Prédica: Mateus 6.11-13
Leituras: 1 Crônicas 29.9-14 e 1 Timóteo 6.6-10
Autor: Leonídio Gaede
Proclamar Libertação - Volume: XXXIX
1. Introdução
Tratamos aqui de subsidiar uma pregação de quinze minutos sobre os qua- tro últimos pedidos do Pai-Nosso. Esse propósito, sem dúvida, ajuda a determinar a extensão e o jeito do nosso texto. Uma das primeiras afirmações que precisam ser feitas sobre a oração enfocada aqui é que ela une a fé cristã, de expressões tão diferenciadas (!) ao redor do planeta. Estima-se (cf. Wikipédia) que aproximadamente dois bilhões de pessoas pronunciam essa oração, por exemplo por ocasião de uma Páscoa.
O Pai-Nosso é, pois, uma das orações mais conhecidas entre as comunidades seguidoras de Jesus Cristo. Sendo muito conhecida e difundida, é natural que tenha recebido nomes diferentes em tempos e lugares diferentes. É chamada, por exemplo, de “Oração do Senhor”, “Oração Dominical” e “Oração dos Neófitos”. Os nomes têm a ver com o seu uso nas comunidades.
Ela inicia com a invocação de Deus como Pai e, em seguida, relaciona sete pedidos. Os três primeiros afirmam a glória de Deus. Essa consiste na santificação do seu nome, na aceitação da vinda de seu reino e na sujeição à sua vontade. Os quatro pedidos seguintes revelam as implicações dessa afirmação para quem abraça a fé cristã: anulação do medo da sucumbência, anulação da culpa, anulação da predisposição à corrupção e anulação da hegemonia do mal.
Nos primeiros séculos das comunidades cristãs, a oração do Pai-Nosso estava mais relacionada ao ensino (didachē) e menos à pregação (kērigma). A partir desse seu uso, ela ensina que somos filhos e filhas adotivos/adotivas de Deus. Não nascemos filhos e filhas de Deus. Tornamo-nos seus filhos e suas filhas pelo Batismo. Joachim Jeremias, em seu livrinho que leva o título da oração, diz que, nas primeiras comunidades, estava apto a fazer a oração somente quem já fora batizado. A partir do Batismo, é possível chamar Deus de Pai. Por isso faz sentido o título de “Oração dos Neófitos”. Um dos “ganhos” de quem abraçava a fé cristã e “se deixava batizar” era que ganhava um pai comum a todas as pessoas que criam em Jesus Cristo. Adquiria, portanto, o direito de dizer junto com os demais crentes: “Pai nosso que estás no céu”.
Por isso penso que não é oportuno relacionar o fato de Deus ser chamado de PAI com a discussão das relações de gênero. O lugar vivencial dessa expressão na oração em questão não está relacionado a épocas e lugares em que houve ou há domínio patriarcal ou matriarcal. O direito de pronunciar PAI NOSSO QUE ESTÁS NO CÉU vincula-se à conquista de uma família nova, a família formada pelas pessoas que renunciaram ao poder do mal (adoração ao império) e aceitaram a adoção de Deus, deixando-se batizar. Se hoje pronunciamos as mesmas palavras, lembramo-nos de fazer tudo com base em Deus e a partir daí seguir com tranquilidade, sossego e confiança juntos numa família mundial (Gl 4.1-7). Por isso faz sentido ler 1Cr 29, especialmente o v. 14, e 1Tm 6, especialmente os v. 7-8.
2. Exegese e meditação
2.1 – O pão nosso de cada dia nos dá hoje
O quarto pedido do Pai-Nosso tem a especiicidade de ser dirigido ao suprimento material da vida. Lutero expressa isso quando fala que o pedido se refere às “questões do mundo temporal”. O quarto pedido derruba qualquer tentativa de estabelecer na teologia uma dicotomia entre os mundos espiritual e material. Segundo Lutero, essa prece abrange tudo o que pertence à vida no mundo. Por fé expressamos que Deus dá-nos o suprimento material. Sendo, porém, que ele “também aos ímpios e malvados o dá e conserva ricamente”, espera que nós, através do pedido, reconheçamos firme e publicamente que o recebemos de sua mão. Quanto àqueles que elevam os preços, lançam moedas falsas e “a seu arbítrio oprimem os pobres e os privam do pão de cada dia”, cuidem-se para que não percam a intercessão comum e que “essa partezinha do Pai-Nosso” não se volte contra eles (Catecismo Maior).
Do suprimento material não apenas faz parte tudo o que supre, mas também as boas condições em que ocorre tal suprimento. Nesse sentido, o suprimento material do corpo humano necessita de políticas corretas; necessita, em outras palavras, de uma conjuntura que não provoque raiva em quem vai alimentar-se. Isso inclui que, durante as nossas refeições, não sintamos raiva por causa de desvios de verba pública; por causa do favorecimento de interesses particulares com dinheiro público; por causa de desrespeito ao meio ambiente e ao direito de acesso aos meios de produção de alimento; por causa de injustiça nas relações de trabalho que fazem parte do processo de produção do alimento; por causa de injustiça na aplicação do orçamento doméstico e na distribuição das tarefas que fazem parte do processo de preparo do alimento e do local da refeição (fogão, mesa e pia). O suprimento material do corpo humano necessita da paz interpessoal por ocasião da alimentação. Eis a importância também da oração de mesa.
