Roupa suja se lava em casa?

01/12/2000

Roupa suja se lava em casa?

• Mara Parlow •

A frase acima — roupa suja se lava em casa — é um dito popular conhecido (e utilizado!) em quase todo o mundo. Metaforicamente, o dito sugere que há coisas — sujas — sobre as quais somente se pode tratar no espaço doméstico.

Porém, especialmente quando tratamos do tema da violência doméstica, cabe-nos interrogar esse aforismo tão corriqueiro. Isso porque a expressão roupa suja se lava em casa, junto a outras de semelhante teor (em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, por exemplo), tem justificado a omissão de quem presencia atos de violência no âmbito doméstico e, pior do que isso, tem silenciado as próprias vítimas desses abusos. Vítimas, na sua maioria, mulheres, crianças e pessoas idosas.

A proibição universal de se lavar roupa suja em público é, no mínimo, irônica, porque geralmente a roupa suja também nunca chega a ser lavada em casa, no seio da vida privada/privatizada. Lá embaixo, no canto mais escuro do porão, a roupa suja — a realidade da violência familiar —simplesmente fica ali, jogada. A insistência em se manter segredo, seja por pressões internas (sentimentos de culpa, vergonha ou medo da parte das vítimas), seja por pressões externas (ameaça crescente do(a) agressor(a)), é um veneno. Na realidade, essa insistência pelo silenciamento quer dizer que a vítima não tem nenhum apoio à sua volta para lidar com as questões que lhe causam dor.

Até que ponto, pois, a violência doméstica é questão de foro privado e íntimo? Por que as mulheres encontram tanta dificuldade para expor, diante da sociedade, suas dores e sofrimentos decorrentes de situações de violência física ou psicológica? O que reforça o silenciamento? Por outro lado, que espaços e atitudes podem sugerir autoconfiança e provocar encorajamento para deflagrar e denunciar situações de desrespeito aos direitos humanos? Como assegurar proteção às vítimas de coisas tão sujas como atos de violência?

Relato brevemente aqui uma iniciativa de capacitação legal que se propõe a ser potencializadora de mulheres como agentes proativas de direitos. Trata-se do Programa Promotoras Legais Populares —Acesso Popular à Justiça, no qual participam mulheres de classes populares da cidade de São Leopoldo/RS, buscando desenvolver habilidades e uma necessária coragem diante de situações de violência que as afetem diretamente ou suas concidadãs e concidadãos.

À luz do conhecimento para lavar roupa suja em público

Disse-lhes Jesus uma parábola sobre o dever de orar sempre e nunca esmorecer. Havia em certa cidade um juiz, que não temia a Deus nem respeitava pessoa alguma. Havia também naquela mesma cidade uma viúva, que vinha ter com ele, dizendo: Julga a minha causa contra o meu adversário!. Ele por algum tempo não a quis atender; mas depois disse consigo: Bem que eu não temo a Deus, nem respeito a pessoa alguma, todavia, como esta viúva me importuna, julgarei a sua causa, para não suceder que, por fim, venha a molestar-me. (Evangelho de Lucas 18. 1 a 5)

O direito não protege quem dorme! (Márcia Soares, advogada da Themis e assessora do curso PLPs)

Acima, dois discursos. Um evangélico. O outro também. Fontes tão distintas e o mesmo teor de boa nova que impulsiona para a ação na garantia dos direitos humanos, com ênfase aos das mulheres. Duas falas profundamente paradigmáticas para a natureza do curso Promotoras Legais Populares (PLPs), que acompanhei em interlocução desde a minha identidade de teóloga-pastora-pesquisadora, durante o ano de 1999, e que prossigo acompanhando na fase de aprofundamento dos conhecimentos e de articulação da atuação das mulheres-promotoras.

O PLPs, em São Leopoldo, situa-se no universo de projetos de formação popular para mulheres do CECA (Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria). Esse evento educativo, ecumênico-popular, tem seus propósitos sustentados pelo conceito de leis como instrumentos, para a viabilização da cidadania. Esses instrumentos, se não acionados (conhecidos, manejados, garantidos), não têm razão de ser. Leis não são auto-aplicáveis. Portanto, para que a legislação cumpra seu papel na defesa dos direitos das mulheres, é preciso conhecê-la, desmistificá-la e, certamente, persegui-la (O direito não protege quem dorme!).

Para a vida das mulheres, bem menos familiarizadas do que os homens com as ferramentas legais, a apropriação de saberes na área da justiça é de fundamental importância para a defesa de seus direitos e para a reação diante de situações de violência que afetam o seu cotidiano.

A explicitação de experiências de dor que muitas mulheres conhecem ou trazem consigo para o curso é processo educativo que se concretiza em três etapas: situação inicial, trabalho conjunto e abertura ao futuro. O potencial do curso PLPs, portanto, está nisso: em ser um espaço onde as experiências de sofrimento das mulheres (ou de pessoas que lhes são próximas) são manifestas, articuladas em grupo e re-elaboradas com vistas à atuação paralegal e a consequente superação de situações violadoras da integridade humana.

Ao desencadear relações geradoras, o curso dá lugar e valor às vivências das mulheres, sendo que a capacitação legal concretiza uma situação dialógica, onde experiência e conscientização constroem humanização. Sim, as promotoras legais populares dispõem-se a ser, antes de tudo, agentes de humanização, e no caso do tema aqui enfocado, dispõem-se a facilitar o processo de lavar roupa suja em público ( = denúncia e proteção às vítimas de violência). O PLPs favorece o encorajamento das mulheres para trazer à tona, desde os subterrâneos porões domésticos, situações de violação dos direitos humanos elementares.

Nesse sentido, assim se pronunciou uma aluna sobre o curso e o seu processo pessoal à luz do conhecimento no PLPs:

(..) Aqui, a gente, além de aprender sobre os nossos direitos, conhecer a nossa constituição federal, as nossas leis do país, a gente acabou, eu acabei conhecendo problemas de outras mulheres e sentindo assim que eu tenho potencial em ajudar elas, né?! E aqui foi o caminho de aprender e de como chegar lá e ajudar as pessoas. Até o fato de a gente aprender a como chegar a ser mais amiga, mais aberta. (..) (Roseli, 25 anos)


Autora é pastora da IECLB e doutoranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, em São Leopoldo, RS


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Autor(a): Mara Parlow
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Mulheres
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Área: Missão / Nível: Missão - Cultura de Convivência
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2001 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000
Natureza do Texto: Artigo
ID: 32981
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