Amados irmãos, amadas irmãs,
podemos sonhar com a paz? Temos sonhado com a paz? Você está em paz? E uma pergunta derradeira: se você desse seu último suspiro hoje, você descansaria em paz? Perguntas difíceis, não é mesmo?
O sonho da paz parece ser uma realização cada vez mais distante. Basta assistirmos a algum noticiário para percebermos isso. A violência está em todos os lugares. Não é encontrada apenas nas ruas, mas também dentro dos lares. A vida tem sido cada vez mais banalizada – onde um celular ou algumas notas de dinheiro valem mais que uma vida humana. Desastres naturais tem acontecido em vários lugares do mundo – também em nosso país. E se os problemas não são externos, há quem enfrente dilemas internos como a depressão, o transtorno de ansiedade, complexos, sombras e outros elementos da vida humana que podem fazer o ser humano entrar em conflito consigo mesmo. A vida e a história são marcadas por conflitos. Não importa para onde ou para quem olhamos: sempre haverá a marca do conflito, seja interpessoal, internacional ou interno.
Paulo escreveu sua carta à igreja de Roma por volta do ano 50 d. C. O interessante é que a realidade daquela época não era muito diferente da realidade de hoje no que diz respeito aos conflitos humanos e sociais. Embora fosse a capital do Império Romano, Roma vivia difíceis tensões religiosas e também lidava com fortes desigualdades sociais – como historicamente parece ser comum a grandes cidades. Na política de Roma, os senadores possuíam grande poder político e econômico, sendo donos de vastas propriedades e ostentadores de uma vida luxuosa. Inclusive, os senadores eram escolhidos a partir de critérios como a riqueza, posição social e prestígio. E quem escolhia os senadores? O povo? Não! Os senadores eram escolhidos pelo próprio Imperador Romano que queria perto de si homens ricos e influentes. Na sequência, o grupo mais poderoso e influente de Roma era representado pelos chamados “cavalheiros” que, na época, eram os comerciantes e empresários. Já o restante da população era um povo pobre e que fazia o trabalho braçal, sustentando toda a máquina do poder de Roma.
Essa era a realidade também dos cristãos em Roma. O Evangelho entrou na capital do Império. E onde o Evangelho entra, começa a fazer mudanças e transformações não apenas na vida das pessoas, mas também na própria sociedade. Aliás, os cristãos de Roma não só tinham de lidar com os problemas sociais da cidade, mas também com a perseguição, pois não confessavam o “poderoso” imperador como Senhor; ao contrário, confessavam ao Cristo crucificado e ressuscitado como Senhor. Isso gerou perseguições. Além de lidarem com a situação social e econômica juntamente com todos os demais romanos, agora tinham de lidar também com a perseguição e com a intolerância religiosa.
A comunidade cristã em Roma era muito pequena. A cidade contava com aproximadamente 1 milhão de habitantes na época em que Paulo escreveu sua carta. Destes 1 milhão, cerca de 50 mil eram judeus que iam às sinagogas celebrarem a sua fé, representando cerca de 5% da população. Já os cristãos eram apenas algumas centenas. Assim, os cristãos eram uma comunidade pequena, mas não irrelevante; eram uma minoria, mas não se curvavam à maioria; eram poucos, mas não silenciosos.
Diante desse difícil contexto de desigualdade social e econômica, e de perseguição é que Paulo escreveu sua carta aos Romanos para orientar a fé da comunidade. Não podemos esquecer o quanto essa carta é importante e especial para nós que somos evangélicos de confissão luterana, pois foi a partir da leitura e do estudo dela que Martinho Lutero redescobriu o Evangelho que estava a anos abandonado no seio do cristianismo. A carta de Paulo aos Romanos continua sendo importante e atual em diferentes tempos e épocas.
Diante desse contexto, convido a estudarmos o texto bíblico a partir de dois pontos:
1 PAZ E ANTIPAZ (v. 1-4)
Parece ser difícil ter paz quando o mundo ao nosso redor aparenta que vai desabar a qualquer momento. O apóstolo Paulo sabia dessa realidade. Ele sabia que o fundamento da nossa paz não pode estar neste mundo que é transitório e passageiro. Paulo sabia também que a fonte da paz não é o próprio ser humano em sua força e em suas capacidades. Por isso, Paulo aponta para a verdadeira origem da paz: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual obtivemos também acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.” (Romanos 5.1-2).
A paz não vem do ser humano; a paz vem de Deus. No Cristo crucificado, Deus julgou os pecados da humanidade. Cristo pegou para si os nossos pecados e nos entregou de presente/graça a sua justiça. Por isso, se antes o ser humano tinha medo de Deus, agora pode estar em paz e de consciência tranquila diante de Deus, pois o ser humano foi perdoado dos seus pecados. Fé que é a confiança nas palavras ditas por Deus.
Diante do caos da realidade presente, se o ser humano buscar a paz fora ou longe de Deus, estará arruinado. Não terá êxito e poderá se desesperar ainda mais. A verdadeira paz está no confronto com o crucificado, pois é contemplando o Cordeiro de Deus pregado e morto na cruz que podemos ter certeza do amor e do perdão de Deus. A consciência atormentada e a humanidade pecadora não encontrarão a paz se não aprenderem a contemplar o Cristo sofredor que nos humaniza a olharmos com misericórdia para aqueles que sofrem.
