Para onde vão os mortos que não tiveram tempo de se arrepender?

28/11/2014

A resposta precisa considerar inicialmente sob qual influência teológica a pergunta é feita. A pessoa que a faz a pergunta pode estar demonstrando alguma influência do pensamento de tipo “é preciso arrepender-se hoje porque amanhã pode ser tarde”. Algumas linhas de pensamento teológico têm como característica trabalhar com essa motivação. E isto pode representar uma teologia do medo. Compreendo que a fé baseada na confissão luterana rejeita qualquer método que pretenda ganhar pessoas fazendo medo nelas. O movimento protestante, no qual tem origem a confissão luterana, surgiu a partir da pergunta “o que posso fazer para ser salvo?” Lutero, antes de desenvolver a teologia que deu origem à reforma protestante, tinha medo de ser castigado por Deus e começou a construir a sua resposta a este medo a partir de Romanos 1.17, onde está dito que a fé faz de nós pessoas justas. Em outras palavras, somos salvos por fé. A partir daí, Lutero descobriu que não é necessário ficar se martirizando com a ideia de que Deus vai nos castigar por não conseguirmos ser justos. Não somos justos. A fé nos justifica. E a fé não é uma obra nossa. Paulo diz aos efésios: Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus (Ef 2.8). Quem salva é Deus, por graça e por bondade. E ponto. Nós, por fé, acolhemos esta dádiva. É a graça de Deus que cria e mantém fé em nós.

A pergunta para onde vão as pessoas que morrem sem se arrepender parece pressupor que algumas pessoas, aquelas que supostamente se arrependeram e aceitaram Jesus, estão tranquilas porque estão justificadas. Elas se consideram justas. E se são justas, são salvas. Elas acham que têm o mérito de serem salvas. As outras são as perdidas.

Isso não existe! Existe só na cabeça das pessoas quando acham que podem se salvar por mérito próprio. Se dividirmos as pessoas entre as salvas que se arrependem antes de morrer e as perdidas que não se arrependem antes de morrer, tudo de acordo com os critérios que a nossa maneira de compreender as coisas estabelece como arrependimento, então estamos decidindo quem será e quem não será salvo. Quem julga assim as pessoas está se atribuindo algo que cabe a Deus. E querer ser igual a Deus cria torres de Babel (Gn 11).

É bom lembrar os criminosos crucificados com Jesus. A um dos dois, Jesus diz “estarás comigo no paraíso”. Quer dizer que não dá para descartar o arrependimento no último instante. Esse arrependimento no último momento não rende dízimo. Isto não é interessante para quem converte as pessoas e passa a contar com o seu dízimo.

Também é bom lembrar o texto “deixa crescer tudo junto até na hora da colheita” (Mt 13), bem como o texto do Filho Pródigo (Lc 15).

Voltemos à pergunta: o que acontece com a pessoa que morre sem ter tempo de se arrepender? Pra onde ela vai? Precisamos fazer a pergunta de volta: existe isso, morrer sem ter tempo de se arrepender? Para Deus mil anos são como um instante que já se passou. Quem já sofreu um acidente e escapou com vida, sabe que em segundos a vida passa como um filme em sua frente. Dá tempo de se arrepender e inclusive interceder em favor de outras pessoas em segundos. Nós não sabemos o que se passou com quem morreu enquanto morria. Nós só sabemos se a pessoa que morreu participava de uma igreja, se contribuía direitinho, ... essas coisas precárias que a sociedade humana consegue organizar. Isso são coisas pequenas. Deus é maior. A parábola do Filho Pródigo é um bom exemplo. Por que o pai aceita aquele filho de volta? Simplesmente porque ele se arrependeu. Quanto tempo o Pai precisou para aceitar o arrependimento? Quantas vezes o filho pródigo foi ao culto para conquistar o perdão do pai? Quanto dízimo arrecadou? Simplesmente não deu tempo. O pai saiu correndo ao seu encontro o abraçou e o beijou. Foi num estalo de dedos. O pai nada perguntou sobre tudo o que ele fez de errado durante o tempo em que passou fora de casa gastando a herança.

