O Ministério Compartilhado - Origem, História e Teologia

04/04/2013

O MINISTERIO COMPARTILHADO
Origem, História e Teologia.

P. Dr. Gottfried Brakemeier
 

No mundo ecumênico, bem como entre as próprias igrejas luteranas, a Igreja Evangélica de Confissão luterana no Brasil (IECLB) chama atenção por sua concepção peculiar do ministério eclesiástico. Ela confere ordenação a quatro ministérios, a saber, o pastoral, o catequético, o diaconal e o missionário, entendendo tratar-se de desdobramentos do único ministério confiado por Deus à sua igreja. Portanto, várias categorias de obreiros participam do exercício do mesmo, razão pela qual se fala em ministério compartilhado. Na lECLB existe um só Estatuto do Ministério com Ordenação (EMO) que regulamenta as quatro modalidades de sua execução. 

O assunto é polêmico. A grande maioria das Igrejas luteranas reserva a ordenação ao ministério pastoral e episcopal. Diáconos e outros obreiros costumam ser consagrados, incumbidos, enviados, não ordenados.1 Já a Igreja Católica distingue três categorias de ordenação, situando a diaconal no patamar inferior da hierarquia ministerial. Nesta o bispo ocupa a posição mais alta. Prática semelhante se encontra na Igreja Ortodoxa. Embora diáconos sejam ordenados, também a ortodoxia subordina o diaconato ao sacerdócio. É bem verdade que em algumas igrejas protestantes existem tendências no sentido de incorporar diáconos no ministério da Igreja, mas os avanços são tímidos. Enquanto isso a ordenação de catequistas não possui real analogia histórica. Isto apesar de o ensino do evangelho pertencer ao mandato inalienável da igreja. De qualquer maneira, o ministério compartilhado representa um passo pioneiro da lECLB sem reais paralelos em outras igrejas. 

Então, estaria a lECLB abandonando sua base confessional e enveredando por caminhos alheios à tradição luterana e ecumênica? Que significa ministério compartilhado em termos exatos e precisos? Quais as causas que lhe deram origem e quais os propósitos que persegue? São questionamentos com os quais a lECLB seguidamente se defronta e que precisam ser esclarecidos. Pede-se prestação de contas dessa proposta, de sua gênese e de seu fundamento teológico. É o que se vai tentar oferecer a seguir, na esperança de entusiasmar para um exercício do ministério algo mais flexível e justamente assim condizente com o mandato evangélico. 

Na raiz do ministério compartilhado está o desconforto com a predominância do ministério pastoral na lECLB que vinha restringindo o espaço de outros ministérios. Até mesmo ameaçava asfixiar o sacerdócio dos crentes. Durante muito tempo ministério era sinônimo de pastorado. Falou-se até mesmo num atrofiamento do ministério dos leigos na Igreja2 e se denunciava o pastorcentrismo. A própria presidência, em carta expedida em dezembro de 1992 desataca a necessidade de repensar a estrutura do ministério na IECLB por estar demasiadamente centrada no pastorado.3 Fazia-se urgente a ampliação de espaços para outras categorias ministeriais sob pena de a igreja sofrer prejuízo.

Para tanto é instrutivo o retrospecto aos inícios da IECLB. Os imigrantes evangélicos, que a partir de 1824 aportaram no Brasil, viram-se obrigados a organizar sua vida em situação de total ausência de infra-estrutura. No abandono em que o poder público os jogou, foram três as necessidades a cujo suprimento deram prioridade. Julgaram importantes a constituição de uma comunidade religiosa, a garantia da educação e o provimento de alguma assistência na área da saúde. Por isto mesmo construíram uma igreja, fundaram uma escola e, se possível, um hospital. De certa forma trata-se de símbolos de pastorado, catequese e diaconia, respectivamente. A missão ainda estava fora da perspectiva. Os evangélicos de tradição luterana, unida e reformada não vieram como missionários. Nos primeiros tempos se deram por satisfeitos com a tolerância, mesmo parcial, que lhes havia sido assegurada pelo Império, no qual o catolicismo gozava do privilégio de religião estatal. A condição de minoria “herética” inibia a missão das comunidades evangélicas, produzindo um trauma ainda hoje perceptível. 

