Salmo 68.1-10,32-35

Auxílio Homilético

24/05/2020

 

Prédica: Salmo 68.1-10,32-35
Leituras: João 17.1-11 e 1 Pedro 4.12-14; 5.6-11
Autoria: Vitor Hugo Schell
Data Litúrgica: 7º. Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 24/05/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

O Senhor se levanta vitorioso e conduz seu povo em triunfo

1. Introdução

O texto do Salmo 68.1-10,32-35 aponta para a vitória de Deus sobre seus inimigos. Enquanto a religião popular cananeia celebrava de forma cultual a vitória do deus Baal sobre a divindade da morte, celebrando o fechamento das portas do inferno e a ascensão do deus Baal reinante e poderoso sobre o mais alto monte como mais alto deus, doador de toda a fertilidade, Israel festeja e afirma que o mais alto Deus é o SENHOR vitorioso, que não vem do mundo dos mortos, mas, como celebrado no Salmo, do monte Sinai, local de sua autorrevelação a Israel. Seus grandes feitos, que precedem seu aparecimento e exaltação, seriam a libertação do povo do Egito, sua condução pelo deserto, a concessão da terra e a vitória sobre Sísera (Jz 4), vitória essa que provavelmente está no pano de fundo do que é apresentado pelo salmo.

São inevitáveis as prontas associações com o que nos apresenta o texto do Evangelho de João 17.1-11, início da oração sacerdotal de Cristo. É chegada a hora da glorificação do Pai por meio do Filho, que receberá toda a autoridade sobre a humanidade. Por meio da vitória do Filho há a possibilidade de vida eterna. A glorificação de Jesus passará inevitavelmente pelo sofrimento na cruz. Lá será o lugar de sua vitória. A hora chegada é hora de esvaziamento, humilhação, sofrimento e morte. Não existem atalhos. O próprio Senhor entrega-se à morte para dar a vida aos seus filhos e suas filhas.

Os discípulos e as discípulas desse Senhor, a quem Pedro escreve (1Pe 4.12-14; 5.6-11), são chamados à alegria enquanto experimentam temporariamente o fogo que surge [...] para os provar, enquanto participam dos seus sofrimentos e são por causa dele insultados. Humilhação resultará em exaltação no tempo certo.

2. Exegese

O Salmo 68 é um canto de vitória que pode ser comparado ao canto de Moisés em Êxodo 15 e ao canto de Débora em Juízes 5. Trata-se de um convite, de palavras de motivação ao louvor. Como no Salmo 118, temos aqui traços de celebração litúrgica, de procissão acompanhada de canto de louvor. O Salmo 68 celebra a presença de Deus no Sinai, a partida do povo e a história da sua peregrinação pelo deserto, resistências enfrentadas e vitórias até o momento final da concretização da presença de Deus no Templo.

Esse salmo parece seguir a concepção do cronista, segundo a qual o povo somente alcança o descanso quando o Senhor entra no seu Templo. Como pontuam Carniti e Schökel, o “ponto de partida do Sl 68 é tomado de Nm 10 ou de uma fonte comum” (CARNITI; SCHÖKEL, 1996, p. 850). Em foco está a partida da arca em marcha: Sempre que a arca partia, Moisés dizia: “Levanta-te ó SENHOR! Sejam espalhados os teus inimigos e fujam de diante de ti os teus adversários” (Nm 10.35). A relação com o primeiro verso do Salmo 68 é clara. O que em outros textos é relatado como uma marcha confusa e desordenada, em Números é mostrado como marcha organizada de tribos alinhadas em procissão. Nos v. 2-6 são contrastados os inimigos e aqueles que são honrados por Deus. Os inimigos são obrigados a bater em retirada diante da manifestação vitoriosa de Deus. Assim como o vento dissipa a fumaça e como a cera se derrete no fogo, assim são dispersados os inimigos.

