Prédica: Salmo 78.1-8
Leituras: Gálatas 3.23-29 e Mateus 28.18-20
Autoria: Walter Altmann
Tema Especial: Lutero e a Educação
Proclamar Libertação - Volume: XLI
Nosso legado à futura geração
1. Introdução
Comemorando a Reforma. No ano de 2017, as igrejas da Reforma, em particular as luteranas, mas não exclusivamente elas, recordam os 500 anos da Reforma, e isso de múltiplas formas, portanto também em pregações em cultos. É adequado que assim ocorra em gratidão pelo legado evangélico da obra do Reformador, sem, contudo, incorrer em qualquer tipo de glorificação de Lutero. Essa última o próprio Lutero nunca pretendeu e explicitamente rejeitou. É o evangelho que importa, não Lutero. Desse evangelho, porém, Lutero foi testemunha e arauto.
A educação. Assim também é oportuno que neste ano se adote, excepcio- nalmente, a possibilidade de pregar sobre assuntos que ocuparam Lutero intensamente. Um desses temas é a educação. Já em seu escrito À nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão, de 1520, em que Lutero advogou uma série de reformas na sociedade de então, ele se ocupou com assuntos educacionais, em particular com a reforma do ensino nas universidades.
Em 1524, ele viria a escrever Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas, escrito em que, assim podemos interpretar hoje, pugnou por uma educação pública universal, enfatizando-a como necessária tanto para meninos como para meninas, sem distinção e sem exceção. Foi algo revolucionário para a época, em que a esmagadora maioria da população era analfabeta. Para fazer essas recomendações, Lutero tinha uma dupla motivação. Primeiramente, tendo enfatizado no escrito de 1520 o sacerdócio geral das pessoas que creem, uma decorrência fundamental é que todas as pessoas tivessem acesso à Bíblia para sua própria formação cristã e discernimento da fé. De outra parte, porém, Lutero também divisou o benefício que a sociedade como um todo, em todas as suas esferas, poderia auferir se todas as pessoas fossem escolarizadas.
Em 1530, Lutero publicou Uma prédica para que se mandem os filhos à escola, exortando os pais a propiciar o acesso escolar a seus filhos e filhas em vez
de retê-los simplesmente como mão de obra auxiliar em seus próprios ofícios.
Em suma, Lutero pugnou, em benefício da igreja e da sociedade, por uma educação universal, baseada em processos pedagógicos humanistas, que fizesse uso de um ensino em estilo lúdico e que combinasse o ofício prático do trabalho com o aprendizado escolar. Ele foi, em consequência, o maior responsável que levou a uma permanente característica das igrejas da Reforma em associar a escola à igreja. Os imigrantes evangélicos vindos ao Brasil muitas vezes erigiram uma escola também usada para culto, antes de erigir, ao lado, um templo.
A escolha dos textos bíblicos. No entanto, ainda que nos reportando a Lutero, não será adequado em culto simplesmente reproduzir o que Lutero disse acerca da educação nem mesmo tomar seus escritos educacionais como condutores da pregação. Também esta pregação, evocando um tema especial da Reforma, deve estar baseada em texto bíblico, pois a linha mestra de qualquer pregação não deixará de ser o texto da Escritura. Assim foi preciso escolher os textos bíblicos orientadores para este culto especial, o que não deixa de ser algo ousado e de ter boa dose de precariedade, pois as séries de perícopes para pregação são o resultado de extenso processo de discernimento teológico e eclesial, mas, neste caso, a escolha teve de ser feita pelo autor deste auxílio homilético. Ademais, precisamente esses escritos educacionais de Lutero não são tratados bíblicos, mas muito mais um arrazoado racional, “político”, poderíamos dizer, e pedagógico, em que as referências bíblicas são apenas esparsas. Como seja, consciente da precariedade aqui exposta, os textos indicados são aqui oferecidos como uma seleção pessoal minha.
A seleção de um salmo como texto-base para a pregação. Ousei também indicar um salmo como texto-base para a pregação. Ora, os salmos são já na própria Bíblia, como também na tradição litúrgica da igreja, um livro de orações e assim são assumidos normalmente na liturgia dos cultos. Contudo o Salmo 78, aqui indicado, contém uma peculiar instrução educacional, a saber, a transmissão da história da salvação de geração em geração. O fato de o Salmo 78 ser um dos textos a que Lutero faz referência é uma razão apenas secundária, por ser uma simples referência, sem exposição mais extensa. Mas ele faz jus à ênfase que Lutero deu a suas recomendações educacionais, que não se voltavam apenas à formação cidadã, mas muito em particular à formação de uma sólida consciência cristã de cada pessoa.