Inicialmente estas comunidades dependiam do integral apoio das igrejas da Alemanha. Isto nem tanto em termos financeiros quanto de pessoal. Demorou até que tivesse início a formação de obreiros em terras brasileiras. Cada um dos ministérios mencionados tem a sua história particular a contar. Para a diaconia foi fundamental o envio das primeiras diaconisas da Alemanha, em 1913.4 A semente iria vingar e conduzir a múltiplas iniciativas, entre as quais merece menção especial a fundação da Casa Matriz de Diaconisas em São Leopoldo, em 1939, a criação da Associação Diacônica Luterana (ADL), em 1956, em Lagoa Serra Pelada, Espírito Santo, e os Asilos Pela e Betânia no Rio Grande do Sul. É longa a lista das instituições caritativas, a exemplo de creches, ancionatos, hospitais ou centros sociais surgidos na IECLB ao longo dos anos. Sua existência é impensável sem o espírito diaconal das comunidades e de pessoas protagonistas. Recentemente pode-se até mesmo falar de um movimento de “avivamento diaconal” na IECLB.5 Iniciativas como o antigo “Seminário Bíblico Diaconal”, criado em 1974, bem como a organização da “Comunhão de Obreiros Diaconais”, a instalação (temporária) de uma “Secretaria de Diaconia”, além de outras, são etapas nesta caminhada.6 Juntamente com a emancipação da diaconia de sua origem germânica cresce a consciência diaconal na IECLB.

É o que vale também para o ministério catequético. O antigo “Seminário de Professores” é uma das primeiras instituições de formação do que posteriormente viria a ser a IECLB. Já em 1957 existe um regulamento do “Cargo de Catequista”. Mas foi necessário o empenho de egressos do “Instituto Superior de Catequese e Estudos Teológicos” (ISCET), criado em 1969, para levar a causa adiante.7 Importante marco histórico foi a proposta do “Catecumenato Permanente”.8 Ela nasceu da preocupação com a precariedade do ensino confirmatório na IECLB. Suas aspirações, porém, ultrapassaram em muito uma reforma somente nesta área. Pretendia-se nada menos do que estimular o discipulado cristão. Os impulsos  atequéticos aí oferecidos, porém, acabaram engavetados. Faltou consenso na avaliação do documento. Certamente sempre houve consciência da importância da catequese na IECLB. Ela está em evidência na grande quantidade de escolas evangélicas, para as quais o ensino religioso era e é matéria obrigatória do currículo. A nacionalização do ensino durante o governo de Getúlio Vargas em fins dos anos trinta do século passado, significou pesado golpe às comunidades. Muitas escolas tiveram que fechar as portas. Mesmo assim a IECLB pode orgulhar-se de significativo número de escolas evangélicas que sobreviveram os contratempos e que se destacam por sua qualidade. Dentro desse mesmo espírito deve ser vista também a escolha do tema “Educação - Compromisso com a Verdade e a Vida”, para o ano de 1985, bem como a reformulação do “Regulamento do Cargo do Catequista” autorizado pelo Conselho Diretor em 1990.

É sintomático que também a identidade do ministério pastoral já há tempo estava em debate. Embora jamais se questionasse a necessidade de pastores, era duvidoso seu perfil. Quais seriam as suas atribuições?9 Um pastor deveria ser o quê? Um profeta, cura de almas, evangelista, animador religioso, sacerdote ou então um simples mestre de cerimônias? Não há necessidade de entrar nesse debate. Ele se travava com especial intensidade nas casas de formação, cuja tarefa se condiciona a uma clara visão da terminalidade. A evolução da IECLB em direção a uma igreja progressivamente “brasileira” trazia em seu bojo a inquietação com a função pastoral. Qual seria o tipo de comunidade e de ministério exigido pela realidade do País? Importante é constatar que entre as questões controvertidas estava a relação do ministério pastoral com outros. Os próprios pastores questionavam o monopólio que se lhes atribuía. Catequese e diaconia, bem como posteriormente a missão careciam de maior atenção.