Muitos textos veterotestamentários falam do fogo como elemento da divindade (como, p.ex., Is 33.14; Sl 50.3; Dn 7), e aqui, tanto a figura do vento que leva e dissipa a fumaça como a da cera que derrete apontam para a derrota, para a dispersão e a falta de solidez dos inimigos de Deus (compare o Sl 1). Enquanto os inimigos são dissipados, aos justos, por outro lado, estão reservadas a alegria e a exultação (v. 3). Os v. 1 e 2 expressam a realidade de derrota do ímpio diante do agir de Deus. Deus mesmo é o ator principal. No v. 3 os justos são conclamados à alegria e à exultação diante de Deus pela vitória recebida. Para eles, a epifania significa júbilo, alegria e felicidade. O início do v. 4 conclama ao cântico, ao louvor ao seu nome e à exaltação do Deus vitorioso, descrito como aquele que cavalga sobre as nuvens (compare o Sl 104.3).

O Senhor é descrito como aquele que vitoriosamente cavalga as nuvens a despeito de toda a fama atribuída na mitologia sírio-cananeia ao deus Alyian Baal, como “cavaleiro das nuvens”. Como em um deserto sem estradas a carruagem vai abrindo caminhos, assim o Senhor é quem cavalga sem impedimento sobre as nuvens. Ele não é outro senão o Senhor, numa clara identificação do ator principal, do salvador com o Deus dos pais, que age na libertação do êxodo do Egito. Os v. 5 e 6 descrevem esse vitorioso adiante como Pai para os órfãos e defensor das viúvas, como Deus que dá um lar aos solitários, [e] liberta os presos para a prosperidade. O Senhor tem as marcas do verdadeiro rei, que protege os indefesos, defende os oprimidos, que faz justiça. Órfãos e viúvas estão no foco da mensagem profética (compare, p. ex., Is 1.17 e 23; Jr 7.6; 22.3 e Ez 22.7; 35.17). No Senhor, órfãos têm um pai e viúvas têm um justo juiz. O solitário, o Senhor faz com que possa viver em família.

É inevitável a identificação de tudo o que aqui se apresenta com o que se mostra na trajetória de Jesus de Nazaré, como ungido de Deus nas páginas dos evangelhos, com sua missão descrita de forma condensada, p. ex., por Lucas em 4.18ss, onde Jesus atribui a si mesmo o conteúdo das palavras de Isaías 61.1-2. A associação do cristianismo ao que nos é apresentado no Salmo 68 é inevitável também ao lermos as palavras do v. 18 do Salmo em questão, sendo citadas pelo autor da Carta aos Efésios em atribuição à obra de Jesus Cristo. O salmo enfatiza que comunhão, justiça e prosperidade numa terra fértil são as marcas da vida conquistada pelo Deus vitorioso, enquanto os rebeldes vivem em terra estéril. O que se traduz por rebelde se aplica ao filho (veja Dt 21.18) e ao povo insubordinado (compare Jr 6.28 e Salmo 78.8).

Os v. 7-10 são parte de uma segunda seção do salmo, parte essa que ressalta a provisão de Deus durante a peregrinação pelo deserto. À sua presença a terra tremeu e os céus gotejaram, afinal, o próprio Sinai fora abalado na presença de Deus. “Desta forma, atuam as duas testemunhas clássicas da divindade, céu e terra (p. ex. Is 1,2; Dt 32,1; Sl 50,4)” (CARNITI; SCHÖKEL, 1996, p. 857). Em meio à exaustão, o povo de Deus, chamado de sua herança, experimentou chuva sendo derramada, e por meio dela reestabelecimento. Os necessitados experimentaram a provisão de Deus enquanto habitavam no deserto.

Os v. 32-35 finalizam o Salmo 68 conclamando novamente ao louvor ao Senhor. As nações, por bem ou por mal, deverão reconhecer o poder de Deus. Convidados ao louvor são os reinos da terra (v. 32). O agir de Deus, salvando e conduzindo seu povo Israel, traz consequências às nações; e os versos anteriores ressaltam as ofertas trazidas por esses povos: Por causa do teu templo em Jerusalém, reis te trarão presentes [...]. Ricos tecidos venham do Egito, a Etiópia corra para Deus de mãos cheias (cf. v. 29 e 31). O v. 34 repete tradições já apresentadas no início do salmo. O Senhor cavalga os céus e troveja com voz poderosa.

