Paixão | Mateus 27.33-50

Sexta-feira da Paixão | ANO A

05/04/2023

 

Amados irmãos, amadas irmãs,


Paixão! Palavra da língua portuguesa que tem origem no latim “passio” que significa “sofrimento” e no grego “pathe” que significa “sentir”. Hoje nós vivemos a quinta-feira / sexta-feira da Paixão, nominação que está diretamente ligada ao sofrimento de Cristo.


Hoje nós somos lembrados que a paixão e o amor estão diretamente ligados ao sacrifício! Há alguns dias, realizei uma visita hospitalar aqui em Sapiranga onde uma mulher se sentia culpada por causa do tempo que o marido e as duas filhas estavam sacrificando para ela. Uma das filhas, inclusive, abandonou uma oportunidade de um bom emprego para acompanhar a mãe em seu tratamento hospitalar. O que dizer a essa esposa e mãe? Eu lhe disse: nesta situação de sofrimento, você está descobrindo de maneira muito profunda o real significado da paixão e do amor. Amor não é uma palavra apenas a ser dita, mas um gesto concreto. Paixão é sofrimento, sacrifício e entrega! Se o esposo e as filhas estavam dispostos a sacrificar tanto de si mesmos por ela, não haveria outro motivo para isso senão a paixão e o amor pela esposa e mãe.


Da mesma forma aconteceu em Jesus Cristo por todos nós. A paixão de Deus pelo ser humano e sua criação o levou até às últimas consequências: até à rude cruz! O próprio Deus decidiu sofrer pelo ser humano para que, conforme diz o próprio Lutero, fôssemos resgatados do pecado, da morte e do inferno. Se paixão significa sofrimento, no Cristo crucificado é que encontramos a encarnação da paixão de Deus pelo ser humano.


O Deus cristão não foge do sofrimento. Jesus não é apenas um homem, mas o próprio Deus – a segunda Pessoa da Trindade. Tudo o que existe foi criado por meio dele (cf. João 1.1-14) e para ele (cf. Colossenses 1.16). Tudo o que existe foi criado pelo Pai, por meio do Filho e na força do Espírito Santo. E agora, o próprio Deus está pendurado em uma cruz. O Deus cristão é o Deus que sofre; mais que isso: é o Deus que morre de maneira humilhante e ultrajante na cruz. A paixão de Cristo nos lembra que Deus não está indiferente aos nossos sofrimentos, miséria e pecado, mas que por ter ele sofrido, ele é empático aos nossos próprios sofrimentos. Isso é Paixão!


Deus se humilhou para servir, para morrer, para salvar. Esta é a missão do Filho de Deus. Ele sofre o peso da cruz para nos libertar. Assim, como pessoas livres, podemos servir ao próximo com alegria e espontaneidade.


Hoje lembramos a morte de Jesus. Ele morreu pela nossa salvação, para que fôssemos libertos do pecado, da morte e do inferno. É na cruz que Deus sacrifica o seu próprio e único Filho Unigênito por amor de nós. Na cruz Deus realizou o seu plano de salvação. É pelo Deus pendurado na cruz que o perdido pode ser encontrado. Este é o Deus crido por nós. E recebemos as promessas da cruz ao crermos em Jesus e o confessarmos como único e suficiente Senhor e Salvador das nossas vidas.


O Deus cristão é o Deus que se faz fraco. Ele sente as nossas dores. Onde está Deus quando mulheres são vítimas de feminicídio? Onde está Deus quando pessoas são mortas pela violência nas ruas, mas também nos lares? Onde está Deus quando em tantos lugares pessoas ainda morrem de fome? Onde está a Paixão de Deus pelo ser humano quando tantos jovens são seduzidos pelas drogas? Onde está Deus quando pessoas e mais pessoas sofrem com desastres naturais? E talvez tenhamos outras perguntas em níveis mais pessoais: onde estava Deus quando recebi o diagnóstico de uma doença grave? Onde estava Deus quando meu filho ou minha filha morreu? Onde estava Deus quando perdi meu esposo ou minha esposa? Onde estava Deus quando meu pai ou minha mãe partiu de maneira tão repentina? Enfim, onde estava Deus? Se ele sente uma paixão tão imensa por nós, por que aparenta nos abandonar quando mais dele precisamos?