Isto apesar de que não faltassem os estímulos. Vale lembrar o estudo intitulado “A estrutura diacônica da comunidade” da autoria de Lindolfo  eingärtner, formulado já em 1964.10 O texto base do “Catecumenato Permanente”, redigido em 1976, insistia não só na reforma da catequese na IECLB, como também na necessidade de “intensificar e aperfeiçoar a diaconia” (item 2.5). São várias as vozes que se pronunciavam no mesmo  sentido. Entre elas merece menção um posicionamento do Conselho Diretor sobre a “Diaconia Evangélica”,11 publicado em 1988. Estranhamente essa voz que pretendia a valorização do ministério diaconal, sofreu destino semelhante ao do “Catecumenato Permanente”. Foi ignorado não só pelas comunidades, como também pelos próprios órgãos diaconais. Nem mesmo hoje consta nas referências entre as publicações sobre o tema. É  verdade que na época ainda não se cogitava na ordenação de outros ministérios.  E, no entanto, era consenso majoritário que o ministério na IECLB necessitava de revisão. Também a orientação expedida pelo Conselho Diretor em 1991, sob o título “Ministério e ordenação na IECLB – uma síntese”, embora entendesse a ordenação como prerrogativa do ministério pastoral, afirma: “Além de pastores e pastoras, a IECLB forma e convoca outras pessoas obreiras, particularmente catequistas e diáconos. Participam do ministério eclesiástico dentro de suas respectivas competências...” Permanecia aberta a pergunta pela modalidade dessa participação.

A fim de preparar uma resposta o Conselho Diretor incumbiu a Comissão Teológica da IECLB a elaborar um parecer com o objetivo de revisar o Estatuto do Ministério Eclesiástico. As teses formuladas por essa Comissão concluíram não haver razões para restringir a ordenação aos obreiros pastores.12 Ainda que se deva cuidar da “delimitação meticulosa do específico de cada serviço” é comum dos obreiros e das obreiras ordenadas o “desdobramento público do Evangelho em igreja e sociedade.” Isto fez com que fosse levado à apreciação do 18º Concílio Geral que devia realizar-se em 1992 na cidade de Pelotas, o anteprojeto de um novo Estatuo do Ministério Eclesiástico. Este previa a admissão ao ministério eclesiástico para pastores, diáconos e catequistas, condicionando-a à ordenação. A ata daquele Concílio registra que, “a Câmara II, por falta de tempo, não se viu em condições de examinar todos os artigos, mas propôs ao Concílio aceitar o documento com um voto de confiança para uma fase experimental, durante a qual será acompanhado pelo Conselho Diretor e estudado nos Distritos nos próximos dois anos.” Isto significa que doravante também catequistas e diáconos deveriam ser ordenados. O plenário aprovou a sugestão. Apesar da condição “experimental” que lhe impôs, o assunto estava decidido. O Concílio de Pelotas é o divisor de águas no que diz respeito à prática da ordenação na IECLB. A partir de então existem outros ministérios com ordenação além do pastoral.

A extensão da ordenação a tais ministérios correspondia a um forte anseio na IECLB. O Concílio tão somente o acolheu. Mas ficou devendo uma fundamentação teológica. Que significaria “ordenação” doravante? Estaria essa decisão em conflito com a Confissão de Augsburgo, base confessional da IECLB? Como justificá-la frente às igrejas irmãs? Teria sido melhor se essas questões tivessem sido esclarecidas antes da votação
conciliar. Na verdade se tomou uma decisão para somente depois buscar os argumentos de apoio. Em princípio ofereciam-se à IECLB três opções:

1. Ela poderia ter-se inspirado na prática da Igreja Católica e Ortodoxa, declarando ser a ordenação de obreiros diaconais e catequistas uma ordenação sui generis, distinta da de obreiros pastorais. Somente estes seriam responsáveis pelo “ensino público” do evangelho em termos do artigo 14 da Confissão de Augsburgo. Sob tais condições, porém, não há como evitar a estruturação hierárquica do ministério, um pensamento estranho à teologia luterana como já constatado acima.