Aliás, mas o que é a paz? Do ponto de vista do Novo Testamento (e também já do Antigo Testamento) a paz não é uma conquista individual. Na verdade, do ponto de vista bíblico, a paz pressupõe o próximo, ou seja, a comunidade. Não é uma paz individualizada, mas uma paz comunitária. Não é possível haver paz quando vemos ainda tanto sofrimento no mundo em que vivemos. Assim diz Léo Zeno Konzen,
Paz é muito mais do que um estado de espírito; ela é o grande bem messiânico que inclui todas as dimensões da vida e da realidade, com base no amor transformador de Deus. Não se trata, portanto, de um bem apenas individual; nas palavras de Jesus, nos evangelhos, é o Reino de Deus acontecendo na realidade humana. A graça da paz nos vem por Jesus Cristo, mediante a fé, individual e comunitária.1
Quem buscar a paz longe do próximo que sofre, nunca a encontrará! Estará indo como alguém que corre pelo caminho acreditando ser possível alcançar o horizonte; procurará pela paz como alguém que caminha em direção ao arco-íris para encontrar o pote de ouro; tentará segurar a paz como alguém tenta segurar o vento e a névoa! Tentará de tudo e não conseguirá nada!
E o apóstolo Paulo nos diz: “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança, a perseverança produz a experiência e a experiência produz esperança.” (Romanos 5.3-4). Por isso, mesmo recebendo da paz de Deus em relação ao perdão dos nossos pecados, continuamos vivendo as tribulações neste mundo. As tribulações, porém, ao mesmo tempo em que incomodam e procuram tirar a nossa paz, também nos lembram de que a esperança nasce do sofrimento. E para passar por tudo isso é necessária a perseverança.
2 PAZ PASSIVA X PAZ ATIVA (v. 5-11)
Assim, na sequência do texto, o apóstolo Paulo vai nos falar sobre a reconciliação. Cristo morreu por nós. Ele nos salvou da ira (cf. Romanos 5.9). Houve reconciliação entre Deus e o ser humano. E foi o próprio Deus quem tomou a iniciativa. O ser humano não agiu para isso – pois nem mesmo pode agir para ter paz com Deus. Assim, recebeu a paz com Deus como um presente do próprio Deus.
Porém, a paz recebida agora deve ser vivida na paz ativa. Se o ser humano recebeu da paz de Deus e percebeu que “isso é muito bom”, sua missão agora é espalhar essa paz pelo mundo, promovendo e lutando por vida digna para todas as pessoas. Buscará comunitariamente a realização do sonho da paz para todas as pessoas. Paz que, como já dito, não é apenas um estado de espírito, mas um estilo de vida que leva em conta o ser humano em seu todo: mental, emocional, físico e espiritual. Não há como haver paz emocional quando o corpo físico passa por fome ou frio; não há como o corpo ficar bem quando a mente enfrenta a depressão ou a ansiedade; não há como se alegrar na espiritualidade quando o corpo e as emoções estão carentes e/ou machucados. A paz não contempla apenas o ser humano espiritual, mas o ser humano integral.
É isto que quer dizer aqui a palavra “reconciliação”. Não se trata apenas do ligamento entre duas partes separadas, mas a promoção da paz através de ações concretas de solidariedade, amor ao próximo e de diaconia. É o socorro a quem precisa. É ir atrás de quem desapareceu. É dar água a quem tem sede. É dar comida a quem passa fome. É vestir quem passa frio. É acolher aqueles que ninguém acolhe. É dar atenção e emprestar ouvidos a quem ninguém quer ouvir ou a quem foi silenciado pela sociedade em que vivemos. Isso é paz! Não é paz passiva, mas paz ativa! É o que chamo de “pazação”.
Amados irmãos, amadas irmãs,
o nosso testemunho cristão é diariamente desafiado pelas violências sofridas e pela indiferença e falta de sensibilidade que nos cerca. Diariamente somos provados em nossa fé para avaliarmos se a nossa paz é passiva ou ativa. Vivemos diariamente aquilo que dizemos crer? Colocamos em prática tudo o que aprendemos ao longo da vida cristã? O testemunho tem sido acompanhado da amizade da ação? Ou inventamos desculpas e mais desculpas para continuarmos insensíveis diante dos sofrimentos das outras pessoas?
Nós estamos vivendo o tempo da Quaresma onde caminhamos passo a passo com Jesus até a sua cruz e ressurreição. Não chegaremos à ressurreição sem a passagem pela cruz. Isso significa que não há esperança sem que se passe pelos sofrimentos. Por isso, estes 40 dias de peregrinação “pelo deserto da vida” nos lembra que não basta recebermos a graça de Deus e cruzarmos os braços. A Quaresma é um chamado à ação!
Paulo foi corajoso, mesmo diante da difícil realidade social da cidade de Roma. A graça de Deus não deve ser vista como desculpa para a inação ou para a omissão. Ao contrário, Paulo nos ensina que a salvação pela graça de Deus é um amoroso convite a trabalharmos pela justiça e pela liberdade dos mais pobres, necessitados e oprimidos. É com eles que devemos viver o Evangelho! Isso é promoção da reconciliação de Deus com o mundo e do mundo com Deus.
Portanto, sejamos encorajados a viver a paz de Deus – mesmo quando estamos em tribulações. Deus pode fazer a semente brotar da terra seca e rachada. Mantenhamos viva a alegria de podermos ter a oportunidade de servirmos a Deus por meio do próximo. O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, nos capacitando a agir em prol da justiça e da libertação.
Aliás, é isso que significa Páscoa. A palavra Páscoa significa “passagem” e no contexto da saída do povo de Deus da escravidão do Egito, significa também “libertação”. Estejamos, portanto, rumo à Páscoa; estejamos, portanto, rumo à libertação! E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará as nossas mentes e os nossos corações em Cristo Jesus, amém.
3º DOMINGO NA QUARESMA | VIOLETA | CICLO DA PÁSCOA | ANO A
12 de Março de 2023
P. William Felipe Zacarias
1 KONZEN, Léo Zeno. “Senhor, dá-me dessa água!”. in: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. v. 47. São Leopoldo: Sinodal, 2022. p. 107.