2. Lutero e os salmos
Lutero lamenta que os salmos tenham sido tão negligenciados, pois eles são “uma pequena Bíblia” (OSel 8, p. 34). Neles, os santos (autores dos salmos) apresentam-se verdadeiramente como são, “como eles se postam diante de Deus, diante de amigos e inimigos, como eles se mantêm e se comportam em todos os perigos e sofrimentos. Encontram-se nele [no livro de Salmos] também todo tipo de ensinamentos e mandamentos divinos e proféticos” [p. 33]. Nos salmos, vemos não apenas as obras dos santos, que são algo exterior, mas ouvimos suas palavras, como falam com Deus e como oram, o que revela seu interior. Ao nos trazer as palavras dos santos, “acima de suas obras”, o livro dos Salmos “nos desvenda o seu coração e o tesouro íntimo de suas almas” [p. 34], o que é incomensuravelmente mais valioso do que observar suas obras, ainda que maravilhosas. Pois, mesmo em meio a tempestades, quem ora com os salmos pode ter “segurança e alegria” à base de “esperança e uma confiança atrevida quanto à felicidade futura” [p. 35].
“O que [...] predomina no Livro dos Salmos senão aquele falar com seriedade em meio a todos os tipos de vendavais”, de modo que nos salmos de louvor e de ação de graças podemos encontrar inexcedíveis “palavras de alegria”, enquanto nos salmos de lamentação encontramos palavras de tristeza as “mais profundas”, “como se visses a morte, sim, como se visses o próprio inferno”. Ou seja, os salmos falam de “temor e esperança” de uma forma tão contundente, que pintor algum nem orador algum conseguiriam retratar [p. 35].
Assim, os salmos proporcionam-nos um extraordinário benefício, pois neles se encontram, “na certeza de estar na comunhão dos santos”, “segurança e orientação bem definida, de modo que ali se pode seguir sem perigo a todos os santos” [p. 36].
Em resumo: se queres ver as santas igrejas cristãs pintadas em cores e formas vivas e representadas num pequeno quadro, então olha para o Livro dos Salmos diante de ti. Nele tu tens um espelho fino, claro e puro que te mostrará o que é a cristandade. Sim, dentro dele também tu irás encontrar a ti mesmo [...], além do próprio Deus e todas as criaturas [p. 36].
3. Considerações exegéticas
O Salmo 78 é um chamado salmo histórico, mas que também pode ser caracterizado como um salmo didático, destinado ao ensino. À parte do extenso Salmo 119, ele é o mais longo dos salmos. Do ponto de vista da redação, ele certamente não é produto de um único autor, mas combina tradições diferentes e elementos diversos, como os propriamente de reminiscência histórica, de colocações sapienciais e exortações doutrinárias, numa composição deuteronomística, pressupondo o exílio babilônico.
Em Mateus 13.35, há referência explícita ao versículo 2 como palavra profética, e João 6.31 cita o versículo 24. No salmo são referidos muitos episódios da história de Israel: desde a maravilhosa saída do Egito até a trágica perda da arca da Lei. Os fatos são referidos não necessariamente em sucessão cronológica, mas sim representativa para o que da história se pode depreender como ensino para a vida e a fé. Nossa perícope restringe-se aos oito primeiros versículos, de certa for- ma uma súmula do salmo inteiro, trazendo com clareza a exortação para o ensino.
Nos versículos 1 e 2, redigidos em estilo sapiencial, “um professor dirige-se a seu público” [Seybold, p. 308]. Ele exorta a ouvir, segundo a versão revista e atualizada da tradução de João Ferreira de Almeida, a “lei”, provavelmente uma referência genérica aos livros do Pentateuco. Melhor é, no contexto de todo o salmo, a tradução como referindo-se à “doutrina” ou simplesmente ao “ensino”, como faz a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), da Sociedade Bíblica do Brasil. Assim também temos a referência clara à educação, intencionada como tema desse auxílio homilético e para a pregação.
Como que aos borbotões – assim literalmente –, esse professor trará à tona conhecimentos antigos (revelando “enigmas” ou “segredos”), transmitidos de tempos passados, o que sustentará a exortação posterior à transmissão desses mesmos conhecimentos às gerações vindouras.