2. Ou então a IECLB poderia ter optado em favor de uma compreensão apenas formal de ordenação. Nesse caso o rito seria aplicado a qualquer envio vitalício de obreiros independentemente de suas funções. Seriam ordenadas e autorizadas pessoas para ministérios considerados essenciais para o ser da Igreja, sob desconsideração do artigo 14 da Confissão de Augsburgo. A ordenação seria algo como um reconhecimento e envio oficial por parte da instituição eclesiástica do trabalho dos obreiros e das obreiras, exigindo um comprometimento pertinente tão somente à especificidade da  respectiva função. Também organistas poderiam ser ordenados sob tal perspectiva, além de tesoureiros com dedicação integral à administração da igreja, e outros. Tal compreensão, porém, implicaria uma ruptura com a conceituação ecumênica da ordenação e significaria uma inovação inédita introduzida pela IECLB. Quem assina responsável pela “orientação teológica” na igreja, senão o “ministério com ordenação”? Que distingue este de outros ministérios? Deverão ser ordenados todos os obreiros?

3. Uma terceira via consistiu na retomada da reflexão sobre a natureza do ministério eclesiástico. O artigo 5 da Confissão de Augsburgo o define como “ministério que ensina o evangelho e administra os sacramentos”. Pois é por Palavra e Sacramento que o Espírito Santo opera a fé. A versão alemã fala em “Predigtamt”. Tais formulações parecem reservar o ministério a pastores e pastoras, excluindo outros, a exemplo do diaconal. Mas será esta toda a verdade sobre o que na versão latina é chamado de “ministério eclesiástico”? Será a “pregação” um ato puramente verbal? Basta o sermão do púlpito para despertar e alimentar a fé da comunidade?

A IECLB entendeu ser somente a terceira alternativa compatível com a sua confessionalidade. Para dar prosseguimento aos estudos o Pastor Presidente, com autorização do Conselho Diretor, convocou um grupo de trabalho, composto por 10 pessoas, representantes das diversas categorias de obreiros/as, dos setores de trabalho, das instituições e dos membros leigos, além do Pastor Presidente. Este grupo se reuniu nos dias 29 e 30 de março de 1993. “A perspectiva predominante... não foram interesses grupais e setoriais, mas sim a missão da IECLB em seu todo, nas  transformações da sociedade brasileira.”13 E, com efeito, não se pode definir o ministério sob desconsideração da comunidade, à qual pretende servir. Uma das importantes conclusões dizia: “Força missionária exige a diversificação dos serviços...” Pretendia-se uma comunidade atuante através de iniciativas múltiplas. Para alcançar este objetivo, a comunidade/igreja pode convocar pessoas com incumbências especiais. Ao lado do sacerdócio de seus membros ela necessita do ministério que prega o evangelho em termos do art. 5 da Confissão de Augsburgo. Este ministério, porém, foi confiado não a uma só categoria de pessoas, e, sim, à comunidade em seu todo, para que ela o administre e o estruture.

A partir de tais reflexões nasceu neste encontro a proposta do “ministério compartilhado”. Em 29 de setembro de 1993 uma síntese da mesma foi encaminhada sob exatamente este título aos Distritos e Setores de Trabalho, bem como às Regiões e Instituições da IECLB para estudo e posicionamento.14 Não se trata, pois, de uma proposta decidida unicamente nas instâncias superiores da IECLB. O povo luterano teve ampla oportunidade de opinar e participar do processo. Os objetivos voltaram a ser explicados no preâmbulo do Estatuto do Ministério com Ordenação (EMO) aprovado pelo 23º Concílio Geral da IECLB em 2002. O que se pretende é a participação do maior número possível de pessoas no exercício do ministério eclesiástico. Falou-se expressamente em “ministérios locais”. Também a comunidade é competente para criar ministérios, seja em regime vitalício ou temporário, integral ou parcial. Importante é que se trate de pessoas oficialmente convocadas e treinadas para as suas funções.15 Afim de evitar mal entendidos seja acentuado tratar-se nesses casos de ministérios sem ordenação. Também estes necessitam de chamado, credenciamento e envio, mas não necessariamente de ordenação. A proposta do “ministério compartilhado” tem por objetivo abrir espaços para a participação no cumprimento do mandato da igreja sem inflacionar a ordenação.

