Prédica: Romanos 13.1-10
Leituras: Ezequiel 33.7-9 e Mateus 18.15-20
Autor: Paulo A. Daenecke
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 15/09/1996
Proclamar Libertação - Volume XXI
1. Aspectos Gerais — Pano de Fundo
O apóstolo Paulo escreveu a Carta aos Romanos em torno do ano de 57 d.C., 20 anos após a sua opção pela fé cristã. A carta foi escrita em meio aos conflitos com o mundo judaico. Paulo não tinha muitos conhecidos em Roma. Sua visão teológica o fez confiar, lutar e zelar para que a salvação não fosse monopolizada. Ele pregava e vivia uma proposta abrangente de fé, pois a promessa de Deus é universal.
Em toda a história da Igreja a Carta aos Romanos foi um referencial teológico, tendo um papel fundamental sobretudo nos primeiros séculos, em que a grande luta girou em torno do clarear a doutrina. Na Carta aos Romanos Paulo concentra os seus conceitos de fé/doutrina cristã. Sem dúvida, ela exerce ainda hoje importância fundamental no processo evolutivo de uma caminhada de libertação, quando muitos sistemas querem engolir o evangelho e sua proposta de vida.
Evidentemente é preciso ler e estudar as cartas paulinas dentro do seu contexto e da própria experiência pessoal vivida pelo apóstolo. Neste sentido, é interessante lembrar no cap. l a sua apresentação aos desconhecidos cristãos de Roma:
— mostra os títulos, que tem para poder falar (1;5);
— apela para Jesus Cristo, em tom definitivo, como sendo o Senhor do mundo e da história (3;4);
— convoca a seu favor as Escrituras e os profetas (2);
— clareia o sentido de ser apóstolo, revelando sobretudo na ação, porque a fé é uma obediência, uma coisa muito dentro da prática (5);
— já aponta os pagãos como também merecedores da santidade (7);
— não só se apresenta, mas já anuncia o seu assunto (l ;3;5). (C. Mesters, p. 13.)
2. O Texto
Os cristãos em Roma enfrentavam concretamente uma grande perseguição, como se eles fossem os maiores subversivos. Diante do imponente poder opressor do poderoso Império Romano, no entanto, o grupo de cristãos e cristãs era pequeno. Que ameaça ele poderia representar?
Sabemos da vivência do apóstolo Paulo que ele foi um ferrenho lutador contra o sistema, com firme e forte contestação. Evidentemente Paulo não dispunha de um instrumental de análise crítica estrutural e funcional da sociedade, que era vista e aceita de maneira natural. Tanto isso está presente na sua concepção social que, em relação a outros abusos do tempo dele, como a escravatura, a opressão da mulher — que hoje não são aceitos — ele mostra a mesma atitude de aceitar como uma coisa natural (Mesters, p. 54).
Romanos 13 é um passo de criticidade à concepção de autoridade em Paulo.
Ensina a honrar e obedecer ao regime secular instituído, mesmo que não consiga tornar as pessoas justas perante Deus, ao menos para conseguir que os retos tenham paz e proteção exterior, e os maus não possam praticar as maldades livremente, sem medo e incômodo, na maior tranquilidade. Finalmente ele a tudo resume no amor e o encerra no exemplo de Cristo: como ele agiu para conosco, assim também nós devemos agir e segui-lo. (Pelo Evangelho de Cristo, p. 191.)
Mesmo que Paulo conviva com sua visão submissa à autoridade, podemos constatar que ele coloca a autoridade abaixo de Deus e dependente dele (v. 1), levando-se em contra a divinização do imperador exigida do povo. Por outro lado, advoga a existência da autoridade em função do bem. Portanto, ela deve estar a serviço e não exercer poder de dominação (v. 4).
