Rússia X Ucrânia | Lucas 13.31-35

2º Domingo na Quaresma

13/03/2022

 

Amados irmãos, amadas irmãs,

quem tem mais poder? Quem manda mais? Quem é mais forte? Nos últimos dias, temos visto nos noticiários a crise no leste europeu. Tínhamos a esperança de que a pandemia tornaria a todos nós mais humanos e empáticos em relação ao nosso próximo. No entanto, o que estamos vendo agora é exatamente o contrário: a fome de poder continua presente no coração do ser humano. Descobrimos, assim, que a pandemia não é capaz de mudar a cobiça tão presente no coração das pessoas. De repente, as ameaças de guerra deixaram de ser algo que conhecíamos apenas nos livros de história para serem algo bem presente em nosso dia a dia, inclusive no aumento dos combustíveis e no bloqueio da importação de fertilizantes.

Os dois concorrentes possuem exatamente o mesmo nome, mas em línguas diferentes: do lado da Rússia temos Vladimir Putin; do lado da Ucrânia, temos Volodymyr Zelensky. Mas não são apenas estes os nomes envolvidos. Precisamos colocar também nessa conta Joe Biden dos EUA, Xi Jinping da China e vários nomes importantes do continente europeu. Talvez a pergunta correta não seja “quem manda mais?”, mas “até onde isso irá nos levar como humanidade?” Talvez, como diria o Mestre Yoda da saga Star Wars, precisamos reaprender que não existe “grande guerreiro”, pois a guerra não faz grande ninguém1.

A grande verdade é que acreditávamos que nunca mais veríamos no noticiário o que temos visto nos últimos dias. Yuval Harari, um importante historiador israelense e um dos autores mais lidos atualmente, afirma em seu livro “Homo Deus”:

em 2012, cerca de 56 milhões de pessoas morreram em todo o mundo; 620.000 delas morreram devido à violência humana (a guerra matou 120.000 pessoas e o crime matou outras 500.000). Em contraste, 800.000 cometeram suicídio e 1,5 milhão morreram de diabetes. O açúcar é agora mais perigoso do que a pólvora.2

 

Com essas informações, Harari quis nos dizer que as guerras estavam vencidas e que agora a guerra seria contra novos inimigos declarados: ansiedade, depressão e alimentação inadequada. As palavras de Harari dizem respeito a dez anos atrás, 2012. Quanto que o mundo mudou nestes dez anos, não é mesmo? Ao invés do mundo se unir para a solidariedade, amor e empatia, o que vemos é uma incapacidade para essas três características, principalmente para o amor. É preferível ameaçar o território de outro país e colocar o mundo inteiro em alerta quanto a uma guerra nuclear do que praticar a compaixão e o amor. E todos nós acabamos sofrendo com isso.

Entretanto, há uma outra questão a ser mencionada: todos nos assustamos com esse momento da história. Porém, guerras são uma característica “normal” de muitos países do continente africano. A República Democrática do Congo, por exemplo, experimenta o terror há anos. Denis Mukwege, um médico e ativista dos direitos humanos naquele país, relata como o estupro é usado como arma de guerra para tirar as pessoas de suas terras e tomar posse delas. Mukwege construiu um hospital onde as mulheres violentadas são ajudadas a se recuperarem e a terem sua dignidade de volta. É uma guerra que já dura há anos, mas que a mídia não faz muita questão de divulgar. Afinal de contas, “quem é que vai dar atenção à África?” Agora, quando os países ricos decidem brigar, aí o destaque nos jornais é bem espaçoso.

No fim das contas, todos estão em uma maluca briga por poder. Querem registrar seus nomes na história. Querem marcar suas trajetórias, seja fazendo o bem ou o mal. Por terem consciência de que um dia morrerão – ou seja, de que não são tão fortes quanto imaginam –, eles fazem de tudo para se tornarem perenes a partir da própria força enquanto estão vivos. E não se assustem se eles se considerarem cristãos... É bem comum pessoas declararem guerra em nome de Deus. Muitas vezes, inclusive, o próprio nome de Deus é usado como uma arma para atacar ao outro. Assim como na época das Cruzadas, a imagem de Deus é desfigurada. Deus é tornado um imperador que justifica as ações do governo, seja ele qual for.

Não é de hoje que o ser humano gosta de fazer guerra. No texto bíblico que ouvimos no início, Herodes declara guerra a alguém que não tinha nenhum armamento contra ele. Lucas está falando aqui de Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande. Herodes, o Grande, é aquele que mandou matar todos os meninos que tinham menos de dois anos em Belém e seus arredores (cf. Mateus 2.16). Aquele Herodes, mesmo sendo chamado pela qualidade de “grande”, teve medo da indefesa criança que mal havia nascido em Belém. O poderoso Herodes, o Grande, se sentiu ameaçado por uma criança. Por isso a família de Jesus fugiu ao Egito até que as coisas se acalmassem na região da Judeia.

O poder passou de pai para filho. De Herodes, o Grande, agora temos Herodes Antipas, seu filho que também ameaça a Jesus. Os fariseus chegam a Jesus com uma notícia que poderia ser verdadeira ou fake news. Na verdade, o que os fariseus queriam mesmo é que Jesus estivesse bem longe de Jerusalém. Portanto, Herodes Antipas ameaçando Jesus de morte ou não, o que sabemos é que certamente a intenção dos fariseus não era a de proteger Jesus, mas afastá-lo.

Ao ouvir a mensagem, Jesus usa uma palavra bastante ofensiva para se referir a Herodes Antipas: raposa. Como muitos palavrões do nosso tempo, chamar alguém de raposa naquela época era uma provocação extremamente ofensiva. “Raposa era uma figura de linguagem que representava tanto a astúcia de alguém como também a falta de importância”3. Ao chamar Herodes Antipas de raposa, Jesus está dizendo que além de ser astuto, ele é também alguém que se acha importante, sem ter importância alguma. De fato, mesmo hoje há aqueles que, embora se considerem grandes e poderosos, não passam de raposas astutas e que, querendo ser importantes, perdem toda sua importância ao serem desprezados pelo resto do mundo.

Jesus, então, aumentará o território da sua missão. Ele não pregará apenas em Jerusalém, mas também na Galileia. Jesus saiu de Jerusalém não porque tinha medo de Herodes Antipas, mas porque era essa a sua missão e porque o tempo da sua morte redentora na cruz ainda não havia chegado. Jesus sairia de Jerusalém, mas voltaria para a consumação da sua missão: a loucura da morte na cruz. Os poderosos do nosso mundo podem até achar que tem domínio territórios. Porém, o tempo não está em suas mãos!

Antes de sair de Jerusalém, Jesus profere o seu lamento: “Jerusalém, Jerusalém! Você mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, mas vocês não quiseram!” (Lucas 13.34). O que Jerusalém fez com os profetas que anunciavam a verdadeira Palavra do Senhor? Isaías, por exemplo, foi serrado ao meio (cf. Hebreus 11.37). Homens de Deus que foram mortos por terem a coragem e a ousadia de anunciarem a verdade de Deus ao denunciarem os “poderosos” do seu tempo. Deus enviou muitos profetas a Jerusalém para que o seu povo fosse acordado. Porém, o que Jerusalém fez? Matou os profetas!

Agora, em Jesus, o próprio Deus desceu até nós. O próprio Deus se fez carne e habitou entre nós (cf. João 1.14). Jesus é a própria Palavra de Deus que se fez carne (cf. João 1.1ss). Porém, o que Jerusalém fará com ele? Também ele será pregado na cruz. Também Jesus será profeta morto pelo próprio povo de Deus e em nome de Deus, quando, na verdade, aquele que penduram na cruz é o próprio Deus-homem, o Verbo Encarnado. Como Herodes e seus aliados não sabem ouvir uma crítica, o mais fácil a se fazer é pendurar quem faz a crítica em uma cruz para “calar a sua boca” de uma vez por todas. Todavia, eles se enganaram! Aquele que crucificaram não era apenas mais um profeta como qualquer outro do Antigo Testamento; era o próprio Deus! Por isso, ele foi capaz de vencer a morte! Sua voz não foi calada até hoje! Na verdade, ela continua ecoando pelo mundo.