Encaminhada ao 19º Concílio Geral da IECLB, realizado em Cachoeira do Sul, em 1994, a proposta recebeu aprovação conciliar. As comunidades, em documento explicativo, receberam ampla informação a respeito.16 Permanece a perspectiva da comunidade a que os ministérios devem servir. Diz o texto: “A multiformidade de ministérios específicos está aí para servir melhor às necessidades diferentes no corpo e para melhor desenvolver os diferentes dons. Ministérios específicos não têm sentido em si mesmo.” Também está claro que a proposta não se aplica somente aos ministérios com ordenação. Fala-se expressamente em “ministérios leigos”. O ministério quer ser compartilhado em ampla escala. Isto, porém, não diminui a importância dos ministérios com ordenação que são o pastoral, diaconal e catequético. Além deles propõe-se a criação de mais outro, a saber, o missionário. A sugestão não tardaria a ser acolhida. Desde então o “ministério compartilhado” é a maneira de a IECLB entender e estruturar o ministério eclesiástico.

É claro que a partilha do ministério tem consequências particularmente incisivas para os ministérios ordenados. Doravante pastores, diáconos, catequistas e missionários são considerados titulares de ministérios equivalentes. Isto sem que sejam niveladas as suas atribuições peculiares. O ministério eclesiástico não admite uniformidade. Ele impõe a seus desdobramentos compromissos comuns, mas não confunde. De certa forma pode-se falar em “ministérios em parceria”. Não se apaga a identidade própria de pastorado, catequese, diaconato e missão. Antes se requer sua cooperação e complementação mútua muito em analogia à de membros do mesmo corpo. Também sob tal ótica o ministério permanece sendo um só, mas é compartilhado por quatro categorias de obreiros. Será tal concepção condizente com a base confessional da IECLB, particularmente os art. 5 e 14 da Confissão de Augsburgo? Eis alguns considerandos:

1. Embora em Igreja luterana prevalecesse a tendência a identificar o ministério da pregação com o ministério pastoral, a Confissão de Augsburgo, ela mesma, não a ratifica.17 Pregar o evangelho não é prerrogativa do pastor ou da pastora. Na verdade é compromisso implícito no sacerdócio de todos os crentes e por isto incumbência da igreja em seu todo. Consequentemente a IECLB julga mais correta a interpretação que entende a passagem do art. 5 da Confissão como referência ao “serviço abrangente da divulgação do evangelho”. Não se trata de interpretação nova. Há outros que igualmente assim entendem.18 A Igreja deve cuidar para que a palavra de Deus seja pregada, que os sacramentos sejam devidamente ministrados, que o evangelho seja testemunhado a todo o mundo. A Confissão de Augsburgo não predetermina a forma em que isto deverá acontecer.

2. E, no entanto, ela julga imprescindível a “palavra”. Juntamente com o sacramento é por ela que é dado o Espírito Santo. Vale lembrar que de acordo com a tradição luterana também o sacramento é palavra. Distingue-se como palavra visível da palavra audível da pregação. Ao anúncio verbal do evangelho junta-se o gesto, o sinal. Conclui-se daí que a palavra da pregação tem caráter sacramental e o sacramento caráter de palavra. Dessa forma a tradição luterana faz jus ao fato de que a palavra de Deus é sempre atuante. Ela faz o que diz e o que Deus faz tem a natureza de um apelo ao ser humano. É nesse sentido que o ministério eclesiástico é o “ministério da palavra”. O próprio Jesus confirma isso. Em sua atuação palavra e ação formam uma unidade inseparável. Ele mesmo, em sua pessoa, em seu falar e agir manifesta a palavra redentora de Deus. A cristandade confessa Jesus Cristo como sendo o verbo encarnado. Ele é a palavra de Deus em pessoa (Jo 1.14). O ministério eclesiástico é herdeiro dessa unidade. Não pode separar o discurso e a prática. Logo a pregação da palavra deve fazer-se acompanhar de sinais concretos que a visibilizam.

3. Diz a Confissão de Augsburgo que o ministério eclesiástico foi instituído para que “alcancemos esta fé”.19 Trata-se da fé de que fala o art. 4 da Confissão, portanto da fé que justifica. É o Espírito Santo que desperta a fé. Mas palavra e sacramento são os instrumentos usados por ele para os seus propósitos. Eis porque a igreja deve adequar as estruturas do ministério a este objetivo. Como se dá a aprendizagem da fé? Quais os seus pré-requisitos? Para tanto é fundamental o que o apóstolo Paulo escreve em Rm 10.17 onde diz que “a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo.” O ouvir da mensagem do evangelho é essencial na gênese da fé. E, no entanto, este ouvir inclui um sentir. Sem o exemplo prático e sem uma vivência correspondente vai faltar credibilidade à pregação. Mil prédicas sobre o amor de Deus não podem substituir o gesto de amor humano que o faz palpável. Teoria sem prática não convence. Ela fica sem efeitos. Também a pregação deve “encarnar-se”, tornar-se “sensível”.