Como entender hoje as posições e concepções de Paulo? Percebe-se na atualidade uma forte crise de valores éticos e morais e de autoridade, governamental ou não. O processo evolutivo de compreensão da sociedade tem gerado profundas transformações no campo relacional da submissão/sujeição para uma visão de libertação. Ainda assim, tem-se necessidade de olhar para o texto de Rm 13, para dentro da sua realidade. Trata-se de um texto de sujeição/submissão? O que há nele de boa nova? Revela adestramento? Como confrontá-lo com a radicalidade de Rm 12? Onde aparecem caminhos de libertação?
É possível perceber e detectar um quadrado ou retângulo na construção do texto, quando se relacionam: obediência, autoridade, amor e bem.
3. Reflexões
A temática da autoridade, obediência, mal e bem sempre vai suscitar movimentos interpretativos favoráveis ou contrários, especialmente em se tratando do estudo e interpretação de Rm 13. Aí vamos saltar até Lutero, quando ele expõe algumas teses em relação à autoridade:
A autoridade é instituída por Deus em seu ministério. Por isso, os cristãos lhe devem obediência. — Como é Deus quem dá autoridade ao governante, devemos obediência incondicional a Deus, mas não ao governante. Nem mesmo o militar cristão deve obediência absoluta ao governante. O limite da obediência está dado pela palavra de Deus: o Evangelho e o Decálogo. — O cristão não obedece cegamente. Ele tem que formar sua opinião própria. — Quando a autoridade o quer forçar a fazer injustiça, tem o compromisso de desobedecer, de resistir com a palavra, de sofrer com a palavra. (Estudos Teológicos, ano 29, n- 1, 1989, p. 79.)
Quero, pois, entender Paulo, apesar de toda a carga servil e de submissão que o texto carrega, em seu conteúdo libertador.
Há que se considerar o contexto da opressão e perseguição e a própria cobrança do culto ao imperador. Simplesmente desobedecer não significaria o fim de tudo? É possível perceber um plano e visão estratégica ocasional, já que os/as cristãos/ãs resistiam ao culto ao imperador, significando isto uma forma de não se sujeitar, o que, sem dúvida, demonstra um grau libertador muito claro?
Romanos 12 dá um sinal muito claro de inconformismo com a realidade (vv. 1-2). É preciso lembrar o aspecto da graça e da liberdade que o apóstolo proclama, p. ex., em Fm 16, quando sugere tratar o escravo como irmão: quebra com a concepção de escravatura. Ou em Gl 5.11: Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo ao jugo de escravidão.
Olhando, no entanto, o significado grego é lembrado que a autoridade é ministro (= diácono, servo, administrador) de Deus para o teu bem (v. 4). Se, de fato, Paulo tem claro esta dimensão, então a sujeição se dá no plano do bem, da justiça.
Os textos das leituras carregam um significado de serviço, de compromisso com a defesa, vigilância, proteção do povo. Nesta globalização só é possível aceitar a posição de Paulo na sujeição ao cumprimento por parte da autoridade em seu caráter de serviço, de bem, e não uma obediência e submissão por resignação.
Nesta reflexão a respeito da insubmissão, consideremos uma palavra no contexto maior da Reforma, de 1539:
Assim como o Evangelho confirma a autoridade, assim também confirma os direitos naturais e legais; e não há dúvida de que cada pai deve, segundo as suas possibilidades, proteger esposa e criança frente ao assassinato público; e aqui não há distinção entre um assassino privado e o imperador, quando faz uso fora de seu ministério de autoridade injusta e especialmente quando faz uso de autoridade injusta pública ou notória, pois violência pública põe fim a todos os compromissos entre súdito e senhor, segundo o direito natural; semelhante c esse caso, quando o senhor quer induzir o súdito à blasfémia ou à idolatria. (Estudos Teológicos, ano 29, na l, 1989, p. 77.)