O tema do cântico é a história de libertação experimentada e que deve ser sempre novamente atualizada na vida daqueles que estão em procissão, a qual, como bem afirma Stadelmann, “ao narrar os episódios históricos de salvação, não tem por objetivo apenas evocar o passado, e sim tornar sempre presente o fato da libertação, como ação divina sempre atual, para suscitar nos fiéis da procissão a experiência existencial de salvação, cujo sinal é a alegria da alma” (STADELMANN, 2015, p. 374-375).

3. Meditação 

Em tempos de ódio, polarização e da utilização – de forma geral, irrefletida – de imagens bélicas retiradas da própria Escritura para descrever a realidade,  assim como vista de forma privilegiada pelo “segmento evangélico” (segmento!), o texto do Salmo 68 pode trazer algumas balizas importantes, especialmente ao ser interpretado – assim como deve ser aqui – à luz do Novo Testamento. O texto do Salmo 68 enfatiza o poder de Deus, que se levanta e causa inevitavelmente a dispersão dos inimigos que se colocam contra o seu povo. Assim como a fumaça é dissipada e levada pelo vento, e assim como a cera é derretida pelo fogo, assim os ímpios perecem na presença de Deus. Ímpios e justos são contrastados. Enquanto estes exultam de alegria, aqueles perecem na presença de Deus.

O salmo traz à memória e canta a peregrinação do povo pelo deserto desde a libertação do Egito até seu estabelecimento na terra prometida. Celebra  inclusive a presença de Deus no Templo em Jerusalém. O Senhor se levanta e a vitória acontece. Ao deixarmos que o texto de João 17, sugerido como leitura bíblica, lance luz sobre o que temos aqui no Salmo 68, novas perspectivas são possíveis. Aqui se torna inevitável a associação do levantar-se de Deus e da fuga de seus inimigos com a glorificação do Filho de Deus e o recebimento de sua autoridade sobre a humanidade, o recebimento da glória que tinha com o próprio Pai antes que o mundo existisse (cf. Jo 17.1-5). Em Jesus de Nazaré, porém, não se via alguém que se levanta causando medo, colocando em fuga seus inimigos. Isso não aconteceria! A glorificação do Senhor teria a ver com sofrimento, humilhação e, por fim, morte. Na cruz, o próprio Filho de Deus é feito inimigo. Ou como diz o apóstolo Paulo em 2 Coríntios 5.21: Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus. Longe de ser alguém que se manifesta como quem cavalga as nuvens, Jesus Cristo, o Filho de Deus, é aquele que experimenta ele mesmo a peregrinação, com o pé bem no chão.

O Senhor que acompanha os peregrinos pelo deserto, que vai adiante deles abrindo-lhes caminho, afugentando e dispersando os inimigos, é louvado no salmo como pai dos órfãos e juiz das viúvas, como aquele que dá um lar a solitários e liberta os presos para a prosperidade (v. 5-6). É clara também aqui a possível identificação de Jesus de Nazaré como Senhor que liberta da escravidão, da opressão e injustiça, e faz com que se viva em família. Sinais claros dessa nova realidade de salvação foram colocados por Jesus. Em Mateus 11.5 nos é relatada parte da resposta que deveria ser dada a João Batista ao questionar a respeito da identidade de Jesus de Nazaré: os cegos veem, os mancos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as boas novas são pregadas aos pobres [...]. É interessante percebermos que, no confronto com Jesus, os verdadeiros inimigos – justos aos seus próprios olhos – são afugentados e dispersos, e os que não eram considerados justos são justificados, recebem nova vida por sua graça.  Para ele as nações são atraídas.