Nos versículos 3 e 4, a comunidade confessante associa-se a seu mestre no compromisso de transmitir à próxima geração o conhecimento dos feitos de Deus na história de seu povo. Eles devem ser vistos em confronto com o versículo 8 (seguido dos versículos 9 a 11), em que se faz referência à inconstância e à infidelidade de gerações passadas, “obstinadas e rebeldes”, razão pela qual o povo veio a sofrer o castigo do exílio. Elas “encobriram” de seus descendentes “as maravilhas” que Deus fizera e os dons que lhes concedera, razão pela qual era importante agora, em tempos pós-exílicos, desvendar “os segredos” dessa história e assumir o compromisso de não incorrer no erro das gerações passadas.
De certo modo, seria de se esperar que a partir do versículo 5 seguissem a narrativa do êxodo, isto é, a maravilhosa saída do Egito, a dura passagem pelo deserto e a exitosa entrada na terra prometida, como se encontram mais adiante nos versículos 43 a 55. Seybold (p. 309) chega a aventar a hipótese de que os versículos 5 a 8 tenham sido intercambiados com os versículos 43 a 51. Como seja, o texto segue a partir do versículo 5 de imediato com a questão do relacionamento do povo passado com a lei, o compromisso negligenciado de transmiti-la à geração seguinte.
De maneira genérica, sem discorrer sobre como e onde o fato teria ocorrido, o versículo 5 assevera que Deus estabeleceu um testemunho em Jacó e instituiu uma lei em Israel, ao que tudo indica duas versões paralelas para o mesmo evento da instituição da Lei de Deus entre o povo, como orientação para seu comportamento e suas vidas. A instituição da Lei implicava, por isso mesmo, o compromisso de que ela fosse transmitida à geração vindoura, de modo que, segundo o versículo 6, filhas e filhos ainda não nascidos chegassem a seu pleno conhecimento e, por sua vez, dessem testemunho e transmitissem a Lei a seus descendentes. E assim sucessivamente, geração após geração.
O versículo 7 deixa claro que o ensino da Lei não visa simplesmente a um conhecimento intelectual. Ao contrário, seu objetivo é a confiança depositada em Deus, ou seja, a fé. A evidência palpável de esse objetivo ter sido alcançado será o não esquecimento dos feitos de Deus e a observância dos mandamentos.
Contudo, como o versículo 8 afirma, precisamente isso aconteceu com seus pais, “geração de coração inconstante, e cujo espírito não foi fiel a Deus”. Trata-se de um juízo duro sobre a geração passada, mas que aqui está a serviço não da condenação, mas da exortação a que a geração atual não recaia no mesmo erro, mas, ao contrário, não se esqueça dos feitos de Deus, observe os mandamentos e transmita o ensino da Lei com fidelidade à nova geração.
Por fim, ao arrolar as referências que Lutero fez ao Salmo 78, constantes em várias fontes, Mülhaupt (p. 442) cita como resumo dado pelo Reformador:
O Salmo 78 é um salmo de doutrina que, através dos exemplos e das histórias de todo o povo de Israel, desde o princípio até Davi, nos ensina a confiar em Deus e a crer e nos adverte diante da desconfiança e da descrença. Ele mostra o castigo que sofreram aquelas pessoas que tiveram desconfiança e a graça que experimentaram aquelas que confiaram.
4. Meditação
O texto propicia uma reflexão acerca do fato de que educação é muito mais do que transmissão de conhecimento, mas fundamentalmente uma formação da própria pessoa, a saber, dos valores que dão orientação à sua vida. Assim também era para Lutero. Essa noção básica acerca da natureza e da finalidade da educação é atualmente negligenciada ou desconsiderada muitas vezes. Por exemplo, a limitação de acesso às universidades públicas e a concorrência, em algumas áreas, feroz para obter uma vaga acaba contaminando todo o sistema escolar, visto mais e mais como um treinamento para o vestibular e não como uma preparação para a vida. Aliás, muitos pais e mães fazem esse tipo de exigência em relação à escola de seus filhos e filhas.
Uma segunda consideração importante é que o texto bíblico transmite uma palavra de exortação para o povo, não simplesmente para indivíduos. Também Lutero, ao reivindicar uma escola para todas as meninas e meninos sem distinção, coloca de lado o aspecto frequente de competição entre os educandos para enfa- tizar a comunhão participativa entre eles. A igreja e a sociedade como um todo beneficiar-se-ão com uma formação universal. No texto bíblico, é todo o povo de Israel que é exortado a transmitir à geração seguinte os valores contidos na Lei.
Em terceiro lugar, um aspecto específico para a comunidade cristã, mas para ela bem fundamental, é que o “conteúdo” a ser transmitido tem a ver com os feitos de Deus e com seus mandamentos. Ou seja, está em jogo nossa relação com o próprio Deus e não apenas com a comunhão entre nós. O conhecimento dos feitos de Deus evoca o louvor e a gratidão. O conhecimento dos mandamentos de Deus orienta a vida na relação entre os seres humanos.
