Sobre Belo Horizonte, a tarde cai imprecisa, cinza, nervosa e barulhenta como sempre. Ele, boné qualquer de propaganda, camisa escolar puída na gola e nas mangas, um jeans bem surrado, caminha decidida e dignamente. Uma velha bota preta, solado solto, torna seu caminhar engraçado, chapliniante! Nas mãos leva dois toquinhos de madeira e algo como um cabo de vassoura, caprichosamente emborrachado. Nas pontas, a borracha forma um tipo de rabiola. Ele não tem nome: um menino qualquer entre outros milhões.
Pára solenemente junto ao sinal de trânsito, na confluência das ruas Cláudio Manoel, Getúlio Vargas e Afonso Pena. O sinal fecha. Destemido, ele avança e se posta diante das agressivas filas de carros. Sem demora, faz uma breve reverência e inicia seu número, mantendo o cabo de vassoura emborrachado no ar com os dois toquinhos de madeira. Ele faz o cabo emborrachado girar, jogando-o para cima e aparando-o novamente com destreza. Com habilidade, repete esse movimento com uma das mãos passando por baixo da perna esquerda e, em seguida, por baixo da perna direita.
De repente, o cabo emborrachado cai. Imperturbável, ele apanha o cabo e recomeça. Faz novas evoluções e, para o grande final, atira o emborrachado bem alto e - momento crítico - apanha-o com uma das mãos. Vitorioso, curva-se solenemente para os carros, tira o boné e começa a andar por entre as filas, recolhendo uma moeda aqui e outra, acolá. Antes que o sinal abra, retorna rapidamente para a calçada até que o sinal feche novamente.
Confesso que, a primeira vez que os vi, assustei-me. Perguntas: Artes circenses na rua? Há um circo na cidade? É propaganda? E vieram outros... e outros... e outras. A cidade converteu-se num enorme circo. Hoje, indiferente, transito inconsciente e impassível pelos picadeiros urbanos desse grande circo, espalhado pelos cruzamentos da cidade. No início, eram alguns e poucos! Agora, são muitos... milhares (milhões, não sei!). Eram inicialmente algo mais profissionais. Agora, qualquer tiquinho de gente, que mal ainda consegue se equilibrar sobre as pernas, esforça-se por equilibrar coisas pelas esquinas. Pelos sinais abertos, vejo-os pelos cantos das calçadas, intercambiando esse konw-how circense.
Na verdade, há uma diversidade impressionante dessas artes: engolidores de fogo, equilibristas, malabaristas, músicos, vendedores, somados a um assombroso número de pedintes (a arte dramática e hiper-realista dos aleijados, dos doentes, dos maltratados, dos maltrapilhos, dos excluídos), etc. São saltimbancos de ocasião. Eu, na platéia, não acho graça de nada. Começo a me sentir o palhaço. Subitamente, transido de espanto, assalta-me a pergunta: quem será o dono desse circo? Como eu cheguei aqui? Na verdade, como chegamos aqui? Quanto custou o bilhete para esse espetáculo deprimente? Como eu saio daqui? Como sairemos daqui? E se, repentinamente, houver um quebra-quebra, uma revolta dos artistas-mirins insatisfeitos com as péssimas condições de trabalho? Não, não há nem sinal de raiva! Tudo acalma! Tudo é calma! Tudo transcorre em paz, mas, no fundo, sente-se em todos a respiração presa como quando o trapezista se prepara para um salto mortal (duplo, triplo...??)
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde esta gente vem.
(Chico Buarque, Brejo da Cruz. 1984)
De onde essa gente vem? Para onde essa gente vai? Pelos cruzamentos, picadeiros onipresentes, assumem formas mil (Idem). Vidas irremediavelmente perdidas?
Já nem se lembram
Que eram crianças
E que comiam luz. (Idem)
Aprendem artes novas, truques novos para entreter uma platéia fria e dispersa. Reinventam a brincadeira: se esta rua, se esta rua fosse minha (...)! Sem casa e quintal, reconquistam a rua como o lugar da diversão. Querem brincar: direito fundamental de toda criança! Transformam os cruzamentos em playgrounds públicos, democráticos e, assim, do lúdico para o trágico, tentam burlar a injusta partilha dos bens nesses picadeiros surrealistas. Atiramos moedas!
E brincam... brincam de ganhar a vida, pois toda outra brincadeira foi interditada, subtraída, interrompida. É a arte por contingência, pois a vida é mais forte que a morte. A vida é mais forte que a arte. Mas, quem sabe, a arte, essa arte, transforme e transcenda a vida, essa miséria de vida. Quem sabe? Não sei! Não sei! Não sei se é um truque banal/ Se um invisível cordão/ Sustenta a vida real.(...)/ Não sei se é uma nova ilusão/ Se após o salto mortal, há uma possível redenção. Não sei se é vida real/ Um invisível cordão/ Após o salto mortal. (Edu Lobo - Chico Buarque, O Circo Místico, 1982.). Não sei! ´Hoje tem marmelada? Tem, sim Senhor! Hoje tem goiabada? Tem, sim Senhor! E o palhaço, o que é? (...). Respeitável público... hoje temos o prazer de apresentar... o espetáculo da vida!´.
P. Dr. Valério Guilherme Schaper