Outro aspecto muito interessante trazido pelo Salmo 68, nos v. 7-10, é a provisão de Deus para com o povo a caminho. A história da peregrinação do povo de Israel em direção à terra prometida está cheia de marcas da provisão de Deus, que acontecia na hora certa. Também a rebeldia, à qual se refere o v. 6, faz parte dessa história de peregrinação. À luz do Novo Testamento, associações com a trajetória das discípulas e dos discípulos de Jesus se tornam claras. O povo de Deus peregrina pelo deserto e o próprio deserto se torna em analogia para aquilo que enfrentam as pessoas cristãs na sua jornada terrena (cf. 1Pe 1.17). A Carta aos Hebreus, por exemplo, não poupa palavras no desenvolvimento da comparação dessa jornada com aquela do povo de Israel. O sustento aos peregrinos é assegurado em meio aos percalços do caminho. O salmo aponta para a realidade de que o Senhor está à frente do seu povo enquanto marcha pelo ermo: Quando saíste à frente do teu povo, ó Deus, quando marchaste pelo ermo [...] (v. 7). O Senhor está à frente! Chuva generosa e refrescante é experimentada no momento da exaustão.

A experiência do povo de Israel trazida à memória e que resulta em louvor no salmo deve apontar para a certeza do agir de Deus em tempos de dificuldade e perseguição, experiência também dos discípulos e discípulas de Jesus em todos os tempos. No final do Salmo 68, temos outra imagem: a partir do estabelecimento do templo em Jerusalém as nações são levadas necessariamente ao reconhecimento (v. 29-31) do senhorio de Deus. Por fim a soberania de Deus não será mais algo escondido ou questionado, mas se tornará notória entre as nações. Em Jesus, as nações são acolhidas e atraídas.  Do oriente são trazidos presentes e da Etiópia se vem procurar pelo Deus verdadeiro (lembremos os presentes dos magos e do etíope de Atos 8, por exemplo). Em Jesus, o Cristo de Deus, a vitória está presente e assegurada; e a verdadeira justiça e impiedade se definem. Por fim, a realidade é revelada. Jesus se levantará, por fim, vitorioso. Esse salmo, cantado em momentos de celebração, não somente trazia à memória os feitos de Deus, como também chamava à experiência e à inclusão bem pessoal na experiência do povo. Por meio de Cristo também somos incluídos nessa experiência, no louvor por sua vitória, na libertação oferecida e na certeza de sua companhia durante a peregrinação. Amém.

4. Imagens para a prédica

Os diferentes aspectos centrais dos textos reservados à leitura bíblica, tanto da oração sacerdotal de Jesus como da exortação da Primeira Carta de Pedro devem ser ressaltados durante a prédica. Os episódios dos evangelhos nos quais o próprio Jesus se mostra como aquele que cumpre as promessas do Antigo Testamento como libertador de seu povo, prometendo-lhe ser “pão da vida” e “fonte que faz jorrar rios de água viva”, e que o sustenta durante a peregrinação à terra da salvação (como, p.ex., em Jo 6 e 7), podem muito bem ilustrar a mensagem do salmo em questão.

5. Subsídios litúrgicos

Além de vários hinos disponíveis no Livro de Canto da IECLB que ressaltam a mensagem da pregação e levam ao testemunho do agir de Deus na história pessoal de cada participante do culto, podem ser utilizados na moldagem da liturgia outros meios visuais como filmes que ressaltam a superação de desafios pela igreja que está a caminho. Sugere-se o uso de imagens que mostrem os desafios da igreja na atualidade, associadas aos desafios durante a peregrinação de Israel no deserto, assim como imagens que enfatizem a providência de Deus e a promessa da presença de Jesus Cristo, que vitorioso e detentor de toda a autoridade, promete não deixar quem nele crê.

Bibliografia

SCHÖKEL, Luís Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: salmos 1-72. Tradução, introdução e comentário. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1996.
KRAUS, Hans-Joachim. Psalmen II. 2. Teilband. Psalmen 64-150. 4. Durchgesehene und mit Literaturnachträgen ergänzte Auflage. In: HERMANN, S.;
WOLFF, H. W. (Hrgs.). Biblischer Kommentar Altes Testament. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1972. Bd. XV/2.
STADELMANN, Luís I. J. Os Salmos da Bíblia. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2015. p. 374-375


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Autor(a): Vitor Hugo Schell
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 7º Domingo da Páscoa
Testamento: Antigo / Livro: Salmos / Capitulo: 68 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 35
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54661
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