Os outros textos bíblicos sugeridos para o culto servem para realçar, no contexto do tema específico, que o ensino faz parte da missão de Deus (Mateus 28.18-20) e que a Lei de Deus é serva (“aio”, no original “pedagogo”) para o evangelho e para a condução à fé em Cristo.
5. Pistas para a prédica
A prédica, sendo temática suscitada pelo posicionamento de Lutero em relação à educação, deverá encontrar o equilíbrio entre as referências a Lutero, sem, porém, glorificá-lo, e o texto do Salmo 78, que coloca a questão do ensino no marco amplo da relação da comunidade de fé com Deus.
Assim, sugiro que a ênfase seja dada ao texto bíblico, mas se incluam referências, relativamente breves, acerca de Lutero e da educação. Quem prega haverá de decidir como fazer isso. Poderia haver já no início uma referência aos 500 anos da Reforma e ao posicionamento de Lutero em relação à educação e uma retomada no final da pregação, mantendo-se a exposição bíblica como corpo maior da pregação. Mas também seria possível o inverso, ou seja, começar desde logo com o texto bíblico, introduzir a referência aos 500 anos da Reforma e a Lutero no transcurso da prédica para retornar ao texto bíblico como fechamento.
Essa última opção poderia ter a seguinte sequência:
• O Salmo 78 lembra-nos que temos uma história com Deus, uma história na qual Deus nos faz experimentar maravilhosos feitos, pelos quais podemos ser gratos e expressar louvor a Deus. De semelhante modo, Deus nos faz saber sua vontade, pela qual podemos orientar nossas vidas.
• Disso decorre nossa responsabilidade em transmitir nossa fé a nossos filhos e filhas, à próxima geração. Referência pode ser feita ao ensino e à oração no âmbito familiar, bem como ao envolvimento na vida da comunidade de fé.
• Isso é algo que podemos então relacionar a Lutero, em particular neste ano em que lembramos e comemoramos os 500 anos da Reforma. Em seus escritos educacionais, vemos o papel fundamental que o Reformador viu na educação, tanto para a formação pessoal das pessoas como para a integridade da igreja e o bem-estar social.
• Retornando ao texto do Salmo 78, podemos lembrar a tentação sempre existente de negligenciar o ensino da palavra de Deus, tanto do evangelho (boa-nova) como da vontade de Deus (mandamentos). Por isso somos permanentemente exortados a colocar nossa confiança e coração em Deus, em Deus somente.
6. Subsídios litúrgicos
As orações do culto haverão de expressar a gratidão pela graça experimentada nos maravilhosos feitos de Deus, bem como pelo legado de fé e ensino que recebemos de gerações passadas, de pedir perdão na medida em que temos negligenciado nossa responsabilidade para com a geração vindoura (nossos filhos e filhas) e de interceder em favor de que o Espírito de Deus nos guie no exercício de nossa responsabilidade educacional. Também que os governantes de nosso país e de todas as nações possam efetivamente priorizar a educação e que essa seja propícia à formação cidadã. E que as igrejas não negligenciem o ensino da fé.
Hinos: do HPD 1, o hino 233 (“Até aqui me trouxe Deus”) e do HPD 2, o hino 413 (“Senhor, se tu me chamas”).
Bibliografia
ALTMANN, Walter. Lutero e libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. 2. ed. revista e ampliada. São Leopoldo: Sinodal, Faculdades EST, 2016. 422 p. [Aqui p. 236-250.]
Observação: As obras de Lutero, a seguir arroladas, são citadas no auxílio homilético como OSel [abreviatura para Obras Selecionadas], seguido do número do volume e página(s).
LUTERO, Martinho. Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas. In: Obras selecionadas. Vol. 5 (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 1995). p. 302-325.
. À nobreza cristã da nação alemã, acerca da melhoria do estamento cristão. In: Obras selecionadas. Vol. 2 (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 1989). p. 279-340.
350
. Uma prédica para que se mandem os filhos à escola. In: Obras selecionadas. Vol. 5 (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 1995). p. 327- 363.
. Prefácio ao Livro dos Salmos. In: Obras selecionadas. Vol. 8 (São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 2003). p. 33-37.
MÜHLHAUPT, Erwin (ed.). D. Martin Luthers Psalmen-Auslegung. 2. Vol.: Psalmen 26-90. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1962. 552 p. [Aqui p. 440-452.]
SEYBOLD, Klaus. Die Psalmen. Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1996. 548 p. [Aqui p. 303-313.]
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