O grande desafio hoje realmente é a aceitação desta exortação de Paulo para dentro da crise de conceitos que vivemos. Permanece presente a contradição de uso da autoridade que se investe e reveste de autoritarismo; de autoridade que não exerce seu ministério, diaconia na compreensão de serviço e que não correspondem, não satisfazem o compromisso de zelar pelo bem, por uma dinâmica de libertação. Afinal, o Deus que conhecemos na Bíblia é um Deus libertador que destrói os mitos e as alienações. Um Deus que intervém na história, para quebrar as estruturas de injustiça e suscita profetas para assinalar o caminho da justiça e da misericórdia. E o Deus que liberta os escravos (Êxodo), faz cair os impérios e levanta os oprimidos. Todo o clima do evangelho é uma reivindicação contínua pelo direito que têm os pobres de fazer ouvir suas razões económicas às dos mais necessitados. Porventura a primeira pregação de Cristo não é para proclamar a libertação dos oprimidos? (G. Gutiérrez, p. 109.)
O apóstolo tem consciência do cumprimento da lei, de compromissos que fazem parte da responsabilidade social (v. 7). Acima, no entanto, da obediência à autoridade está a primazia da prática do bem, do amor ao próximo, pois quem ama ao próximo tem cumprido a lei (v. 8). Por outro lado, está claro também que quem age em amor corresponde à vontade de Deus, a quem antes importa obedecer (At 5.29). As parteiras obedeceram a Deus acima de tudo e zelaram pela vida (Êx 1).
O/a cristão/ã tem consciência de sua responsabilidade e compromisso com a vida libertada fundamentada na morte e ressurreição de Cristo; assim que o amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o amor (v. 10). Amor que só tem sentido quando se traduz em gestos, em ação libertadora.
Gustavo Gutiérrez ressalta:
Estamos, na América Latina, em pleno processo de fermentação revolucionária. Situação complexa e movediça, que resiste a interpretações esquemáticas e exige contínua revisão das posições adotadas. Seja como for, a insustentável situação de miséria, alienação e espoliação em que vive a imensa maioria da população latino-americana pressiona, com urgência, a encontrar o caminho de uma libertação económica, social e política. Primeiro passo para uma nova sociedade.
4. Caminhos de Pregação
— Considerando o contexto do chamado Dia da Independência, é necessá¬rio avaliar o conceito de autoridade-serviço.
— A autoridade precisa estar a serviço. Ser autoridade não significa ser servido, mas estar consciente de que precisa servir aos outros. Precisa ser exem¬plo no serviço. Só podemos entender a sujeição, conforme o apóstolo Paulo, nesta relação de serviço-diaconia.
— Os exemplos mais claros de autoridade-serviço temos em Deus mesmo, que, no processo ou ato de criação e em Jesus Cristo, doou-se em favor da vida.
— Há tempos vivemos em estado agônico de dependência e subserviência interna e externa às forças opressoras que, pelo poder autoritário, desfazem a liberdade do amor cristão. Não vamos nos esquecer, porém, de que a autoridade de opressão, não de serviço, existe tanto no campo político-econômico-social como no contexto eclesial-comunitário-familiar. Não vamos nos esquecer, também, de que eleição tem a ver com a escolha de autoridade-serviço-amor e bem. Escolher autoridade diacônica é um dever de consciência, um exercício de cidadania e um sinal de libertação.
— Martinho Lutero obteve da Bíblia a certeza de que a pessoa deve obediência unicamente a Deus, que Deus liberta as pessoas para servirem às outras em amor. A partir disso defendeu: O cristão é um senhor livre de todas as coisas e não está sujeito a ninguém — na fé. Um cristão é um servidor de todas as coisas e sujeito a todos — no amor. (Da Liberdade Cristã.)
5. Bibliografia
DREHER, Martin N. A Autoridade Secular; a Visão de Lutero. Estudos Teológicos, São Leopoldo, 2P(l):67-86, 1989.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1976.
LUTERO, Martinho. Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos. In: Pelo Evangelho de Cristo. São Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 1984. pp. 179-192.
MESTERS, Carlos. Carta aos Romanos. São Paulo, Paulinas, 1983.