RADICALIZAR A REFORMA
Provocações a partir da Bíblia e da crise global
94 Teses
Mais de 40 cientistas de todos os continentes trabalharam no tema a fim de, a partir da Bíblia, compreender o significado dos 500 anos de jubileu da Reforma em 2017 para a atual crise que ameaça a vida da humanidade e da terra. Este grupo editou cinco volumes com os resultados de suas pesquisas na Editora Lit, tendo resumido os resultados em 94 teses. A seguir apresentamos a versão completa dessas teses.
“Proclamai liberdade na terra” (Levítico 25.10)
Martim Lutero iniciou suas 95 teses de 1517 com a exigência de Jesus de dar meia volta: “Tomem outro rumo, o mundo justo de Deus está próximo”. Quinhentos anos mais tarde, vivemos num tempo que, de modo análogo ao “Ano do Jubileu” (Levítico 25), nos alerta a alterar a direção e a uma mudança no sentido de condições de vida mais justas. Hoje, não dizemos isso em oposição à Igreja Católica Romana e aos muitos movimentos de libertação nela enraizados, mas sim em oposição às estruturas do império que atualmente predominam. Só quando ouvirmos a palavra da cruz (1 Coríntios 1.18) e os gemidos da criação maltratada (Romanos 8.22), só quando abrirmos os nossos ouvidos para o clamor das vítimas na parte de baixo de nossa (des)ordem mundial hipercapitalista, o jubileu da Reforma pode tornar-se – de fato – um “Ano de Jubileu” verdadeiramente libertador. A autojustificação cristã que apoia esse sistema está em oposição à justificação mediante a fé da Reforma. Justificação só pode ser vivida em solidariedade abrangente.
Somos teólogas e teólogos – predominantemente luteranos, mas também reformados, menonitas, anglicanos e metodistas – que se reuniram em torno de um projeto ainda em andamento para refletir de maneira nova sobre as raízes bíblicas e os atuais desafios do pensamento reformador. A destruição desenfreada da vida humana e não-humana em um mundo governado pela ditadura totalitária do dinheiro e da ganância, do mercado e da exploração, exige um retorno radical do pensamento e da ação à orientação bíblica, como também aconteceu no início da Reforma. O sistema econômico predominante, apoiado por aparelhos políticos imperiais de poder, está operando a liquidação da terra, das pessoas humanas e do futuro de nossas crianças. Tanto nossas igrejas e comunidades, como também pessoas cristãs em muitos lugares, se acomodaram no status quo social e perderam sua força profética e crítica de protesto, de resistência e de transformação. A justiça de Deus por graça está separada da justiça social e, como o “sal insípido”, não tem mais uso (Mateus 5.13). A teologia da Reforma enveredou por desvios, dos quais temos que retornar – com Lutero, mas também contra Lutero. Também hoje, a Reforma pode tornar-se novamente um kairós, um tempo oportuno de transformação.
As seguintes teses refletem diferentes contextos geográficos e políticos, como também um largo espectro de tradições da Reforma. Para fundamentá-las, estamos publicando os resultados de nossas pesquisas em cinco volumes. Não estávamos de acordo em todos os pontos. Entretanto, precisamente nessa polifonia e multiplicidade de formas, queremos juntos convocar para o debate e o posicionamento diante desses problemas – e para a mudança de rumo, a mudança da ideologia predominante (metanoia). A atual crise, com a qual estamos confrontados em todas as esferas da vida até os últimos recantos de nossa terra, é uma chance de olhar para dentro e dar-se conta das forças bárbaras e autodestrutivas que estão predominando, além de comportar o germe de esperança por um novo começo e uma nova cultura da vida.
“Para a liberdade é que o Messias/Cristo nos libertou” (Gálatas 5.1)
1. Do ponto de vista bíblico, a primeira e fundamental ação de Deus é a libertação. Também a libertação messiânica no Novo Testamento está articulada conforme o modelo do Êxodo. Para Paulo, na Carta aos Romanos, trata-se do fato de que Cristo trouxe libertação do “predomínio aterrorizante do pecado” no contexto do Império Romano (Romanos 5.12-8.2). Se, porém, a justificação não for compreendida no modelo-Êxodo, mas sim, reduzida à culpa (original) e perdão, como é largamente difundido, na linha de Agostinho e Anselmo de Canterbury, isso significa um estreitamento problemático com relevantes perdas diante da riqueza social e política da Bíblia.
2. Paulo analisa o poder do pecado que mantém cativas todas as pessoas no Império Romano. As declarações centrais sobre o pecado (hamartia) têm todas um denominador comum: elas são pensadas dentro de relações de dominação (só raramente em categorias de culpa e da ação pecaminosa individual). Quando Paulo fala de pecado, ele pensa, sobretudo, em seu abrangente predomínio aterrorizante. Sua concepção central é: o pecado domina todas as pessoas como escravas e, assim, transforma-as em colaboradoras do sistema imperial.
3. Paulo fala do início de uma mudança abrangente de governo. Sua esperança dirige-se à intervenção definitiva de Deus, que, em sua compreensão, já começou com a ressurreição de Jesus. Paulo não persegue objetivos políticos. Contudo, a fé no governo de Cristo e a esperança pela mudança definitiva de governo têm, sim, consequências políticas profundas. O que aqui se crê é que só Cristo é o Senhor (kyrios), que sua libertação alcança todo o mundo, todas as pessoas e as pessoas como um todo.
4. A fé conduz as pessoas crentes a procurarem viver – já agora – muito concretamente como pessoas libertadas em sua vida comunitária e em sua vida com as outras pessoas. A comunhão das pessoas que creem compreende-se como início de uma nova vida para todas as pessoas. Essa referência à libertação de uma realidade de vida totalitária concreta como no Império Romano, faz mais sentido para pessoas que vivem sob o domínio dos mercados financeiros e de violência, do que a tradicional generalização do pecado como pecado original.
“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mateus 6.24)
5. Pelo menos dois bilhões de pessoas estão empobrecidas sob o predomínio do dinheiro. Este predomínio do dinheiro é, hoje, a expressão do “Mammon” e, com isso, torna-se o desafio central da fé. Entrementes, dinheiro não é simplesmente o dinheiro vivo impresso pelos bancos centrais que está no bolso da gente; é que bancos comerciais, através de créditos, têm o direito de criar mais e mais dinheiro através de empréstimos, sobre o qual cobram altos juros. Já Lutero chama Mammon de o Deus mais comum na terra (Catecismo Maior, ref. ao 1º Mandamento).
6. Esse predomínio do dinheiro e a resistência teológica contra ele desenvolvem-se historicamente com a ampliação da economia baseada em dinheiro e propriedade privada – desde a monetarização da vida econômica, no tempo dos profetas, passando pelo capitalismo comercial e usurário, do tempo de Lutero, até ao moderno capitalismo industrial e financeiro. O capitalismo da modernidade, entrementes globalizado, desde o tempo da Reforma, está ligado diretamente à exploração, à colonização e ao genocídio europeu na África, Ásia e nas Américas.
7. “A terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha, e vós sois para mim estrangeiros e peregrinos” (Levítico 25.23). Portanto, propriedade e bens estão pensados somente para serem usados, para viver. Em contraposição a isso, o capitalismo torna a propriedade privada absoluta e, por isso, começa a cercar a terra de uso comum com todos os seus recursos. Isso continua hoje, entre outros desdobramentos, na privatização (patenteamento) dos bens genéticos comuns da humanidade, da terra, da água, do ar e assim por diante.
8. O individualismo antigo e moderno começa com a entrada do dinheiro e da propriedade privada na vida cotidiana. Para a maioria das pessoas no mundo capitalista globalizado o individualismo é natural. Para Lutero não existe o ser humano como indivíduo neutro, observador e calculista. Ou uma pessoa é determinada por Deus – e então essa pessoa vive de modo compassivo e justo a partir das outras pessoas, a saber, das “mais pequeninas” (Mateus 25.31ss), em primeiro lugar; ou a pessoa está determinada pelo poder do pecado – e então, essa pessoa vive encurvada sobre si mesma, tendo sua referência apenas em si, destruindo as outras criaturas.
9. A economia acionada pela acumulação de capital obriga ao crescimento ilimitado. Esse crescimento ameaça toda a vida em nosso planeta. As pessoas humanas foram criadas por Deus com a tarefa de “cultivar e guardar o jardim” (Gênesis 2.15). Lutero, no início de suas 95 teses, cita o chamado de Jesus à mudança de rumo: “Quando o nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, diz: ‘Mudai de ideia’, e assim por diante, (Mateus 4.17), ele queria que toda a vida das pessoas de fé fosse uma mudança de rumo”. Isso significa para hoje, que saiamos diária, pessoal e socialmente do predomínio destrutivo do dinheiro, para que – em confiança na justiça libertadora de Deus – vivamos de maneira compassiva e solidária em relações justas com as outras pessoas e criaturas.
10. Segundo a Escritura, nós, pessoas humanas pertencemos a um corpo com muitos membros que servem uns aos outros (1 Coríntios 12). Conforme a lógica capitalista, porém, a nossa humanidade consiste em concorrência e competição. De acordo com Lutero, somos criados como cooperadoras e colaboradores de Deus, pessoas mantidas e renovadas, para nos engajarmos cooperativamente por justiça e paz na economia, na política e na igreja (Sobre a vontade cativa). Com isso, Lutero é aquele que - depois de incipientes tentativas nos movimentos medievais de empobrecidos, dos Valdenses, de Wyclif e Hus - com base bíblica, questiona fundamentalmente a civilização egocêntrica e calculista do dinheiro que vem surgindo, desde o século 8 de nosso tempo.
11. A individualização econômica reflete-se no campo religioso como individualização da salvação. A Bíblia e Lutero, no entanto, falam de pessoas libertadas em relações justas. Desde a Idade Média, existem correntes espiritualizantes que ainda são fortes em nossas igrejas. Qualquer leitura e pregação puramente individualista de textos bíblicos apoia, consciente ou inconscientemente, a civilização capitalista moderna.
12. Segundo a tradição de Jesus, é justa aquela pessoa que perdoa dívidas, portanto, quem infringe a lei do reembolso da dívida por amor à vida das pessoas endividadas (Mateus 6.12). Conforme o apóstolo Paulo, o poder do pecado (em seu tempo, corporificado no pecado estrutural da economia romana, fundamentada na ganância e no poder imperial totalitário) torna a lei um instrumento da morte (Romanos 7.7ss). Ele enxerga a alternativa na construção de comunidades solidárias de judeus e gregos, no espírito do Messias crucificado pelo Império. Ele reconcilia com Deus e umas com as outras, as pessoas que Roma transformara em inimigas.
13. A maioria dos Pais da Igreja interpreta a morte de Jesus na cruz como pagamento de um resgate ilegítimo que o diabo exige pela libertação das pessoas humanas, porque ele jamais perdoa dívidas. Cristo desmascara isto e nos liberta. Anselmo de Canterbury (1033-1109) inverte esse enfoque em sua doutrina da satisfação. Segundo ele, a lei do pagamento de dívidas está acima de Deus. Por isso, Deus tem de sacrificar o seu Filho para ganhar um saldo positivo, um crédito, um armazém de méritos, a que as pessoas podem recorrer, para pagar as suas dívidas impagáveis perante Deus. Com esta interpretação Anselmo não apenas estabelece o fundamento para a práxis medieval da penitência através do negócio de dívidas – com cuja rejeição por Lutero inicia a Reforma – mas também cria a base para o capitalismo que coloca a lei do pagamento de dívidas como absoluta no contexto do mercado.
14. Lutero retorna à verdade bíblica, de que Deus perdoa dívidas gratuitamente e que desse perdão nasce e cresce a solidariedade com as pessoas próximas. Concretamente, se alguém está em necessidade, as pessoas cristãs reagem doando, emprestando sem juros, presenteando. Também as autoridades devem intervir no mercado, quando o bem comum estiver ameaçado. A modernidade capitalista, contudo – e em seu auge, o neoliberalismo – coloca o mercado como absoluto e a intervenção do Estado só é empregada em favor da acumulação de capital. A isso as comunidades eclesiais têm de resistir, se quiserem seguir Jesus com base na Bíblia e na Reforma.
