Reforma de ótica para uma nova ética - Ensaio de uma lógica do cuidado

18/10/2002

Reforma de ótica para uma nova ética
Ensaio de uma lógica do cuidado

 

a escuta é sagrada
(Adélia Prado)

Vivemos um momento difícil e, ao mesmo tempo, um dos mais bonitos - não mais estrada asfaltada, mas a necessidade de abrir trilhas. Esta realidade nova exige de todos nós irmos além das aparências e atingirmos a essência, adquirindo posturas novas: ver o invisível, escutar o silêncio, adivinhar a angústia e sondar o mistério, no dizer de D. Helder. Necessitamos urgentemente de homens do Espírito que percebem que tudo está impregnado do Espírito de Jesus Ressuscitado, como Teilhard de Chardin que tomava a pedra na mão e dizia: Aqui existe espírito inanimado!, e tinha a sensibilidade de perceber que o espírito dorme na pedra, sonha na flor, acorda no animal e sabe que está acordado naquele que é dono de um rosto e um coração.

Para que isto possa acontecer em nossas vidas, é urgente tomar consciência de que somos seres de cuidado e que esta realidade é inerente ao ser humano, não é apenas um atributo ou uma virtude, mas uma realidade intrínseca. Por essa razão, todo descuido deveria nos deixar indignados: um casal de idosos procurando o que comer numa lata de lixo, uma criança que morre no corredor de um hospital por falta de atendimento, o traficante que induz o adolescente à droga, o pré-conceito aos povos indígenas, o descaso diante da corrupção... são realidades que tocam não somente nosso raciocínio, mas mexem com as entranhas, o coração (interioridade).

Cuidar é dar atenção com ternura, isto é, descentrarmos de nós mesmos e sairmos em direção ao outro, participando da sua existência.

Cuidar é sentir a realidade por dentro (inteligere); é captar o sentido, que acolhe a aventura da fé com fidelidade criativa, deixando-se modelar pelo Espírito de Deus; entrar em sintonia com a realidade, percebendo que há setas indicando o caminho (Jr 31, 17ss) e avançando com audaciosa intuição. 

O cuidado exige generosa gratuidade, como a rosa que exala o seu perfume e não pergunta se quem a recebe merece ou não; como a árvore de sândalo que, após ser tombada pelo lenhador, deixa o seu perfume na lâmina do machado. 

Cuidar é sentir o coração secreto das coisas, é verdadeiramente escutar, é ir além das palavras, é ter um olhar desarmado, eliminando todo preconceito.

Cuidar é uma atitude kenótica, porque exige o esvaziamento de nós mesmos para deixar o mistério da miséria do outro, que também trago em mim, encontrar abrigo no coração. 

O cuidado produz o encantamento, o único remédio contra o tédio e não existe contra-indicação, é a pomada contra o cinismo e a apatia, duas feridas profundas do nosso tempo.

Se assumirmos este jeito, reformaremos a nossa lógica, colocando limite a toda voracidade neurótica de ter e poder: acontecerá a peregrinação da lógica da conquista para a lógica da gratuidade; da intervenção para a interação-comunhão; da exploração para a sintonia-cordialidade; do poder-produção para a atenção-respeito-acolhimento(agasalhamento) e assim estaremos mais inteiros e não mais iremos conquistar a montanha, mas nos deixaremos conquistar por ela. Não mais correremos desesperados atrás da borboleta, mas daqui a pouco, ela pousará no nosso ombro; não mais apressaremos o rio, pois saberemos que ele corre sozinho; não mais im-poremos nem pos-poremos a verdade, mas a pro-poremos. Não seremos apenas transmissores de uma doutrina, mas nos tornaremos irradiadores de uma PESSOA, como alguém já dizia: ...precisamos muito mais de testemunhas do que mestres e se buscamos os mestres, é porque são testemunhas.

É importante percebermos que cuidado e trabalho não se opõem, mas se complementam. E esta parceria arrancará de nós a sensação de sermos fazedores de coisas e iremos perceber que a nossa vida terá mais sabor, cor, tonalidade, ritmo; perceberemos que verdadeiramente o agir segue o ser, pois evangelizar é, antes de tudo, ser.

A lógica do cuidado nos dará a capacidade de exercer a paternidade espiritual. Esta tarefa é assustadora, pois traz duas solidões: a primeira pelo fato de sermos humanos e a outra, mais profunda, que é própria do nosso ministério cristão, causa um certo vazio que nos assusta. Esta forma de gerar é doída porque temos de nos abrir, mesmo experimentando a dor, e a nossa tendência diante da dor é o fechamento. A paternidade espiritual na lógica do cuidado e do pastoreio é: não mais esperar que venham ao nosso encontro, mas ir ao encontro dos outros, não mais esperar que tenham compaixão de nós, mas ter compaixão dos irmãos, ter a coragem de arrancar toda autocomplacência (provavelmente uma das maiores inimigas da nossa vida espiritual) e se tornar adulto e responsável pela própria vida. Esta realidade não poderá ser retórica, nem burocrática, senão corremos o risco de perdermos a noção do mistério.

A lógica do cuidado pede de nós não mais autoridade de poder, mas autoridade de misericórdia e aí então seremos felizes por perceber que o Lava-Pés se tornará para nós algo não somente teatral, mas se tornará um jeito de estar no mundo.


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Pe. Aloísio Vitral


Bibliografia:

Nouwen, Henri J. M. A volta do filho pródigo. Paulinas 1997
Boff, Leonardo. Saber Cuidar. Vozes
Frankl, Viktor Um Sentido para a vida. Santuário, 1989
Caliman, Cleto. A Sedução do Sagrado. Vozes, 1998
Grun, Anselm. O céu começa em você. Vozes, 1998
Leloup, Jean-Yves. Cuidar do Ser. Vozes
Moltmann, Jurgen. O Espírito da Vida. Vozes, 1998

  


Autor(a): Pe. Aloísio Vitral
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Natureza do Texto: Artigo
ID: 21015
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