Que cara é esta?

Artigo

03/03/2006


Oi cara! Que festa legal, cara! Palavras soltas e frases exclamativas, assim, satisfazem a necessidade de comunicação, sobretudo, no mundo jovem. Cara, meu, é desse jeito que se constroem relacionamentos entre colegas e companheiros, entre amigos e cúmplices dos mesmos ideais e sentimentos.

A expressão também tem conotações negativas, sinalizando desprezo e marginalização. Que se pode esperar de um cara assim? Face à realidade comprometedora de pessoas indesejáveis, emitimos juízos para desinstalar o outro. Há pessoas que perderam seu rosto, sua cara; é gente descaracterizada, sujeitos de barbáries e de ações desumanas.

Mostrar a cara é sinal de liberdade, um desafio que revela personalidade. Quem coloca sua cara à mostra, exterioriza o caráter, é transparente em relação a conceitos e manifesta sua postura ética. Quem atola no chão coberto de lama, perde sua cara. Cria-se a imagem de uma pessoa desfigurada, sem rosto, que não condiz com a vocação do ser humano responsável e solidário.

Os meios de comunicação, sobretudo os jornais que circularam nesta semana em nossa região, noticiaram o avanço assustador da violência em SC e no País inteiro. É violência no trânsito, aliada às múltiplas formas de hostilidade entre pessoas conhecidas e desconhecidas. Atrocidades causam vítimas, amedrontam a população e deixam um rastro de tristeza e de sofrimento. O clima de euforia, de festa e de folia coletiva não consegue abafar os conflitos procedentes do trato injusto e da desigualdade social. Por isso, é passível de contestação a ideologia de que o Carnaval possibilita um intercâmbio, ainda que provisório, entre pobres e ricos, negros e brancos, entre gente desconhecida e as pessoas que circulam no mundo das celebridades em busca da fama.

A megafesta popular brasileira, que reflete imagens da beleza e criatividade de nossa gente, confunde as caras. Rostos e corpos travestidos encobrem a verdadeira situação de cidadãos e cidadãs, estratificados no dia-a-dia, em classes sociais distintas e desiguais. A dura existência, desenhada no chão da difícil realidade, é transformada, para poucos dias, num toque de magia. A imagem gerada é de uma grande festa animada por instrumentos de percussão envolventes, das baterias ritmadas e emoldurada pelo gingado de corpos demonstrando alegria em profusão.

Considerada a mais autêntica e democrática das festas populares brasileiras, o Carnaval enche de entusiasmo quem o acompanha, de perto ou a distância, das arquibancadas ou diante das telinhas. Sua manifestação prima por estética esmerada e dá mostras de espetáculo de encher os olhos. A qualidade de sua verdadeira essência e os efeitos quanto à durabilidade de seus propósitos, porém, mostram o quanto a realidade das fantasias é distorcida e, por essa razão, transitória.

Por conseguinte, chamada a ser luz do mundo, de que maneira se posiciona a comunidade de fé em Jesus Cristo, diante da magia refletida nos rostos alegres nos sambódromos, nas avenidas, em praças públicas e nos salões reservados?

A prática da fé também se revela na forma de festa, de bom humor, música e de ritmos. Não deixa de ser simpático o ditado popular: Rir é o melhor remédio. Sigmund Freud, eminente estudioso da mente humana, apostava em vivência fundamentada no bom humor. Ensinava que a alegria e o riso são necessidades básicas que superam o sofrimento e a dor. O Carnaval transpõe, num espaço de tempo limitado, pessoas humanas envoltas em realidade desgraçada para uma paisagem de alegria e de festa. A vivência da fé em Jesus Cristo assegura à pessoa humana a liberdade como presente de Deus. Por isso, a beleza do brilho das cores e das luzes, aliada ao espetáculo multicolorido protagonizado pelo balé popular, expressão de criatividade, é valor que, em princípio, integra a realidade da fé.

Feito o desenho dessa paisagem colorida em festa, poderíamos imaginar a vida acontecendo em ambiente especialmente privilegiado. A realidade, porém, é diferente. Somos co-participantes da modernidade e integrados na sociedade do lazer. É modelo de sociedade que organiza, de forma calculada e em tempo certo, seus eventos festivos, mesmo que o clima não seja de festa. A indústria do lazer sujeita seus consumidores às exigências da lei do mercado. A alegria comercializada tem preço elevado - seu benefício vale para poucos. É alegria não motivada por vidas transformadas, tampouco, está arraigada em sociedade de valores renovados. As aparências enganam!

No mundo das máscaras e das caras travestidas, a liberdade cristã questiona a indústria do lazer pelo fato de ser um meio capaz de perpetuar a desigualdade social. Ela produz alegria aparente para quem se satisfaz com celebridade transitória.

Com os pés no chão, isentos de moralismo hipócrita, também em relação aos excessos da festa carnavalesca, pessoas cristãs são encorajadas pelo Evangelho à participação na grande festa do Reino, que é oferta gratuita de Deus. Na espera ativa, vivemos com equilíbrio e sabedoria a história da salvação, a boa notícia anunciada e vivida pelo Cristo que garante e mantém nossa cara!

Manfredo Siegle
pastor sinodal do Sínodo Norte-catarinense
da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
em Joinville - SC

Jornal A Notícia - 03/03/2006


Autor(a): Manfredo Siegle
Âmbito: IECLB / Sinodo: Norte Catarinense
Natureza do Texto: Artigo
ID: 7975
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