15. O Espírito de Deus confirma a diversidade cultural e linguística, segundo a história de Pentecostes (Atos dos Apóstolos 2). No cristianismo ocidental, desde o século 4, a Bíblia foi lida só em latim. Wyclif e os reformadores posteriores redescobrem a diversidade no fato de levar a Escritura aos povos em suas próprias línguas. O capitalismo neoliberal obriga novamente à uniformização: pessoas tornam-se indivíduos consumidores, agricultura é transformada em agronegócio, o comércio regional de bens tem de ceder espaço para redes transnacionais e a produção regional dá lugar à monocultura de exportação.
16. A Bíblia fundamenta uma “Economia da Suficiência” para todas as pessoas através da partilha dos bens comuns presenteados (Êxodo 16). Todos os Reformadores concordam com a orientação da economia no bem comum e nas necessidades concretas das pessoas próximas. Nesse aspecto, Lutero desenvolve uma interpretação da cruz, que define a humanidade a partir da margem – das pessoas empobrecidas, fracas e sofredoras. Hoje, não estamos convocando para uma restauração do “socialismo real” que apresentou algumas consequências destrutivas semelhantes às do capitalismo. Trata-se, muito mais, de uma economia transmoderna que se constrói sobre as dádivas de Deus, os bens comuns, dirigindo a produção e distribuição de todos os bens e serviços para o suprimento das necessidades primárias, e isso de maneira pública, democrática e ecológica.
17. A Sagrada Escritura confirma que todas as pessoas humanas foram criadas como homem e mulher à semelhança de Deus e, por isso, com igual dignidade (Gênesis 1.26-28). O livro dos Juízes e outros textos da Torá mostram que esse enfoque foi traduzido em formas de uma sociedade solidária. Essa tradição também foi recebida no cristianismo primitivo (Atos dos Apóstolos 2 e 4). Vozes da Reforma radical reportam-se a esses textos e procuram viver uma democracia econômica e não apenas política.
18. A doutrina luterana da justificação por graça mediante a fé somente em Cristo (Romanos 5.1) é uma interpretação legítima e libertadora da Escritura em meio às opressões da piedade medieval tardia e contra a incipiente economia do dinheiro, construída em cima da usura de juros. Perdão dos pecados (e das dívidas) de graça, libertação do poder diabólico e a promessa de vida constante nesse contexto não significava apenas liberdade espiritual, mas sim libertação para a reconciliação com e a responsabilização pelos demais seres humanos (Da Liberdade Cristã).
19. Embora a justificação por graça também para Lutero expresse a igualdade das pessoas humanas diante de Deus, sua Reforma falhou em concretizar esta redescoberta na esfera social e econômica. Assim, o luteranismo posterior pôde chegar ao ponto de transformar a desigualdade social e econômica até mesmo numa ordem dada por Deus. Isso culmina na tese de que o mercado ou o Estado são autônomos, o que é criticado diretamente tanto pela Bíblia como também por Lutero.
20. Pela Escritura, as pessoas são julgadas segundo a graça e não segundo sua operosidade, seus esforços ou méritos (Mateus 20). Ao mito do mérito é necessário contrapor o princípio da necessidade que representa a exata correspondência à justiça da fé. A consequência ético-social daí derivada é uma crítica do atual mundo do trabalho, dominado por essa ideologia meritocrata e suas consequências sociais e psicológicas negativas.
21. A doutrina luterana dos Dois Reinos e Regimentos, ao longo de sua posterior história, foi abusada em grande medida para justificar o quietismo e a obediência passiva dos subalternos (conforme certa interpretação de Romanos 13.1). Por isso, ela tem de ser interpretada de maneira nova, como convocação para a vigilância política e para o engajamento das pessoas cristãs, para que assumam a sua responsabilidade pública para com os “próximos”, empenhando-se pela justiça, pela paz e pela libertação da criação.
22. “Não se conformem às estruturas dessa ordem mundial...” (Romanos 12.2). Em vista de seus efeitos sobre a gente simples de seu tempo, Lutero diz um claro “não” à estrutura e aos modos de agir das sociedades bancárias e comerciais: “Se as sociedades tiverem de permanecer, então o direito e a honestidade têm de perecer. Se o direito e a honradez tiverem de permanecer, então as sociedades têm de perecer” (WA 15,312). Visto que, hoje, a tripla obrigação ao crescimento econômico, à multiplicação do dinheiro e à privatização está empurrando o nosso planeta para a morte, não são mitigações ou compensações sociais que, em última análise, ajudam, mas sim, apenas uma superação de longo prazo do sistema neoliberal capitalista. Em especial, é necessária e possível uma nova ordem para o dinheiro e a propriedade, que se oriente no bem comum e que é responsabilizada pública e democraticamente.
23. “Bem-aventuradas são aquelas pessoas que têm fome e sede de justiça, pois serão saciadas” (Mateus 5). Isso pode começar concretamente no âmbito local e regional. Aqui também as igrejas e as comunidades cristãs têm grandes possibilidades, por exemplo, ao contribuir no abastecimento de energia alternativa, comunitária e descentralizada. Em âmbito maior, as igrejas podem juntar-se a movimentos sociais, para, passo por passo, apoiar mudanças institucionais. “Se confiarmos nos políticos, alcançaremos de menos e tarde demais. Se tentarmos sozinhos, alcançaremos muito pouco. Se, porém, cooperarmos, pode ser o bastante e isso no tempo oportuno” (Transition Town Movement).
“Dar testemunho a respeito da crucificação [...] faz com que o poder de Deus se torne realidade” (1 Coríntios 1.18).
24. Desde a Idade Média (Anselmo de Canterbury), em muitas igrejas e em sua pregação, a morte de Jesus na cruz é compreendida como sacrifício do Filho de Deus, que opera a necessária expiação para os nossos pecados. Essa interpretação faz de Deus um governante sádico e infligidor de sofrimento. Isso é um equívoco teológico. Deus liberta da violência, não através de violência.
25. A cruz era o instrumento de execução do Império Romano, em especial para rebeldes e escravos fugidos. Milhares de pessoas inocentes se tornaram vítimas de sua demonstração de poder. A figura do crucificado com uma máscara de gás ou de uma mulher crucificada e a representação de um camponês crucificado nos lembram que, até hoje, muitas pessoas são vitimadas de diversas maneiras pelos poderes dominantes e que o Jesus crucificado está profundamente ligado com todas elas.
26. Segundo tradições bíblicas, o martírio dos justos opera perdão para os pecados do povo (4º Macabeus 17.21s) e a morte inocente do servo de Deus torna justas muitas pessoas (Isaías 53.11s). Isso atribui dimensões completamente novas à morte na cruz.
