A FONTE DA CONCÓRDIA
Romanos 15.5-7 (Leitura: Salmo 67)
A Epístola aos Romanos ocupa um lugar todo especial, na Bíblia. É o livro bíblico que mais destaca a fé. A fé no Deus Salvador, que se revelou em Jesus Cristo. Ela aponta a miséria humana, e responde: Fé em Deus. Descreve o pecado do homem e diz: Fé em Cristo, Manda-nos olhar para cima, por assim dizer. Faz-nos tirar os olhos de nós mesmos, de nossa própria justiça, e nos faz encarar a justiça de Deus. É a receita do apóstolo de Jesus Cristo para os males da humanidade. Receita que desencadeou a Reforma, no tempo de Lutero, e que permanece válida até hoje — graças a Deus!
Mas, ao lermos esta epistola com atenção melhor, ao seguirmos a receita que o apóstolo nos dá, vamos fazendo uma descoberta estranha: É verdade, o autor nos manda olhar para cima. Mas, ao olharmos, com fé, para o Deus de nossa salvação, só para Deus mesmo, de repente notamos que temos em nossa frente a criatura humana. É como se Deus ficasse transparente — que só agora, depois de termos conhecido a Deus, descobríssemos o homem, criado à sua imagem. Quer dizer que notamos ser impossível ter paz e comunhão com Deus, se não quisermos a paz e a comunhão com o homem. Se desviamos nosso olhar de nosso semelhante, se queremos existir só para Deus, se queremos Deus só para nós, então notamos, surpreendidos, que no mesmo instante olhamos para um lugar vazio. — Não, não dá para separar as duas coisas: amar a Deus e amar aos homens. «Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores.» — «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.» — Depois da revelação de Jesus Cristo, no qual Deus e o homem se encontram reconciliados, ninguém mais tem o direito de separar a comunhão com Deus da comunhão com os homens. Você deve desconfiar de qualquer fé que não ponha você à procura do próximo, do homem perdido, falhado, do homem que Deus ama.
«O Deus da paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com os outros, segundo Cristo Jesus, para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.»
É a receita para uma comunidade cristã. E é mais que simples receita. É oração. A receita diz o que nós precisamos fazer para ficarmos curados de uma doença. A oração pede ao Deus Todo-Poderoso para nos dar o que nós somos incapazes de criar. O apóstolo chama este Deus Todo-Poderoso de «Deus da paciência e da consolação». É um nome bom e confortante, Ele poderia dizer também: O Deus do amor. O Deus que mostrou sua face na vida de Jesus Cristo. Será bom que identifiquemos bem aquele Deus, como sendo o Pai de Jesus. Porque há muitos «deuses», visíveis e invisíveis, que querem ocupar o lugar do único Deus verdadeiro. Em Jesus Cristo, o Deus da verdade se tornou homem, Assim, acabou-se a procura de Deus por parte de nós. Quem hoje ainda tateia no escuro, à procura de Deus, o faz porque quer. Deus se revelou, Deus se mostrou — como o Deus da misericórdia, da bondade, da paciência, da consolação. A procura se acabou. Louvado seja Jesus Cristo!
Assim não há mais dúvida a respeito da fonte, da qual bebemos. Não há mais dúvida a respeito do banco, do qual recebemos o nosso dinheiro, o capital de giro de nossa vida cristã. É Deus — só Deus. Não bebemos das águas turvas de fontes humanas. Não fazemos empréstimos junto a filósofos e sábios deste mundo. A fonte que Cristo nos abriu, o tesouro inesgotável que ele nos liberou, nos satisfazem plenamente. «Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem me compraza na terra.» (Salmo 73.25)
E agora, tendo encontrado aquele Deus misericordioso e amoroso, eu me volto para meus próximos. Em verdade nem preciso voltar-me, pois já me acho voltado para eles. Não me preciso forçar, não preciso fazer de conta. Deus concede interesse, Deus dá amor pelo irmão. Ele dá «o mesmo sentir»: Acaba com a discordância, com a inimizade, com a indiferença, com os corações frios. Deus faz o milagre: Ele nos torna capazes de «concordemente e a uma voz» glorificarmos a ele, o Pai de Jesus Cristo. Concordemente: Isto é, com os corações unidos, com os corações em sintonia. É como num instrumento de corda: Cada uma das cordas tem o seu tom próprio. Seria uma desarmonia, se o violão não fosse afinado, e se fosse tocado por alguém que não sabe tocar. Mas acontece que Deus afinou as cordas. Uma por uma. E cada uma para combinar com as outras, para complementar as outras. Tocadas por mão de artista, as cordas diferentes vão produzir harmonias! Ai, se todas as cordas fossem iguais, se não houvesse diferença de grossura e de tensão! Seria aquela monotonia. Mas ai, se o violão se desafinar, e se por cima cair nas mãos de um músico incapaz. Aí o resultado só pode ser discordância, só pode ser um barulho desagradável e estridente.
Veja, é isto mesmo o que acontece conosco na comunidade de Cristo: Ele, o Senhor, vai afinando as cordas. Vai afinando uma vez, no começo: É uma afinação para valer, naquele instrumento desafinado que somos. E depois vai afinando de leve, cada dia. Uma comunidade desafinada é uma coisa muito natural. Ela se desafina por si mesma. Basta um único dia, o divino Mestre não afinar o seu instrumento — e o resultado será discordância -- isto é, discórdia. E o instrumento só se afina nas mãos do Mestre mesmo. A comunidade se torna concorde, canta o louvor a Deus «a uma voz», congregando-se junto a Jesus, ouvindo a sua palavra, confessando-lhe os pecados e aceitando o perdão e a correção por parte de seu Senhor.
«Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus,» — É como se o apóstolo dissesse: Que cada um de vocês seja o Cristo do outro! Como disse em outra carta: «Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Jesus Cristo.» (Filipenses 2) — Acolher, isto é, aceitar, É deixar de rejeitar o outro, por ser diferente de nós. É abrir a porta para ele e dizer: Entre! Entre e fique! É, confiar nele e despertar confiança dentro dele. Veja: Descobrir o próximo, acolher o próximo, assim como Cristo nos acolheu, isto não é nenhuma carga que Deus nos impõe. É antes uma graça que nos dá. É a graça de ele nos tirar de nossa solidão, de nossa prisão na solitária do «eu», de romper as grades de nossa vida egoísta, de nos revelar a sua imagem benigna e confortante — na face de um ser humano, que passamos a amar como nosso irmão, como nossa irmã. É dar e receber, é receber e dar. É passar a viver em comunhão, É ensaiar já nesta terra a vida gloriosa que Deus nos dará no céu.
Mas você, caro leitor, caro ouvinte, é uma pessoa realista e sóbria, uma pessoa que quer sempre sentir os pés tocando a terra, uma pessoa que desconfia de sonhos, que quer algo que seja real, e algo que dê para realizar. Assim você diz: Sim, está bem: aceitar, acolher, está bem! Mas — se o outro não quiser? Se o outro for teimoso? Se não for sincero? Veja a nossa comunidade — veja nossa igreja: Ela não está cheia de pessoas erradas, de pessoas desafinadas e falhas? Isso não é prova de que não é possível criar nesta terra imperfeita uma comunidade como a Bíblia quer, uma comunidade «com unidade», unânime e concorde?
Jesus Cristo não foi um sonhador. Não foi nenhum destes idealistas que não levam em conta as falhas humanas. Jesus foi realista. Muito mais realista do que os homens de seu tempo. «Ele sabia o que estava dentro do homem», mesmo sem fazer teste psicológico com ele. Mas mesmo assim ele veio a aceitar e a acolher um homem teimoso como Simão Pedro, um homem desconfiado como Tomé, uma mulher possessa por sete demônios, como Maria Madalena, um funcionário desonesto como Zaqueu, um perseguidor cego e fanático como Paulo de Tarso. Como amar aquele que não é amável? Como aceitar aquele que não parece aceitável? Veja o que Cristo fez! Melhor: Permite que ele aceite você, e você saberá aceitar também, No momento em que você for aceito por ele, você não está mais trabalhando com seu próprio capital espiritual. Não está gastando mais seu pobre capital inflacionado, seus cheques verbais sem fundo. Você passou a trabalhar com o capital de Cristo. Passou a gastar o poder, o amor, os dons que ele dá. E isso muda a situação. Muda para valer mesmo.
Não é que a pregação do evangelho -- e a fé, criada por essa pregação — façam surgir uma comunidade perfeita. Comunidade perfeita nunca existiu. Pedro negou seu Senhor, O discípulo Judas o traiu. Tomé duvidou. Paulo e Pedro brigaram por causa de uma questão surgida no campo missionário. Mas o que vale é que Cristo esteja presente na comunidade, que ele continue tendo as mãos na massa. Onde Cristo estiver agindo, manifesta-se o poder do céu. Em meio às nossas fraquezas e imperfeições. E poderá acontecer que você mesmo só esteja vendo uma comunidade cheia de brigas e discórdias, uma igreja desunida por rivalidades carnais. E, de repente, num culto, numa celebração da Ceia do Senhor, num estudo bíblico — ou no diálogo com algum irmão -- você vai descobrindo: Apesar de tudo, Cristo está presente. Ele continua agindo. Continua afinando as cordas. Ele continua criando as condições para aceitarmos e para acolhermos uns aos outros — para a glória de Deus. É nestes momentos que você cria nova coragem, que sente nova alegria e novo ânimo de seguir Jesus. É aí que, em meio às vozes contraditórias do mundo, você vai abrir a boca para louvar a Deus pelo que nos tem feito, ao acolher-nos, em Cristo, e ao tornar-nos capazes de nos acolhermos uns aos outros como Cristo nos acolheu a nós.
Ao fim, uma coisa bem prática, bem concreta, caro ouvinte da palavra: Não haverá uma pessoa definida, que você não aceitou, não acolheu — à qual não dá confiança — talvez vivendo bem perto de você? Será que você entendeu o que poderá e deverá fazer agora? Talvez alguém esteja esperando que você dê o primeiro passo, que diga a primeira palavra! Não o deixe esperar.
Oremos: Deus da paciência e da consolação. Deus do amor. Nós louvamos teu nome por teres criado a comunidade de Jesus na terra. Perdoa a nossa teimosia, a nossa indiferença, a nossa desobediência. Afina os nossos corações para que possamos glorificar-te concordemente e a uma voz! Faze que em nossa comunidade e em nossa igreja cresça a comunhão, o amor e a unidade. Que possamos viver como verdadeiros irmãos. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Veja:
Lindolfo Weingärtner
Lançarei as redes - Sermonário para o lar cristão
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS