Povo troca o medo pela perplexidade
Antônio Carlos Ribeiro
Esta é a principal conclusão quando ouvimos os membros das comunidades a respeito do ano 2000. O clássico pavor do fim do mundo, colorido com tons calorosos e trágicos, começa a ceder lugar para a inquieta perplexidade de quem busca alternativas e não as encontra.
Você tem medo do ano 2000? O que você acha que vai acontecer no ano 2000? — a estas perguntas surgiram respostas que demonstram cansaço com a situação brasileira, percepção das necessidades e expectativas, inclusive positivas. As posições vão desde quem lamenta a situação, mas tem esperança de que vamos conseguir superar tudo isso, até quem imagina que tudo vai ser mais avançado na vida das pessoas.
Adival Caio Silva, um militar aposentado de 60 anos, está no primeiro grupo, enquanto a adolescente Roseli Jann, de 16 anos, crê que a tecnologia vai estar mais presente na vida das pessoas, mas acha que para os mais pobres não vai mudar muito. As razões de Roseli são plausíveis. Com o aumento do desemprego e a globalização da economia os pobres vão ter mais dificuldades porque têm menos estudo. Hiltraude Bull, uma pequena comerciante, comenta o interesse que as pessoas demonstram por esse tema lembrando falas como o ano 2000 está chegando, mas diz que tem medo mesmo é da violência e por isso evita andar sozinha à noite.
A apreensão toma conta também de Ester Nitz, uma dona de casa de classe média cujo marido deixou um emprego de 25 anos porque a firma faliu. Se, quando menina, contou as horas e só respirou aliviada depois que passou o dia do fim do mundo, seu medo agora é em relação ao desemprego, à falência de firmas grandes e ao futuro dos filhos. Os sustos e medos dos pecados individuais da infância transformaram-se em preocupações com relação à fome, à violência e ao despreparo de enormes contingentes da população, a quem falta o principal equipamento para enfrentar esses tempos de economia globalizada: a educação.
Sobrevivência: preocupação em alta
A mistura de surpresa e dificuldade que as pessoas demonstram ao falar sobre esse assunto já é reveladora de como temas religiosos clássicos começam a ceder lugar para necessidades, há bem pouco tempo atrás chamadas de mundanas. A mudança na maneira de lidar com a religião pode ser explicada pelo crescimento do acesso à informação, cuja distribuição foi ampliada através das antenas parabólicas e da Internet. Já a consciência dos efeitos da globalização chegou com a onda do governo neo-liberal, que impôs a sobrevivência e a morte para os pobres, e o aperto, a contenção de despesas e o adiantamento de sonhos para amplos setores das várias classes médias e altas.
Mesmo que se chame a perplexidade de filha do secularismo, ela tem se tornado um grande filtro para a avaliação da prática teológica das igrejas. Talvez por isso a revista Veja tenha publicado que os sermões dos padres e pastores, hoje, falam mais da reforma agrária que das coisas celestiais (02/04/97, p. 102). Parece que o risco da fome e da miséria se socializou, deixando de ser privilégio dos chamados pobres e passando a habitar ambientes que pareciam imunizados à doença que tem o nome de miséria.
Exclusão social
O crescimento da fome e mesmo a dificuldade de reação da sociedade brasileira tem alterado mentalidades, práticas e discursos sacramentados ao longo do tempo em nossa população. O clássico medo do fim do mundo, que se imagina cresceria com a simultânea virada da década, século e milênio, não se mostra tão presente. Pelo jeito está tão desacreditado quanto o inferno, no qual apenas 44% da população diz crer. Parece que a proximidade do ano 2000 assusta menos os 99% dos brasileiros que dizem acreditar em Deus do que o pavor do desemprego, do fim dos hospitais e escolas públicas, e mesmo da falta de perspectivas de vida.
Se assusta a alguns o ano 2000, ao qual vamos chegar contando o tempo pela era cristã de Dionísio Exíguo (527 ou 532 d.C.), ou pelo ano estabelecido pelo Papa Gregório XIII, responsável pela unificação das cronologias ocidentais a partir do século XVI, as crises econômicas mundiais e seus efeitos perversos sobre homens, mulheres e crianças de todas as idades parecem confundir muito mais. O dramático é que no mesmo pacote das benesses tecnológicas que dificultam a domesticação de consciências com os rigores do inferno, estejam sistemas econômicos que excluem parcelas cada vez maiores da população.
O autor é pastor da IECLB, jornalista e atua na Paróquia Evangélica de Confissão Luterana de Vitória, ES
Ver ìndice do Anuário Evangélico - 1998