A pergunta que precisamos fazer é se queremos ser salvos no último instante como o ladrão da cruz e como o filho pródigo. Seria incompreensível uma pessoa cristã colocar como alvo de sua vida o viver de qualquer jeito para ser salvo pela graça de Deus no último instante. Quem compreendeu o evangelho, com certeza não fará isso. E quem faz isso com certeza não compreendeu o evangelho. E se alguém não compreendeu, é porque outro alguém não o evangelizou.

A partir do Batismo entramos na missão de ir por todo o mundo pregar, ensinar e batizar todas as pessoas. Nós, pessoas cristãs, com a inteligência que Deus nos deu, definimos o que é salvação, a partir da ordem que recebemos de Jesus Cristo de evangelizar com o objetivo de salvar pessoas. Trata-se de uma atitude consciente, responsável e racional. Assim a teologia definiu que a salvação é um processo composto pela conversão, pela santificação e pela glorificação.

Conversão: A igreja chama as pessoas para a conversão. A comunidade cristã chama as pessoas para que elas troquem as prioridades de suas vidas pelo centro da pregação de Jesus, isto é, o grande mandamento do amor: “amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo”. Quando a pessoa nasce num lar cristão, ela é batizada e incluída desde cedo no círculo das pessoas que conhecem e aceitam Jesus Cristo. Esta realidade não pode ser anulada pelos grupos religiosos ‘militantes da conversão’, que pescam não só em ‘mares devolutos’, mas também em açudes alheios, abordando inclusive cristãos tradicionais. Eles estão, na prática, disputando público. Na teoria alegam fidelidade ao evangelho. Precisamos lembrar que os cristãos históricos têm a seu favor o tempo de sua fidelidade que atravessa séculos. Enquanto isso os novos cristãos militantes da conversão tem a seu favor o fervor da novidade, a “vassoura nova que varre bem”.

Santificação: Depois que a pessoa aceitou o princípio de vida centrado na pregação de Jesus (conversão), vem o segundo passo no processo de salvação que é a santificação. A santificação é reservar para Deus cada vez mais partes de nossa vida. Por favor, sem irresponsabilidades (!), pois existem os casos onde pessoas, pretensamente motivadas a santificarem suas vidas, doaram bens e tempo a organizações religiosas que, por sua vez, usaram esses bens em benefício próprio. Santificação é buscar uma vida de oração, de estudo da Palavra de Deus e de prática comunitária do amor irrestrito (ágape).

Glorificação: A salvação como glorificação é um ato de Deus. Como ato de Deus, é um acontecimento sobrenatural, isto é, fora da natureza. A História só registra o que acontece dentro da natureza. Deus interferiu somente uma vez com um acontecimento sobrenatural na natureza dos acontecimentos quando Ele ressuscitou Jesus Cristo. Esta é a única ressurreição até o momento. Os milagres de “ressurreição” relatados pelos textos bíblicos são devoluções da vida a alguém, para que continue mais um tempo com o seu grupo de convivência.

Profecia de Daniel: Quem abraça a fé cristã se dispõe a viver na perspectiva de ser julgado ou julgada. A profecia de Daniel é um resumo extraordinário deste princípio de vida. Ela diz assim: “Nesse tempo aparecerá o anjo Miguel, o protetor do povo de Deus. Será um tempo de grandes dificuldades, como nunca aconteceu desde que as nações existem. Mas nesse tempo serão salvos todos os do povo de Deus que tiverem os seus nomes escritos no livro de Deus. Muitos dos que já tiverem morrido viverão de novo: uns terão a vida eterna, e outros sofrerão o castigo eterno e a desgraça eterna” (Dn 12.1-2). Este texto nos ensina que as pessoas tementes a Deus, ao contrário das pessoas corruptas, vivem com a certeza de que prestarão conta de tudo o que fazem.

Por enquanto os que morreram dormem. São pequena porção devolvida ao universo. Foram devolvidos para a imensidão da natureza de Deus, como um copo d’água despejado no mar. O sepultamento devolve ao universo a matéria orgânica e os minerais com seus mais de vinte elementos químicos. A partir daí nossos mortos dormem até que Deus os queira ressuscitar, como tão bem relata o apóstolo Paulo em 1 Coríntios 15. 35ss. Amém!

P. Ms. Leonídio Gaede
 

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