4. Inversamente também a prática dissociada da palavra se mostra ineficaz. Diaconia por si só não produz fé nem facilita a ação do Espírito Santo. Fé surge somente através da referência ao amor de Deus. É a obra de Deus que desperta a fé, não obra humana por maior que seja. A fé provém do evangelho, portanto da notícia do que Deus fez em prol de seu povo. Também ateus fazem boas obras. Mas eles não conduzem à fé. Consequentemente diaconia cristã, ao participar do ministério eclesiástico, não pode abrir mão do testemunho verbal, respectivamente da “pregação.”20 Volta a confirmar-se que na comunicação do evangelho palavra e ação devem andar de mãos dadas. A igreja é criatura do evangelho, dizia Lutero. Para ter tais efeitos o evangelho precisa ser anunciado, vivido, ensinado, comunicado por palavra e gesto. Sem isto não vai haver fé.

5. Por isto mesmo, o diaconato e a catequese pertencem inseparavelmente ao ministério eclesiástico. O resgate da dignidade humana, a cura de enfermidades, a libertação de cativeiros são ingredientes do evangelho, estão na origem da fé e têm por alvo a salvação de corpo e alma do ser humano. Algo análogo vale para o conhecimento dos dados fundantes da igreja cristã, de sua doutrina, de seu credo. A catequese não pode faltar na missão da igreja. Como visto acima, não há necessidade nenhuma de reformular a Confissão de Augsburgo para incorporar essas dimensões no exercício do ministério. Elas estão implícitas na compreensão correta da “palavra de Deus” que o ministério está incumbido de comunicar. Na raiz da fé se encontra tanto a palavra falada, sua pregação e seu ensino, quanto a palavra praticada, ou seja, o gesto que a concretiza. A proposta do “ministério compartilhado” é a tradução fiel da dinamicidade do evangelho.

A partir de tal compreensão se fez necessária a adequação dos dispositivos regimentais. Existiam até então um Estatuto do Exercício Público do Ministério Eclesiástico e quatro Regulamentos Específicos relativos aos ministérios pastoral, catequético, diaconal e missionário. Eles foram integrados num só “Estatuto do Ministério com Ordenação” (EMO) aprovado no Concílio Geral de 2002. Fica resguardada a diferença entre atribuições comuns de todos os ministérios com ordenação e as que são específicas de cada qual. A paridade não elimina a identificação de áreas de atuação precípua nem responsabilidades peculiares. Sua execução necessita, isto sim, de acerto entre os obreiros e definição das tarefas, caso venham trabalhar na mesma localidade.

É verdade que a concessão da ordenação aos ministérios diaconal, catequético e missionário muda o perfil dos mesmos. Não existe ordenação nas igrejas luteranas que não sujeitasse as pessoas que a recebem à determinação do art. 14 da Confissão de Augsburgo. Pessoas ordenadas são autorizadas ao “ensino público”. Elas devem estar aptas a falar não somente em seu próprio nome, e, sim, em nome da igreja, da qual são obreiros. Espera-se de pessoas ordenadas saibam publicamente representar a IECLB, celebrar cultos, ministrar os sacramentos, promover a missão, bem como conduzir o ensino religioso e a diaconia. Isto de acordo com as incumbências recebidas. Com a ordenação aumenta a responsabilidade teológica de quem exerce um ministério na igreja. Exige-se um mínimo de competência teológica de todos os obreiros ordenados. Consequentemente estão também sujeitos ao “Ordenamento Jurídico-Doutrinário” pelo qual poderão ser penalizados em caso de infração ou desvio doutrinal. O EMO prevê esta eventualidade. É óbvio, pois, que aumentam as exigências a seus titulares.

O ministério compartilhado flexibiliza a estrutura do ministério e acaba com tradicionais hierarquias. Desprende a missão e a vida comunitária de indevida concentração no ministério pastoral, autorizando também outros obreiros a ministrar os sacramentos, caso isto for necessário. Cultos podem ser realizados em lugares em que o pastor ainda não chegou. Não há reserva de monopólios entre os ministérios com ordenação, ainda que seja vetada a substituição de um pelo outro. As tarefas a executar exercício de autêntica parceria na divulgação do evangelho, não nivelando as competências, mas orientando-as no mesmo fim.