27. O encontro com o Jesus ressurreto joga uma luz completamente nova sobre a cruz (Lucas 24) – é a luz de Deus “que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (Romanos 4.17).
28. A partir da ressurreição, Jesus está de tal forma inscrito nas antigas orações de súplica de pessoas traumatizadas (“Deus meu, por que me abandonaste?” – Salmo 22.2; Marcos 16.34) e sua esperança abrangente (“Os pobres vão comer e saciar-se” – Salmo 22.26), que também nós estamos incluídos.
29. Uma teologia da cruz pode superar a antiga e escandalosa confusão de imagens entre cruz e cruzada na história do colonialismo. Assim, a teologia da cruz pode ser reinterpretada como uma teologia da vida (da ressurreição) – à luz da solidariedade de Deus com o povo oprimido (minjung), da justiça econômica para todas as pessoas e da integridade do tecido da vida.
30. Nesse sentido, a ressurreição demonstra a morte de cruz como o juízo sobre os poderes da violência, como o cumprimento mais radical da solidariedade incondicional de Deus com todas as criaturas que sofrem e como expressão da fidelidade e justiça de Deus para com o seu povo, todos os povos e sua criação.
31. Fé no sentido bíblico é mudança de rumo. Sobre esse chamado de Jesus ao arrependimento, Lutero declara o seguinte: “Não se trata apenas de um arrependimento interior, aliás, um arrependimento desse tipo, na verdade, nem seria arrependimento, se ele não se efetivar em numerosas obras para mortificar a carne” (i.e., do agir egocêntrico, 95 teses, tese 3). Por um lado, somos desafiados a entrar num processo de verdade e reconciliação com vistas aos equívocos da Reforma. Por outro, permitindo que a justiça de Deus tenha validade incondicional para nós, podemos nos incorporar nessa história de libertação para fazer o que é justo. “Apenas a pessoa de fé é obediente, e apenas a pessoa obediente tem fé” (D. Bonhoeffer).
32. A teologia da justificação de Lutero tem de ser ampliada e renovada nos distintos tempos e lugares, em especial à luz do conceito de Lutero a respeito do Evangelho, como a voz viva de Deus. A doutrina da Reforma a respeito da justificação tem de romper o encapsulamento ocidental do individualismo possessivo e do quietismo político, libertando as pessoas de tudo aquilo que as subjuga a ídolos: privilégios segundo a espécie e o gênero, segundo a etnia, a religião, a nacionalidade e a classe. A justificação por graça e fé tem de ser redescoberta como expressão da profunda compaixão de Deus por todas as pessoas na morte de Jesus. Desta forma, se fortalece a nossa responsabilidade pública pela justiça política e econômica e pelo reconhecimento “dos outros”.
“Vejam, algo novo veio ao mundo” (2 Coríntios 5.17)
33. O Evangelho cristão, de fato, trata da reconciliação entre Deus e a humanidade, e das pessoas entre si. Contudo, se o Evangelho não conseguir reconciliar toda a criação, então não é Evangelho, boa nova (2 Coríntios 5.18).
34. O reconhecimento da Reforma, de que somos salvos através da confiança na graça de Deus, deveria incluir o reconhecimento, de que Deus está presente em toda a criação e ouve o seu clamor (Romanos 8.18-23).
35. Certamente, foi um avanço no século 16, quando os Reformadores criticaram as formas externas e materiais do Culto (Serviço de Deus). Entretanto, alguns foram muito longe em descartar todo e qualquer conceito de sacramentalidade, quando se livraram de toda a cultura material, eliminando todas as imagens das igrejas. Nessa atitude, desconsideraram que toda a vida está permeada de Deus e que o mundo, como um todo, constitui uma realidade sacramental.
36. O reconhecimento da Reforma, de que somos salvos por graça mediante a fé, também deveria reforçar a presença graciosa de Deus em toda a criação. A comunhão de Deus com o mundo em Jesus Cristo significa que também nós somos convocados para dentro da comunhão com o mundo; concretiza-se assim uma fé imanente, quando tomamos parte na missão de Deus para a renovação da criação.
37. Atualmente a mãe terra está sendo crucificada e precisa experimentar ressurreição (Romanos 8.18-23). Isso é de uma importância central para nós, pessoas humanas, animais, plantas, ar, água e solo. Nós somos pessoas humanas, não porque consumimos, mas porque vivemos em conjunto com a criação e porque temos que assegurar o seu bem-estar e o nosso.
38. “O Evangelho a toda a criatura” (Marcos, 16.15, segundo a tradução de Lutero), a boa nova de Deus para toda a criação e os mandamentos de Deus (Salmo 119) são abortados quando as pessoas humanas, criadas à imagem e semelhança de Deus, destroem essa ordem através de injustiça (Romanos 1.18-20).
39. O Evangelho nos desafia a cuidar da criação como do jardim de Deus. Isso exige tanto uma decisão pessoal clara, como também uma política econômica nova, social e ecológica para o bem-estar de toda a criação e de todos os povos sobre o globo terrestre.
40. “Vida em abundância” (João 10.10): essa palavra de Jesus rompe com os conceitos convencionais de desenvolvimento econômico: dirige-se de modo central para a relação com a criação, sendo que é nela que a comunhão humana deve se orientar. “Vida em abundância” não se direciona a ter mais, acumular e crescer indefinidamente, mas sim objetiva o equilíbrio em todas as relações.
41. Todas as pessoas humanas e a totalidade da criação têm direito e necessidade de “pão e rosas”. Pessoas humanas e natureza têm fome de pão e de beleza. Proclamar o direito à vida em abundância para toda a criação e lutar por isso é uma tarefa incompleta da teologia da Reforma.
42. A terra dá vida a todas as criaturas (Gênesis 1.24). O que a natureza gera é uma dádiva de Deus, da qual temos que cuidar. Isso é expressão de nossa gratidão e de nossa vocação como pessoas humanas de Deus (Salmo 104).
43. Vida em abundância não significa consumismo, mas sim solidariedade com toda a natureza. As pessoas humanas e a indústria humana não são o objetivo final da criação: o auge na criação de Deus objetiva que venhamos a nos aquietar em adoração e nas relações mútuas. (Gênesis 2.2).