O Deus cristão é o Deus que se faz fraco. Ele sofreu a violência, o abandono e a dor da morte. Ele sofre com aqueles que sofrem. Deus não nega os fracos, mas se faz como um fraco. Deus assumiu a nossa humanidade na sua totalidade: Ele serve! Ele morre! A quinta-feira / sexta-feira da Paixão é um lembrete que diz suavemente: em teus sofrimentos, ele sofre contigo!


O Cristo crucificado é a revelação do Deus que não foge da dor, da desgraça, da miséria, da violência, das doenças. O Deus crucificado é a revelação do Deus que sofre tudo aquilo que o ser humano pode sofrer. Em nossa dor, angústia ou desespero, Deus é humano e sofre conosco! Na nossa miséria, ele nos serve sua misericórdia! No nosso pecado, ele nos serve do seu amor incondicional. O ser humano quer o poder, mas Deus se fez fraco! Não apenas o homem Jesus morreu na cruz; o Deus-homem Jesus Cristo morreu na cruz!


Na cruz nós contemplamos a fronte ensanguentada do Deus-Filho. É a face dos que hoje sofrem nos lugares mais próximos ou distantes do mundo. No rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem passa fome; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem passa sede; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem sofre com a violência doméstica; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem sofre com qualquer tipo de preconceito; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem é escravizado; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem sofre com o luto; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem está em depressão; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem morre na pobreza, sendo marginalizados, excluídos e desprezados pela sociedade; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem sofre com as injustiças; no rosto do Cristo crucificado está o rosto de quem morre por bala perdida; no rosto do Cristo crucificado está o rosto das crianças feridas e mortas em Blumenau; no rosto do Cristo crucificado está o rosto triste daqueles pais.


Deus-Filho é pendurado em uma cruz! E nele encontramos o Deus que não foge do sofrimento, mas que sofre com os sofredores – também com os nossos sofrimentos. Deus não é antipático a nós, mas empático a nós em nossa condição humana! Ele é o grito dos que estão sem voz; ele é a força dos que cansaram de lutar; ele é a esperança de quem já está cansado de esperar.


Ao mesmo tempo, a quinta-feira / sexta-feira da Paixão nos traz uma outra lembrança muito importante: nós não estamos do lado de Pilatos que, covardemente, lavou suas mãos; nós não estamos do lado do Sinédrio que estava disposto a inventar fatos para conseguir a condenação de Jesus; enfim, nessa história, nós não estamos do lado das autoridades ou dos poderosos. Ao contrário, hoje somos lembrados que estamos do lado do crucificado; estamos do lado dos fracos; estamos do lado dos oprimidos; estamos do lado dos sofredores. Não nos colocamos hoje ao lado daqueles que acreditavam ter todo o poder nas mãos; ao contrário; estamos ao lado do Deus todo-poderoso que se fez fraco ao ser condenado à cruz! Não estamos do lado da “justiça”, mas do injustiçado!


É por isso que o apóstolo Paulo nos diz em 1 Coríntios 1.18: “Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos, ela é o poder de Deus”. É loucura! Mas é a loucura que nos salva! É a loucura que nos cura! Deus vence os poderes do mal usando da fraqueza. E se torna difícil para o ser humano entender que Deus não é encontrado no poder onde se gritam cantos de “glória e aleluias”, mas que Deus é encontrado nos pequeninos: “Em verdade lhes digo que, sempre que o fizeram a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram.” (Mateus 25.40).


Esse é o Cristo de que estamos falando. Esse é o Cristo que nos cremos! Há muitos “cristos” sendo pregados por aí atualmente. Muitos que nada tem a ver com a Palavra de Deus. O apóstolo Paulo, porém, nos lembra: “nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios”. (1 Coríntios 1.23). O Cristo que pregamos, que deve estar no centro e que nos une, não é outro senão aquele que em sua liberdade aceitou ser pendurado na cruz. É o Cristo crucificado que carregou sobre si as dores da discórdia, da divisão e até da polarização; é o Cristo crucificado que sentiu na pele o que é ser mensageiro da verdade do Reino de Deus; é o Cristo crucificado que se coloca como fraco e excluído assim como tantos outros pobres e vulneráveis são excluídos da sociedade por causa de seus fracassos pessoais. Eis o Cristo!