A despeito das flagrantes vantagens da proposta, porém, permanecem questões a clarear para o melhor desempenho (exercício) da mesma.

A primeira se refere aos campos de atividade. Estes estão claramente definidos no que diz respeito ao ministério pastoral. É a comunidade religiosa que oferece emprego a pastores e pastoras. Enquanto isso, catequistas e diáconos tinham seus tradicionais lugares de trabalho nas escolas, respectivamente nas instituições assistenciais. Seria impróprio, porém, limitar sua atividade a estas áreas. Apesar de que o “público” do ministério eclesiástico sempre seja o “mundo”, ou seja, a sociedade, ele tem um compromisso inalienável com a igreja. Diáconos e catequistas não deixam de ser “agentes comunitários”. Então, como conceber estes ministérios em termos “profissionais” abrangentes? Quem emprega, quem paga, quem responsabiliza? Aliás, o ministério de maior indefinição é o missionário. Qual será a ocupação de um missionário depois de alcançado o objetivo da fundação de uma comunidade? Ele vai transformar-se em pastor? A pergunta pelo exato perfil dos ministérios, pois, continua em pauta.

Vincula-se a isto a questão da formação. Enquanto atuantes em instituições públicas diáconos e catequistas necessitam, além da qualificação teológica, de cursos profissionalizantes reconhecidos por órgão estatal. Não há como exigir de tais obreiros o grau de bacharel em teologia como condição de admissão ao ministério. Significaria sobrecarregar as pessoas interessadas em diaconia e catequese. Permanece, é verdade, a responsabilidade teológica de todos os ministérios com ordenação. Como fazer jus a ela sem desmotivar os candidatos através de expectativas excessivas? De qualquer maneira Impõe-se a necessidade da revisão dos currículos da formação diaconal e catequética. Quanta teologia se faz necessária para o exercício dos mesmos, e como conciliar esta carga com outras peculiares dessas profissões?

Enfim seja reiterado que a teologia do ministério compartilhado não permite a desvalorização dos ministérios sem ordenação. Ele não pretende a “clericalização” de determinada categoria de obreiros nem admite seja a ordenação entendida como “promoção”. A ordenação tem natureza “funcional”, não “hierárquica”. A igreja vive do sacerdócio de seus membros, sendo que os ministérios, tanto os sem quanto os com ordenação, têm a tarefa de despertar e alimentá-lo. Para tanto quer contribuir também a partilha do ministério, envolvendo mais pessoas no exercício e na responsabilidade do mesmo na esperança de que o Espírito Santo faça frutificar a semente do evangelho para o bem da criatura e a glória de Deus.

Notas:

1 DIAKONIE IM KONTEXT. Verwandlung, Versöhung, Bevollmächtigung. Ein Beitrag des Lutherischen Weltbundes zu Verständnis und Praxis der Diakonie. Lutherischer Weltbund, hrg. Kjell Nordstokke, Genf 2009. p 71s

2 Veja HOCH, Lothar C. O ministério dos leigos: Genealogia de um atrofiamento. Estudos Teológicos, Ano 30, São Leopoldo : 1990/ 3, p 256s.

3 BEULKE, Gisela. A história do ministério diaconal na IECLB. Estudos Teológicos, Ano 47, São Leopoldo : 2007, p 144s

4 Beulke, Gisela. Op.cit.; BRAKEMEIER, Ruthild. O surgimento de um modelo de diaconato feminino, sua implantação no Brasil e perspectiva para o futuro. Dissertação de Mestrado. Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 1998.