44. O Evangelho nos chama a guardar e renovar a criação como jardim de Deus (Isaías 65.17; 2 Pedro 3.13), adotando um estilo de vida pessoal modesto, cooperando com outras pessoas de diferentes culturas e religiões, afim de realizar uma política promotora de vida na economia, na convivência social e no meio-ambiente.
45. O significado de “Criação” está estreitamente vinculado com a vida das futuras gerações. As teologias, até agora, estiveram consistentemente determinadas pela personalidade de pessoas adultas e não da personalidade de crianças. Todavia, trata-se sempre de pessoas humanas na história de Deus. Isso também vale para crianças e, por isso, deve ser levado a sério com vistas a seu futuro ameaçado.
46. Os direitos das crianças protegem essas mesmas crianças de vulnerabilidade, de opressão e exploração. Ao mesmo tempo, porém, é importante valorizar as crianças com tudo o que elas são e podem, e com tudo o que elas não podem e não são. Nesse sentido e por causa de seu futuro, elas devem ser libertadas de sua condição de objetos e tornar-se sujeitos, protagonistas.
“Felizes as pessoas que praticam a paz”... (Mateus 5.9)
47. É necessário ouvir o grito das vítimas, o grito daquelas pessoas que sofreram violência – aqui, em especial, o grito das vítimas nas escaramuças violentas em torno da Reforma: o grito dos camponeses, dos Batistas (Menonitas), de Judeus e Muçulmanos. É necessário ouvir o grito daquelas pessoas que hoje sofrem violência, o grito das vítimas de violência doméstica, de exploração econômica, de infração dos Direitos Humanos, de injustiça contra a criação, de imperialismo e guerra.
48. É necessário chamar de volta para a prática da paz (Isaías 2.2-4). A prática da paz se dá onde as pessoas humanas seguem a prática de Deus e toda a prática não-violenta, como Jesus a exerceu. Com tal prática da paz inicia o Reino de Deus, inicia a Paz de Deus (shalom; Isaías 11.6-9).
Ilustração de Jan Luyken no Espelho dos Mártires: Dirk Willems salvando a seu perseguidor, que logo em seguida o entrega à fogueira (em alemão de: http://de.wikipedia.org/wiki/Dirk_Willems
49. O fenômeno da violência torna-se visível em todos os lugares onde se resiste à prática da paz e onde se impede que ela seja realizada – através de violência social, política, econômica ou até mesmo violência estatal, cujas vítimas clamam aos céus por ajuda.
50. A violência está presente em todos os lugares e em múltiplas formas (violência estrutural, violência técnica, violência militar, violência de ações). A onipresença da violência torna-se visível também em muitas práticas especialmente resistentes – como na fixação de inimigos e, sobretudo, de bodes expiatórios (Atos dos Apóstolos 7.54-60).
51. É preciso encontrar as razões e as origens para todas as formas de violência. É preciso dar-se conta de que a violência é sempre uma consequência de violência já ocorrida. Violência já é sempre contraviolência.
52. Não existe qualquer caminho para fundamentar ou legitimar a violência. Violência sempre é ilegítima. Não existe violência legal, isto é, não existe uma violência, em última análise, válida que possa ser fundamentada por direito. Não existe guerra justa e não existe guerra que se justifique. Lutero, Zwínglio, Calvino aceitam apenas o emprego de violência limitada para a minimizar uma violência maior. Contudo, mesmo essa lógica tornou-se anacrônica, ultrapassada, em vista dos modernos meios de destruição em massa. Violência nunca pode ser um meio para alcançar qualquer objetivo; pois, Deus reconciliou todas as coisas consigo mesmo (Colossenses 1.19-20).
53. A aplicação do direito não pode basear-se em violência. Onde as pessoas humanas sofrem violência, elas devem ser protegidas com os meios da prática da paz. No tempo da Reforma, passou-se a definir o emprego da violência de guerra e policial como tarefa exclusiva das “autoridades” e unicamente como proteção do próximo contra qualquer espécie de violência. Essa limitação radical foi amplamente colocada de lado. Lá onde essa violência extremamente limitada tiver que ser empregada, ela não deve ser entendida como naturalmente necessária, mas como um sinal de exortação de um mundo quebrado.
54. Também a criação de direitos via legislação baseia-se em violência – essa é a violência extrema, que, no entanto, não legitima qualquer violência a mais, mas sim, exige que se faça o que é justo (Mateus 5.38-42). Sistemas de direito devem ser julgados pela garantia de justiça que asseguram e a paz que fundamentam.
55. Praticar a paz significa viver, falar e agir sem violência. Praticar a paz significa criar as condições, dentro das quais a paz se realiza: fazer justiça, ouvir, perdoar, partilhar, presentear, curar, aliviar, ajudar – tudo isso como trabalho de resistência contra a violência (Mateus 5.3-11). Tudo isso é culto racional, como escreve o apóstolo Paulo (Romanos 12.1-2). Culto é prática da paz.
56. Praticar a paz também vale para o falar, significa não exercer violência retórica, testemunhar e não atropelar com testemunho, convencer (Mateus 5.33-37).
57. Praticar a paz significa apostar que a convivência de todas as pessoas – a comunhão política – esteja apoiada unicamente nas práticas da paz. Com isso, praticar a paz significa seguir uma convicção que seja realista no sentido da responsabilidade, pois só através da prática da paz é que a paz se fará presente no mundo (Mateus 5.43-48).
“Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a Torá de Cristo” (Gálatas 6.2)
58. Na origem da Reforma está a redescoberta da justiça de Deus, como poder criador e renovador, por parte de Lutero nos escritos de Paulo. Em sua doutrina da justificação, Lutero concebe essa justiça como um voltar-se misericordioso de Deus até mesmo ao ateu (sola gratia), e como confiança na fidelidade de Deus pela fé (sola fide) em Cristo (solus Christus).
59. A justiça de Deus conduz Paulo ao reconhecimento visionário de que “em Cristo” estão anulados todos os contrastes e hierarquias da “perversa ordem mundial presente” (Gálatas 1.4). “Nós” não somos aquilo que nos separa das outras pessoas, mas sim aquilo que nos vincula a elas. Os contrastes humanos de nação, religião, gênero, classe, que constituem o próprio eu como inimigo e rival do “outro”, são despidos no batismo como se fossem roupas velhas. Uma nova prática de unir-se através da convivência e de estar aí para as outras pessoas faz brotar uma nova forma de ser humano e de mundo (Gálatas 6.2,15). “Aqui não há mais judeu nem grego, não há mais escravo nem livre, não há mais masculino nem feminino, mas sim, vós sois todos um em Cristo” (Gálatas 3.28). Com isso, a justiça de Deus, a justificação das pessoas humanas e a justiça humana estão inseparavelmente vinculadas.