E a questão dos seres humanos que padecem de fome? Essa é tão séria que nem cabe aqui, onde o assunto é a relação consciente de seres humanos, pela fé, com o seu Deus. Matar a fome nem chega a ser um direito humano, é um direito animal, diz Frei Betto. Pretender abordar esse assunto em um espaço tão restrito seria minimizá-lo. Por isso a melhor maneira de abordá-lo na prédica talvez seja fazer 30 segundos de silêncio.
2.2 – E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores
Poderíamos dizer que o quinto pedido torna-se necessário por causa do quarto. O pedido do pão situa-nos tão fortemente entre tantas forças, vindas de pessoas, grupos e organizações, que chegamos ao ponto de pensar que a culpa é do contexto. Cada qual poderia supor: “Eu, por mim, conseguiria fazer uma refeição justa como idealiza o pedido do pão nosso, mas estou envolto em um mundo que não me permite isso, pois não consigo mudar a realidade”. Por isso vem o quinto pedido lembrando, como diz Lutero no Catecismo Maior, que “diante de Deus todos temos de baixar o topete”.
Existe uma dívida social que cada qual contraiu por fazer parte de uma sociedade que tem uma história e nela houve, como diz Leonardo Boff em seu livro Pai Nosso (p. 108), “ruptura da fraternidade e quebra da humanidade”. Para não restringir essa afirmação à nossa própria história, no caso brasileira e latino--americana, convém lembrar que a Epístola de Tiago diz no capítulo 3, versículo 2, que todos erramos em diversas situações.
Esse pedido também inclui a reparação do pedaço de madeira que temos em nosso próprio olho naquele momento em que nos chama a atenção o cisco no olho de um semelhante.
Por fim, receber o perdão compara-se com a água limpa que chega a nós através de um encanamento. Se antes dela, no cano, existir uma bucha de sujeira, a água limpa não passará na qualidade de água limpa. A bucha de sujeira é, no caso, a falta de concessão do perdão a quem nos deve. Atenção! Não entender que Deus não dá o perdão porque existe uma bucha de sujeira. A água limpa vem de graça, independente da sujeira. O evangelho já foi dado! Nossa miserável sujeira não tem força para barrar água limpa, isto é, a graça de Deus. O quinto pedido só se completa, porém, se for acompanhado da segunda parte da frase: “assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Sem isso não tem como a água limpa nos alcançar.
2.3 – Não nos deixes cair em tentação
A tentação deve ser entendida como algo ou alguém que faz tentativas conosco. Ninguém escapa de sofrer essas tentativas. Em outras palavras, a pessoa não deixa de ser tentada por isso ou por aquilo, por ter muita fé, por exemplo. As tentativas são muitas e diversas, poderíamos dizer que são multicoloridas. Elas apontam outros caminhos e prometem supostas vantagens. Não interessa nelas a conservação de uma sã consciência de pessoa perdoada e cativada pelo dom gratuito do evangelho. A palavra correspondente em língua alemã é Versuchung. A tentação vive, portanto, propondo-nos experiências que extrapolam aquilo que aceitamos como caminhos de salvação. Ela tem, por assim dizer, três fontes. Lutero chama-as de carne, mundo e diabo. Essas três fontes fazem suas tentativas em áreas diferentes de nossa vida. As que vêm da carne são principalmente aquelas que nos querem fazer priorizar tudo o que se relaciona com exageros, por exemplo com comidas, com atividades de entretenimento e com tudo o que dá prazer. Do outro lado desses exageros, que trazem consigo a ansiedade e logo levam ao desespero, está o cultivo do ócio sem criatividade alguma, uma confusão total a respeito da compreensão do descanso. Assim tentadas, as pessoas que cederem à tentativa da carne dão-se, por exemplo, o direito de, por um lado, arriscar a vida na intenção de divertir-se e, por outro, adotar o famoso “hoje não vou”; “faltar uma vez não faz mal”; “hoje vou cuidar de mim”; “hoje quero ficar à toa” etc. Ao assim proceder, não se considera que é o ritmo da vida profissional que se leva ou o engajamento secular que se tem, que está pedindo tréguas e não a nossa prática comunitária ou a nossa vida de oração. A necessidade de ter mais tempo para atividades prazerosas ou para o descanso, o desejo de fazer extravagantes refeições com pessoas amigas, a atração por qualquer outra atividade que exceda a rotina e a vontade de ficar recostado no sofá devem ser descontados dos 90% que compõem nossas correrias diárias e não dos míseros 10% que compõem os momentos dedicados à vida comunitária ou à vida de oração como primícias ou dízimo ao Senhor.