5 HOCH, Lothar C. A diaconia na IECLB. O despertar da Igreja para um ministério esquecido. Estudos Teológicos, Ano 45, São Leopoldo, 2005, p 21s

6 É digno de destaque que diaconia tornou-se tema de renovado estudo e de reflexão teológica na IECLB. NORDSTOKKE, Kjell. Diaconia como Missão, Estudos Teológicos, Ano 39, São Leopoldo : 1999/ 3, p 250-259; IDEM. Diaconia – uma perspectiva ecumênica e global. Estudos Teológicos, Ano 45, São Leopoldo 2005, p 5s; IDEM . (org.) Diaconia : Fé em ação. Ed. Sinodal, 1995; BEULKE, Gisela. Diaconia: Um chamado para servir. São Leopoldo : Ed. Sinodal, 1997; BOCK, Carlos. Reflexões sobre a diaconia à luz da mordomia cristã. Estudos Teológicos, Ano 38, l998/1, p 85-91; GAEDE NETO, Rodolfo. Banquetes de vida : a diaconia nas comunidades de Jesus. Estudos Teológicos, Ano 50, São Leopoldo : EST, 2010, p 306s. Algo semelhante vale para o ensino religioso. Cf. WACHS, Manfredo. Ensino religioso como formação integral da pessoa. Estudos Teológicos, Ano 38, São Leopoldo : 1998/1, p 74-84: KUHN, Ademildo. O Ensino Religioso.como parte elementar da formação integral. Estudos Teológicos, Ano 44, São Leopoldo : 2004, p 113s; WAECHTER STRECK, Gisela. A disciplina Ensino Religioso com adolescentes. Estudos Teológicos. Ano 44, São Leopoldo : 2004, p 125s; etc.

7 VOLKMANN, Martin / BRAKEMEIER, Gottfried. Estatuto do Exercício Público do Ministério Eclesiástico. Estudos Teológicos , Ano 41, São leopoldo: 2001, p 8s.

8 Veja BURGER, Germano (ed,) Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma igreja em busca de sua identidade. São Leopoldo : Ed. Sinodal, p 87s; VOLKMANN, Martin. Catecumenato Permanente – um desafio que permanece. Estudos Teológicos, Ano 34, São Leopoldo, 1994

9 KIRCHHEIM, Huberto (ed). Pastorado em discussão. São Leopoldo : Sinodal , 1979; ZWETSCH, Roberto. Pastorado e Missão. Estudos Teológicos, Ano 39, São Leopoldo, 1999, p 123s.

10 WEINGAERTNER, Lindolfo. A Estrutura Diacônica da Comunidade. Estudos Teológicos, Ano 4, São Leopoldo, 1964, p 23s

11 Diaconia Evangélica – síntese e proposta. Um posicionamento do Conselho Diretor. São Leopoldo: Centro de Elaboração de Material, 1988 (Documentos da IECLB 4). A única referência está na bibliografia de NORDSTOKKE, Kjell. Diaconia. Teologia Prática no contexto da América Latina, Christoph Schneider-Harpprecht (org.). São Paulo : ASTE / São Leopoldo : Ed. Sinodal, 1998, p 268s.

12 O parecer consta no arquivo da IECLB sob o título “A ordenação deve ficar reservada aos obreiros pastores?” Ele é da autoria dos pastores A. Baeske e G.U.Kliewer.

13 Citação do protocolo da reunião constante do arquivo da IECLB.

14 Anexo à carta da presidência, IECLB 14766/93.

15 KIRCHHEIM, Huberto. Ministério Compartilhado para a comunidade testemunhar a sua fé. Estudos Teológicos, Ano 40, São Leopoldo : 2000/1, p 5s

16 Anexo Nr. 1 do Boletim Informativo de 25.11.1994

17 BAYER, Oswald. A teologia de Martim Lutero - uma atualização. São Leopoldo : Ed. Sinodal, 2007, p 186s

18 HÄRLE, Wilfried. Dogmatik. Berlin / New York : Walter de Gruyter, 2000, 2. Aufl. p 583, A 104.

19 Veja os comentários instrutivos sobre o assunto em LIENHARD, Marc. Martim Lutero – tempo, vida e mensagem. São Leopoldo : IEPG/Ed.Sinodal, 1998, p 173s

20 De acordo com LIENHARD, Marc. Op. cit. p 174 Lutero conferiu à palavra “pregação” um significado muito amplo. No nosso entender não se distingue substancialmente de “testemunho”. 

P. Dr. Gottfried Brakemeier 

Nova Petrópolis, fevereiro de 2013
 


Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Ministério / Nível: Ministério com Ordenação
Natureza do Texto: Artigo
ID: 20085
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Ser batizado em nome de Deus é ser batizado não por homens, mas pelo próprio Deus.
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