60. Um aspecto extraordinariamente problemático e não paulino da teologia de justificação da Reforma e de sua posterior interpretação no protestantismo é o seu conceito de “lei”. Lutero contrapõe “justiça a partir da lei” de modo programático à “justiça ou justificação pela fé” e compreende essa antítese como uma antítese irreconciliável de judaísmo e cristianismo.
61. Essa polarização de graves consequências baseia-se em sua interpretação da carta aos Gálatas. Erroneamente, Lutero equipara a lei aqui criticada por Paulo à Torá judaica. A controvérsia central da carta aos Gálatas a respeito da necessidade do ritual judaico da circuncisão para as pessoas cristãs de origem não-judaica é compreendida como rejeição total “do” judaísmo e de sua lei. No entanto, como demonstrou a mais recente pesquisa, o adversário na contenda de Paulo com seus opositores gálatas não era a Torá judaica, mas sim a lei e a ordem do Império Romano. Esta estabelecia determinadas normas de conformidade tanto para judeus como para gentios. O modelo paulino de uma comunhão solidária de judeus e não-judeus “em Cristo” colide em primeiro lugar com essas concepções imperiais de ordem e de modelos de socialização, não por último no contexto do culto romano ao imperador.
62. A Reforma continuou equiparando judaísmo com o catolicismo romano e passou a condenar ambos como “religiões legalistas” que querem alcançar a justificação através de “obras da lei”. O padrão polarizado de “obras ou graça e fé”, “Evangelho ou Lei”, aplicado a pessoas concretas da história teve consequências desastrosas na interpretação subsequente: não se lia apenas de maneira anti-judaica e anti-católico-romana, mas também se aplicava esse padrão contra “entusiastas”, anabatistas, muçulmanos e outros “hereges”, muitas vezes com consequências fatais.
63. Até os dias de hoje, movimentos da teologia da libertação, movimentos feministas e movimentos sociais, muitas vezes, são vítimas do veredito da “justificação por obras” ou do “legalismo”, negando-se que esses movimentos comportem uma fé autêntica. Dessa forma, a teologia da justificação é direcionada contra a justiça no mundo.
64. Com isso, a tradição protestante está comprometida em seu cerne por uma construção de identidade que se separa do “outro”, o que a coloca em franca oposição à solidariedade paulina radical de uma convivência acima de todas as delimitações. Em vista da atual crise mundial, torna-se um imperativo categórico, que a teologia protestante da justificação reflita de maneira nova sobre a justiça de Deus e que retorne às suas raízes bíblicas.
65. O juízo negativo a respeito do judaísmo e da lei também contribuiu decisivamente a uma desvalorização fundamental do Antigo Testamento. A fórmula trinitária de Pai, Filho e Espírito Santo, como testemunho comum de todas as igrejas cristãs, atesta a ligação indissolúvel entre as duas partes do cânone bíblico. Resgatar a unidade dos dois Testamentos é mais uma tarefa fundamental da teologia da Reforma, hoje.
66. O Messias, Jesus de Nazaré, é um convite a todos os povos para tomarem parte no futuro que está prometido a Israel: uma sociedade justa e igualitária no Espírito da Torá. A igreja cristã não substitui Israel; o antigo Israel é a raiz da igreja. “Não és tu que sustentas a raiz, mas sim é a raiz que te sustenta” (Romanos 11.18).
67. O Messias anuncia a proximidade do Reino de Deus, ou seja, o seu mundo justo (Mateus 4.17). No horizonte dessa esperança, o Messias, Jesus, interpreta a Torá de Israel para a atualidade (Mateus 5-7). Critérios de interpretação são a adoração exclusiva de Deus e o amor às pessoas próximas, em especial às pessoas empobrecidas e destituídas de direitos (Marcos 12.28-34; Mateus 25.31ss). Precisamente a sua condição de vida decide sobre como a Torá deve ser interpretada. Desse modo, a Torá, da qual não se revoga nem o menor dos mandamentos, torna-se orientação para a caminhada das comunidades messiânicas (Mateus 5.17-20; 28.19-20; também Romanos 3.31). O convite de Jesus, que a gente se guie por sua interpretação da Torá, objetiva interpretá-la e recheá-la sempre de novo de vida na esperança do Reino vindouro de Deus.
68. Na carta aos Romanos ouvimos o grito de pessoas que estão aprisionadas na ordem imperial, que torna impossível uma vida segundo as diretrizes da Torá. Pecado não é simplesmente uma condição humana abstrata, mas se materializa nas condições sociais concretas. Para Paulo, as estruturas de domínio imperial corporificam o poder do pecado, que empurra as pessoas humanas inevitavelmente a infringir as leis promotoras de vida da Torá, tornando-as cúmplices das forças da morte e da autodestruição (Romanos 7.24).
69. Portanto, a justificação paulina através da fé e a partir da graça inclui a dupla libertação, tanto das pessoas como também da Torá, do poder do pecado. As comunidades messiânicas criam um espaço onde tanto as pessoas judaicas como as não-judaicas podem cumprir a Torá como lei da vida “em Cristo”, através do amor mútuo – e também do amor para com seus inimigos (Romanos 8.2; 12.1-21; 13.8-10).
70. A crítica de Paulo e da Reforma à lei não está dirigida contra a ordem social legal como tal (usus civilis legis). Direito e lei são necessárias para conservar a sociedade humana. A crítica dirige-se exclusivamente contra a instrumentalização da lei no interesse dos fortes contra os fracos, como ela já foi denunciada pelos profetas. A lei está aí para as pessoas e não as pessoas para lei, como tanto Jesus e também os rabinos já declaravam (Marcos 2.27; Talmud babilônico, Tratado Eruvin, 41b). A legislação humana tem de ser reiteradamente questionada criticamente e modificada, a fim de representar o direito das vítimas em contextos concretos, ao invés de dar cobertura jurídica à injustiça da (des)ordem dominante.