Talvez, a lamentação proferida por Jesus contra Jerusalém seja bastante atual. Quem sabe, hoje, Jesus não diga “Jerusalém, Jerusalém!”, mas “Rússia, Rússia!”; ou, “Ucrânia, Ucrânia!”, ou “Estados Unidos, Estados Unidos!”; ou até: “Sapiranga, Sapiranga!”. Neste Domingo, lembramos das palavras do Salmo 25.6 que diz: “Lembra-te, Senhor, das tuas misericórdias”. É o que nos resta pedir!

Quanto sofrimento... Quanta dor... Quanta tristeza... Tudo isso ocasionado pela fome ao poder. Jesus, porém, nos convida a invertermos a lógica do mundo: se o mundo quer o poder, nós devemos praticar a misericórdia; se o mundo quer agir pela força, nós devemos nos colocar como fracos ao lado dos fracos; se o mundo quer impor seu domínio, o nosso dever é se colocar ao lado dos que sofrem. Essa é a lógica do Reino de Deus: não é a lógica do poder, mas da fraqueza. E quando somos fracos, então somos fortes.

Portanto, estejamos conformados com Cristo. Nós podemos sim mudar e impactar o mundo. Não podemos ficar de braços cruzados. Se nós não fizermos algo, os maus o farão. O pastor norte-americano Martin Luther King Jr. diz: “Uma nação que continua, ano após ano, a gastar mais dinheiro com defesa militar do que com programas de promoção social está próxima da morte espiritual”4. Ele diz também:

Meu compromisso com o ministério de Jesus Cristo. Para mim, a relação entre esse ministério e a construção da paz é tão óbvia que por vezes me espanto com aqueles que perguntam por que estou falando contra a guerra.5

 

Muito antes dele, Martinho Lutero já dizia (trazendo para a linguagem brasileira): “Para cada “real” investido na guerra, cem deveriam ser investidos na educação”6. Que mundo teríamos se – quem sabe – isso fosse uma verdade para cada país.

Não apenas os teólogos pedem por paz. Carl Sagan, um astrofísico, diz: “Toda pessoa pensante teme uma guerra nuclear e todo Estado tecnológico tem planos para ela. Todos sabem a loucura que ela representa e toda nação tem um pretexto para ela”7. Pretextos para a guerra é o que nunca faltam. Sempre há algum “motivo”. Já as consequências nem sempre são tão medidas quanto às motivações para tal.

Portanto, permaneçamos em Jesus. Ele é o nosso Príncipe da Paz. Nele, somos chamados a promover a paz. Jesus disse: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. (Mateus 5.9). Filhos de Deus são aqueles que praticam a paz e mantém longe de si a guerra e a confusão. Portanto, oremos pela paz! Aguardemos, em esperança, novos céus e nova terra. O melhor ainda não chegou! O melhor ainda está por vir! Nenhuma bomba nuclear poderá destruir o Reino dos Céus. Essa é a nossa certeza.

Permaneçamos em Jesus: na sua paz, no seu amor, na sua esperança. Como ele, abandonemos o poder e amemos os que sofrem. Em Jesus, sejamos todos irmãos e irmãs!

Amém.


2º DOMINGO NA QUARESMA | VIOLETA | CICLO DA PÁSCOA | ANO C

13 de Março de 2022


P. William Felipe Zacarias

1 GLUT, Donald F. “Star Wars: O Império Contra-Ataca”. in: GEORGE, Lucas. Star Wars: a trilogia. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2014. p. 318.

2 HARARI, Yuval. Homo Deus. A Brief History of Tomorrow. New York: Harper, 2016. p. 14-15 (Tradução própria).

3 RENGEL, Diogo. “Agenda de Deus x agenda humana”. in: HOEFELMANN, Verner. Proclamar Libertação. v. 46. São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 119.

4 KING JR., Martin Luther. A autobiografia de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 401.

5 KING JR, 2014. p. 399.

6 LUTERO, Martinho. Aos Conselhos de Todas as Cidades - 1524. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Ética: Fundamentos - Oração - Sexualidade - Educação - Economia. 2. ed. v. 5. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2011. p. 305. A frase é uma paráfrase da original, que diz: “se alguém der um ducado para a guerra contra os turcos (ainda que nos assediassem), seria justo que se doassem cem ducados, embora com eles se pudesse educar apenas um garoto de modo a tornar-se um varão verdadeiramente cristão”.

7 SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 402.


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 13 / Versículo Inicial: 31 / Versículo Final: 35
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 66381
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