Como Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, cremos que a revelação de Deus se dá ao contrário das expectativas humanas. Enquanto nós imaginamos Deus no poder e na glória, ele quis se manifestar na fraqueza; enquanto imaginamos Deus em sua soberania, Deus se revelou na humilhação; enquanto imaginamos Deus na eternidade, ele decidiu se revelar para dentro da história humana; enquanto imaginamos Deus distante, ele decidiu se revelar perto e próximo; enquanto imaginamos Deus de forma intocável, ele decidiu se fazer carne e habitar entre nós! Por isso, não há como conhecer a Deus e nem como ter uma Igreja unida sem contemplar o Cristo crucificado.


Por isso, como evangélicos de confissão luterana, cremos, confessamos e ensinamos aquilo que chamamos de “Teologia da Cruz”. Martinho Lutero diz:


Deus, por sua vez, quis ser reconhecido a partir dos sofrimentos e quis reprovar aquela sabedoria das coisas invisíveis através da sabedoria das coisas visíveis, para que, desta forma, aqueles que não adoram ao Deus manifesto em suas obras adorassem ao Deus oculto nos sofrimentos, como diz 1 Co 1.21: “Como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela tolice da pregação.” Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na humildade e na ignomínia da cruz. Desta maneira ele destrói a sabedoria dos sábios, etc., conforme diz Isaías: “Verdadeiramente tu és Deus abscôndito”.1

 

E Lutero arremata, dizendo: “Portanto, no Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus”2. Esse também é um importante lembrete da quinta-feira / sexta-feira da Paixão: a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus não podem partir da glória, de experiências revelatórias extraordinárias, do “cair no Espírito” ou outras coisas; a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus vêm no confronto com o crucificado que nos humaniza e tira o nosso olhar do poder ou dos poderosos para que olhemos pelos mais fracos, desprezados, excluídos, humilhados, perseguidos, oprimidos, violentados, mortos.


Deus não quer ser conhecido senão na sua cruz. Aquele que procura a Deus irá descobrir que é procurado por Deus. Basta olhar para o crucificado onde a abscondidade de Deus foi rompida, onde as máscaras de Deus caíram e ele nos mostrou qual é o seu rosto: um rosto amoroso e misericordioso e não rancoroso ou como um justo juiz. No Cristo Crucificado e em sua fronte ensanguentada nós podemos contemplar o rosto amoroso e misericordioso de Deus.

 

Amados irmãos, amadas irmãs,


Jesus Cristo, o Deus-Filho, segunda Pessoa da Trindade, foi humilhado, ultrajado e envergonhado. Ofereceu o amor e recebeu em troca o ódio; ofereceu a paz e recebeu em troca a guerra; ofereceu a justiça e recebeu em troca a injustiça. Ali estava ele, pregado na cruz, como um servo sofredor e homem de dores.


No Gólgota, o lugar da caveira, escutam-se os deboches ultrajantes. Ali, mais uma vez o próprio Deus é tentado: “Salve a si mesmo, se você é o Filho de Deus, e desça da cruz!” (Mateus 27.40); “ – Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar. É rei de Israel! Que desça da cruz, e então creremos nele.” (Mateus 27.42); “Confiou em Deus; pois que Deus venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque ele disse: “Sou Filho de Deus.” (Mateus 27.43). Que tentação! Tudo o que queria era descer da cruz! Mas ali manteve resistência por todos nós.


O Cristo crucificado seja nosso consolo e nossa ajuda em nossos sofrimentos. Amém.


SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO | PRETA | CICLO DA PÁSCOA | ANO A

07 de Abril de 2023


P. William Felipe Zacarias


1 LUTERO, Martinho. O Debate de Heidelberg – 1518. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Os primórdios – Escritos de 1517 a 1519. 3. ed. v. 1. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2016. p. 49-50.

 

2 LUTERO, 2016. p. 50.
 


Autor(a): P. William Felipe Zacarias
Âmbito: IECLB / Sinodo: Rio dos Sinos / Paróquia: Sapiranga - Ferrabraz
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 27 / Versículo Inicial: 33 / Versículo Final: 50
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 70036
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