71. Nesse contexto há um problema específico que é a identificação que Lutero faz dos dez mandamentos com o direito natural (Moisés como “Espelho Saxão dos Judeus”). Com isso ele mancha a particularidade da Torá como direito alternativo que, em pontos decisivos, difere das obras da lei de seu meio – por exemplo, em vista da legislação do sábado, o perdão de dívidas, a proibição da acumulação através de ganância (décimo mandamento). Essa especificidade crítica se perde quando se equipara a Torá com qualquer direito positivo, como por exemplo, o direito romano que absolutizava a propriedade privada.
72. Problema maior foi a omissão de Lutero em seu Catecismo Menor da introdução política concreta ao decálogo: “Eu sou o Senhor, a tua divindade, pois eu te libertei do Egito, da casa do trabalho escravo” (Êxodo 20.2; Deuteronômio 5.6). Além disso, Lutero amplia o mandamento da obediência aos pais para a obediência às autoridades como tais. Essas duas mudanças sintomáticas da base bíblica no mais influente catecismo de Lutero já indicam como o luteranismo posterior pôde tornar-se vulnerável a uma obediência submissa e à adequação diante de qualquer ordem estabelecida, de direito ou contrária ao direito, ao invés de confiar no Deus da libertação (sola fide) e de empenhar-se em favor das pessoas destituídas de direito.
73. Quando a ordem dominante não exerce justiça e se comporta de maneira indiferente frente às necessidades das pessoas simples, em especial dos mais pequeninos (Mateus 25.34-40), praticando assim a idolatria, impondo a cidadãs e cidadãos uma forma de vida inaceitável, então as pessoas cristãs não apenas devem negar obediência a tal mau governo, mas resistir-lhe ativamente.
74. Dentro de estruturas imperialistas, orientar-se pelas indicações bíblicas e libertadoras de rumo é resistir contra as lógicas e as leis mortais de um poder violento e escravizador. Para realizar tal resistência é necessário revitalizar um conhecimento abrangente das tradições libertadoras da Torá, tanto no Primeiro como também no Novo Testamento, de vez que estas se perderam ao longo do tempo. Como na Reforma, precisamos de um novo “despertar” para estudos bíblicos que desemboquem em ação nas nossas comunidades, uma leitura bíblica que aborde de maneira crítica e libertadora tanto as questões individuais como também os problemas sociais e econômicos de nossa atualidade. Por exemplo, do ponto de vista bíblico, perdão de dívidas e perdão divino de culpa estão inseparavelmente vinculados (Mateus 6.12). Pessoas cristãs, nos dias de hoje, devem ter a possibilidade de conhecer justamente o Primeiro Testamento, a Bíblia Hebraica, como um tesouro rico para o seu estilo de vida e para os seus juízos éticos.
75. Seguidores e seguidoras de Jesus têm o desejo de aprofundar-se nos segredos de Deus em comunhão com textos sagrados que também foram revelados em outras religiões. Experimentam essa alegria quando se empenham em esforço comum junto com judeus, muçulmanos, budistas, hindus e todas as outras culturas na África, nas Américas, no Caribe, na Ásia, no Oriente médio, no Pacífico e na Europa (Isaías 49.6), pela construção de um mundo mais justo, reforçando o diálogo. O Evangelho é contra qualquer espécie de invasão cultural, religiosa ou militar.
76. Uma interpretação pós-colonial da teologia da Reforma promove um projeto de enculturação, para sublinhar que o diálogo inter-religioso tem de ser um diálogo profético. Com isso, realiza um novo começo, criticando aquelas formas de teologia da Reforma que serviram e servem à colonização ou cuja erudição é abusada a serviço dos poderosos.
“O Espírito sopra, onde quer” (João 3.8)
77. No Espírito da igreja emergente da Reforma, temos que ouvir, hoje, o clamor daquelas pessoas ao redor do globo que percebem que as igrejas ignoraram e excluíram seus sofrimentos, sua opressão e sua situação cultural (Mateus 25.31ss) e, com isso, aprofundaram muito mais as divisões na igreja e na sociedade ao invés de saná-las.
78. Os movimentos da Reforma não compreendiam a igreja como uma instituição, mas como o povo de Deus batizado que se reúne em comunidades locais. Igreja como comunhão no seguimento de Cristo é local sagrado, no qual a Palavra universal de Deus é ouvida e os Sacramentos são celebrados, e isto, em diferentes línguas, tradições e confissões. Sua tarefa é contribuir para a cura do mundo (tikkun olam).
79. O sacerdócio de todas as pessoas crentes foi um grito radical para democratizar a igreja romana, a instituição mais poderosa daquele tempo. Hoje em dia, isso tem de ser traduzido como uma convocação revolucionária aos direitos cidadãos universais e à justa distribuição dos produtos do trabalho humano.
80. No século XVI a igreja foi reformada. Todavia, logo em seguida, as igrejas seguidoras da tradição da Reforma enredaram-se em estruturas e práticas patriarcais e hierárquicas, caindo prisioneiras de poderosos interesses econômicos e políticos. Sua perseguição aos anabatistas, aos judeus e muçulmanos não foi apenas deplorável, mas imperdoável! Arrepender-se disso não é suficiente. Temos que nos deixar ativar pelo Espírito de Deus para despedir-nos inteiramente de tais formas constantinianas da igreja. Trata-se de deixar-se inspirar para dar forma a uma igreja na qual todas as pessoas podem participar das decisões, começando pelas pessoas socialmente excluídas, e onde fronteiras podem ser ultrapassadas, para que nos tornemos uma igreja verdadeiramente católica, ou seja, que inclui a todas as pessoas – ultrapassando fronteiras de religião, de pertença étnica, de continentes e de interesses próprios.
81. O seguimento de Jesus anda de mãos dadas com contemplação, exercícios espirituais, iluminação e conformidade com a vontade de Deus. Se ouvirmos a voz de Deus com o temor de Raabe (Josué 2) ou com o temor de Maria e Isabel (Lucas 1), e se permitirmos que o Espírito de Deus flua para dentro das profundezas de nosso ser, estaremos no caminho do seguimento de Cristo. As mulheres da Bíblia e as mulheres da Reforma radical nos mostram a trilha do discipulado, da mística, do testemunho e do martírio.
82. A força espiritual de Deus age livremente e sopra onde quer (João 3.8) para renovar continuamente a igreja. Ela nunca é propriedade e não pode ser mantida prisioneira de interesses institucionais ou definições dogmáticas.
