agir divino. Eu e você somos um elo na corrente da história. Antes de nós, Deus vocacionou pessoas. Depois de nós, Deus também vocacionará pessoas, até que Cristo venha em glória.

A Reforma procurou resgatar aquilo que tinha sido esquecido. A liberdade de viver a fé, celebrando todas aquelas pessoas que estiveram antes de nós e que estarão depois de nós.

Nós seguimos a Reforma como sociedade, como igreja, como paróquia, como indivíduos. Nós seguimos o fluxo da Reforma, graças a Deus.


Autor(a): P. José Kowalska
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Rio de Janeiro - Bom Samaritano (Ipanema-RJ)
Área: História / Nível: 500 Anos Jubileu
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Romanos / Capitulo: 1 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 17
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 44575
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