Além das tentativas de nossas próprias paixões, temos o mundo a nos propor o mau exemplo, a infidelidade, a vingança, o costume de falar mal de outras pessoas, a concorrência e a prática de erros que, pelo montante de sua sucessão, tendem a se fazer passar por acontecimentos normais. Assim vamos aceitando imbecilidades como uma parte de nossa convivência e vamos nos conformando e enformando a partir do parâmetro de uma vida bagatelizada pela facilidade com que a gente sofre acidentes, assassinatos, falcatruas... Além disso, o mundo também nos excita demasiadamente com adornos, honra, fama e poder.
Em terceiro lugar, mas não com menos força e significado, sofremos as tentativas do diabo. Ele ataca em qualquer lugar, em qualquer área de nossa vida, mais onde menos esperamos, mas parece ter preferência pela deturpação de nosso espírito, manipulando nossa consciência, arrancado dela grandezas como fé, esperança e amor, jogando as pessoas no desespero, poço do qual emergem blasfêmias contra Deus.
2.4 – Mas livra-nos do mal. Amém!
Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar. (1Pe 5. 8).
Segundo o Catecismo Maior, em grego, a sentença do último pedido do Pai-Nosso pode ser entendido como “livra-nos do maligno”. Independente de nossa boa disposição para a prática do bem, devemos considerar a existência de um poder do mal fora de nós ou ao nosso redor, atingindo-nos com o mal. Isso, porém, não exclui o pedido de que Deus livre-nos de nós mesmos de praticar o mal, pois “sob o reino do diabo” estamos sujeitos a toda sorte de práticas. O pedido ajuda-nos, de qualquer forma, a evitar que deixemos de fora essa dimensão de um poder do mal a nos rondar como leão faminto. Nesse pedido não estamos, portanto, apenas pedindo que consigamos manter-nos distantes da prática da maldade, mas pedimos também o livramento do poder do mal. Segundo Leonardo Boff, “o mal, nesse sentido, possui a característica de uma estrutura; a estrutura organiza um sistema de transformações que confere unidade e coerência, totalidade e autoregulagem a todos os processos, mantendo-os dentro das fronteiras do sistema”. Segundo ele, as pessoas podem apropriar-se dessas estruturas e internalizá-las em suas existências.
3. Imagens para a prédica e subsídios litúrgicos
3.1 – A conhecida música de Zeca Pagodinho Deixa a vida me levar sob o ponto de vista teológico brinca perigosamente sobre um divisor de águas entre uma atitude de “entrega os teus caminhos ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará” (Sl 37) e uma atitude laxista de licenciosidade e permissividade: “O negócio é deixar rolar e aos trancos e barrancos, lá vou eu”. Se considerarmos o que diz Dt 8.2-3, a saber, que o ser humano “vive de tudo o que procede da boca de Deus”, então não podemos simplesmente permitir “que a vida nos leve”. Os sete pedidos da oração do Pai-Nosso podem ser entendidos como um esforço consciente de colocar a vida às ordens de Deus e de não deixá-la às suas próprias ordens. Não serve o raciocínio raso de que Deus deu a vida e ela é, portanto, sinônimo da vontade dele. A vida mistura-se com as tentativas que a corrompem (sexto pedido) e com as estruturas do mal que agem sobre ela ou dentro dela quando internalizadas (sétimo pedido).
3.2 – Conta-se que um médico disse a um pastor: “O senhor tem a felicidade de lidar com a nobreza da alma e do mundo espiritual, que vinculam as pessoas a Deus e à eternidade. Eu preciso lidar com o miserável corpo que adoece e se decompõe”. Se fôssemos levar a sério a visão de tal médico, deveríamos dizer que a “prece do pão nosso” veio para sujar a nobre atividade do pastor.
3.3 – Outro médico, o sul-coreano Dr. Yun, fundador da Unibiótica, disse numa palestra que a comida com prazer é uma “comida remédio”, enquanto a comida com raiva é uma “comida veneno”.
3.4 – “Um grande mestre do espírito disse a seu discípulo: tu não podes brincar com o animal que mora dentro de ti sem te tornares totalmente animal. Tu não podes brincar com a mentira sem perderes o direito à verdade. Tu não podes brincar com a crueldade sem perverteres a ternura do espírito. Se quiseres manter limpo teu jardim, não podes deixar nenhum espaço entregue às ervas daninhas” (BOFF, p. 117).
3.5 – Um visitante estava admirando uma fazenda bem cuidada de um amigo. “Deus e você fizeram um belo trabalho neste lugar”, comentou o visitante. “Estou admirado como tudo está bonito.” O fazendeiro respondeu rispidamente: “Você deveria tê-la visto quando Deus cuidava dela sozinho” (da internet).
Bibliografia
BOFF, Leonardo. O Pai-Nosso, a oração da libertação integral. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
JEREMIAS, J. O Pai-Nosso: a oração do Senhor. São Paulo: Paulinas, 1981.
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