83. O Espírito efetua renovação e mudança tanto na igreja como também na sociedade. Além de transformar as pessoas, ele também empodera as pessoas crentes a engajar-se lado a lado com pessoas de outras religiões, ideologias e movimentos sociais, e a suportar sofrimentos consequentes de tal engajamento por amor, solidariedade e justiça.
84. Quando Lutero declarou a cruz como a marca da igreja, ele colocou um critério para a igreja, pelo qual ela deve ser medida: para ser igreja, ela tem de se tornar vulnerável, por estar ao lado e comprometer-se com as pessoas empobrecidas, por colocar o seu status social e político em jogo, protestando publicamente contra estruturas e práticas políticas injustas.
85. Ao invés de concentrar-se em piedade individual, ela deve colocar o maior peso eclesial-comunitário em resistência e mudança social. Caso contrário, as injustiças continuarão a espalhar-se livremente, pervertendo as nossas relações básicas com Deus, conosco mesmo, com as pessoas que nos são colocadas no caminho e com toda a criação. Através de atividades como pregar, ensinar, celebrar, cuidar, construir e organizar comunidade junto com outras pessoas, a igreja cristã pode ajudar a combater pecado, dependência e cegueira, que possibilitam ao império dominar em suas múltiplas facetas.
86. Através da força do Espírito inspirador e comprometedor, as pessoas, que são muito diferentes umas das outras, são transformadas numa corporação, numa “nova criação”. O Espírito não apenas renova e transforma, mas congrega pessoas na unidade do Corpo de Cristo. Por isso, ele não pode ser utilizado, para justificar mais divisões das e nas igrejas. Por isso, uma igreja em contínua Reforma tem de estar reconciliada consigo mesma e trabalhar intensivamente para superar as divisões entre Oriente e Ocidente, entre Católico-Romanos e Protestantes e entre as diversas igrejas da Reforma, para que todas as igrejas possam congregar-se ao redor da mesa da Eucaristia.
87. Uma igreja em constante reforma é continuamente modificada por aquilo que ela recebe de outras tradições e culturas teológicas. Lutero acentuava que o Espírito está ligado à Palavra de Deus. Com isso ele criticava a todos que afirmavam ter recebido revelações especiais, independentemente das Escrituras bíblicas. Isso não deve ser mal interpretado como limitação da livre obra do Espírito entre e dentro das pessoas – incluindo as pessoas de outras tradições ou religiões, e até mesmo de toda a criação (Romanos 8).
88. A crítica de Lutero aos assim chamados entusiastas não pode ser aplicada ao nosso tempo como crítica geral às igrejas pentecostais. Obviamente temos que criticar “teologias da prosperidade” com base na teologia da cruz. Simultaneamente, porém, temos que perceber atentamente a atuação do Espírito nos movimentos pentecostais, de como ele constrói comunhão, como salva pessoas empurradas para a margem e como ele restabelece a dignidade de pessoas que sofrem sob pobreza, doença, vício e desemprego.
89. A redescoberta e releitura sociológica de tradições bíblicas, desde a perspectiva das pessoas empurradas para a margem, e a leitura contextual e intercultural da Bíblia, em muitas situações de todo o mundo, é um sinal importante de esperança, de que o modo libertador da Reforma compreender a Bíblia, hoje, está operante em muitas igrejas.
90. Para a Reforma foi de central importância que todas as pessoas tivessem acesso à educação e que a Bíblia tinha que ser lida de modo novo, ou seja, relacionada à respectiva situação. Quando as igrejas emergentes da Reforma passaram a se espalhar em todo o mundo, nem sempre se perseverou nessa abordagem. Ao invés disso, encontra-se amplamente disseminada uma piedade individualista, que se adapta a interesses poderosos e assim promove uma consciência alienada, sendo que o fundamentalismo religioso até está aumentando.
91. Por isso, a recuperação da teologia bíblica e de uma formação teológica crítica (assim como a educação em geral) é central para o avanço da Reforma e da renovação no cristianismo mundial do século XXI.
92. Bem-aventuradas são aquelas pessoas que não se acomodam a sistemas dominantes, mas que se levantam contra as formas através das quais Deus, até hoje, continua sendo pregado à cruz pelas estruturas deste mundo (Romanos 12.2). Benditas as pessoas que junto com outras constroem um novo mundo com justiça e paz em comunidades humanas.
93. Precisamos de uma “nova Reforma”. Agora, como outrora, as pessoas podem facilmente ser piedosas. Contudo, essa piedade, muitas vezes, se expressa através de formas inadequadas porque as igrejas, seguidamente, estão alienadas das situações reais, em que as pessoas vivem. Como Lutero, em seu tempo, nós precisamos de uma renovação da linguagem, um retorno à mensagem libertadora do Evangelho.
94. A proposta de Dietrich Bonhoeffer, de um cristianismo engajado no mundo, que descobre uma nova linguagem para o velho Evangelho, tem de ser traduzida como “orar e fazer o que é justo entre as pessoas humanas” (D. Bonhoeffer). Todo o discurso eclesial tem de ser ensaiado de maneira nova a partir dessas novas formas de orar e fazer. É precisamente nisso que insiste a teologia da libertação: na inseparabilidade de ortopraxia e ortodoxia.
“Radicalizar a Reforma – provocações a partir da Bíblia e da crise global” não é uma opção arbitrária para as igrejas e a teologia, mas é uma emergência, para mudar o rumo da desgraça. O próprio Lutero fez da Escritura – em seu sentido histórico da palavra – um critério de toda a tradição. A interpretação contextual da Bíblia afiou esse sentido profético-crítico. O próprio Lutero já praticava essa crítica sistêmica no início do modernismo capitalista. Como poderíamos nós, ao final dessa fase cada vez mais assassina e suicida da humanidade em crise, nos furtar a ouvir de maneira nova as nossas fontes da fé, e junto com outras pessoas “travar essa roda descontrolada”? Andemos junto com as outras pessoas pelos caminhos da justiça e da paz.
Halle, 07 de agosto de 2014.
Autores e autoras:
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Marlene Crüsemann/Alemanha,
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Fonte: Martin Hoffmann, Daniel C. Beros e Ruth Mooney.Radicalizando a Reforma. Outra teologia para outro mundo. Editora Sinodal/EST, São Leopoldo/RS, 2017.