O estado atual da arte de odiar - Uma reflexão sobre a onda de crimes contra os moradores de rua

22/06/2007

 

À primeira vista, o ódio parece uma coisa imutável, isto é, ódio é sempre ódio em todas as circunstâncias e em todos os tempos. Desconfio que não seja assim. Ódio, suspeito, muda, transforma-se, em suma, “evolui”, acompanhando a história humana. Quero apresentar algumas linhas de reflexão sobre o estado da “arte de odiar” neste obscuro momento brasileiro em que “assistimos” a eliminações sumárias de moradores de rua.

Eu lembro que temos um retrospecto de ódios recentes no Brasil. Um tempo atrás justiçávamos bandidos. Quantas conservam ainda esta memória? Foi o tumultuado período dos linchamentos. A turba popular, por uma fração de tempo, tornava-se um corpo social com um mesmo pensamento, vontade, decisão e obstinação: punir o malfeitor, qualquer que fosse. Não havia qualquer hierarquia nesses linchamentos: estupradores, batedores de carteira, ladrões, etc. Não importava o crime. Apanhado pela massa desgovernada, o malfeitor não tinha chance. Outras vezes, eles eram subtraídos das mãos, supostamente fortes, da lei e submetidos ao julgamento popular com imediata execução da pena. Eram mortos a pauladas e depois, em alguns casos, queimados vivos. Assim, em qualquer parte do país e a qualquer hora podia erguer-se o implacável tribunal popular com sua tácita legislação que franqueava a pena de morte após julgamento sumário. Passados estes anos terríveis, aqueles pais de família, aquelas mães, aquelas crianças e aquelas mocinhas voltaram às suas vidas e estão por aí, cumprindo seu papel neste nosso “belo quadro social”. Acreditavam que um país se fazia pela justiçamento sumário de criminosos através de uma massa anônima de cidadãos/ãs-assassinos/as impunes.

Antes, em seguida e depois, tivemos e temos os grupos de extermínio. Setores da sociedade financiam grupos (policiais e para-policiais) que eliminam meninos de rua e delinqüentes – pequenos ladrões – para tranqüilidade das ruas e do comércio. Depois, começamos a botar fogo em índios e mendigos. Aí não tínhamos mais uma massa, mas pequenos grupos isolados, sem coordenação, sem um código comum partilhado. Apenas explosões de violência aqui e ali. Nestes casos, o resto da sociedade reagiu. Indignou-se e houve julgamentos. Parecíamos haver redescoberto o rumo de uma nação com regras claras de convivência. Afora a violência do crime organizado (tráfico, seqüestro, etc.), execrável por si mesma e no aguardo de medidas cada vez mais efetivas, parecíamos haver reencontrado a senda para uma sociedade que, embora sob o efeito de tremendas injustiças (trabalho escravo, miséria, corrupção, etc.), procurava exorcizar explosões fratricidas.

No entanto, eis que estamos às voltas com eventos da mesma natureza, cozinhando, na mesma panela suja, novos ódios. Agora, assassinamos moradores de rua, indistintamente. Assassinamos os “sem-nada” da nação. Estou usando propositalmente a primeira pessoa do plural porque, contra todas as evidências superficiais, no fundo, todos nós já pensamos que o Brasil ficaria melhor sem tanto/as marginais, menores, mendigos, pessoas inúteis, moradores de rua, etc. Bom, alguém/alguns dentre nós passou/passaram do desejo à realização. Aí está nosso anseio atendido. Eis o nosso sonho transformado em pesadelo para os que estão do outro lado da margem, do outro lado da linha invisível que separa, classifica, valoriza, julga e restringe o todo social e controla o acesso à sociedade de consumo. Para estes/as, nem mesmo a rua – por natureza espaço democrático de acolhida irrestrita – cederemos. Sim, queremos os “shoppings” e também as praças, e os parques, e as ruas e tudo mais, pois nós somos as/os cidadãs/aos. Isso tudo nos pertence e não fluiremos nem gozaremos tranqüilamente destes espaços enquanto tivermos que dividi-lo com estes deserdados da vida. Aos que nada mais conseguem obter da vida, tiraremos a própria vida para que tenhamos mais vida. Dos “sem-nada” quitaremos o que resta para que cheguem mais rapidamente à condição de “nada”.

Sujos, feios, desagradáveis, desgraçados, pobres, em síntese, culpados, estragam o cenário de nossas cidades e são a causa de nossos males sociais. Sim, assim pensam alguns dentre nós que personificam a patologia de toda a sociedade brasileira e acham que certos setores sociais, como os menores infratores, os moradores de rua, os nordestinos, os homossexuais, os negros, são a razão de nossas desgraças. Nem mesmo o protesto expresso da sociedade, alardeado pelos meios de comunicação, nem as declarações firmes das autoridades constituídas parecem sinalizar para os assassinos que eles estão na contra-mão da humanidade, pois se trata de crimes lesa-humanidade. Sim, é da vida que estamos falando, toda ela. Se transigirmos de qualquer forma com ameaças ou atentados à vida, reduzimos seu estatuto, reduzimos, conseqüentemente, o valor do ser humano. Só a defesa coletiva, permanente e irrenunciável da vida nos abrirá o futuro. O contrário disso, leitores/ras, é a barbárie.

Entretanto, sem nos darmos conta disso, o Brasil é hoje uma sociedade dividida em um sem número de “grupelhos”: “skinheads” (neonazistas), pit-boys da classe média, gangues de subúrbio, torcidas organizadas de times, fanáticos religiosos, policiais a soldo de comerciantes para reforçar o orçamento doméstico, etc. Por todo lado, explode a violência gratuita destes grupos. É uma nova forma de ódio. É ódio sem razão de ser, sinalizando a nova etapa evolutiva da ancestral “arte de odiar”. Em Eunápolis, sul da Bahia, três jovens, na madrugada do dia 31 de agosto, espancaram um morador de rua, provocando traumatismo craniano. Em depoimento à Polícia afirmaram que não tinham motivos para agredir. Agrediram, disseram, “porque tiveram vontade”.(http://jornalhoje.globo.com/JHoje/0,19125,VJS0-3076-20040831-60386,00.html, acessado em 01.09.04). A violência brutal dos ataques é quase como um espasmo “involuntário” do ódio enquanto norma de convivência.

Seria este ódio gratuito apenas uma espécie de banalização do mal? Não, é um culto simbólico da violência como forma de afirmação da superioridade de poder, de um tipo de superioridade social, da superioridade de gênero expressa na força do macho, da superioridade étnica em sua versão branca, do exercício primitivo de delimitação de espaços vitais, etc. O ódio parece ter se emancipado de sua matriz social, que tem como uma das referências o nosso anseio pela introdução da pena de morte na legislação brasileira. Independente, o ódio cria agora suas próprias regras – ou ausência delas – e razões e generaliza-se, e alastra-se. É a metástase do ódio, avançando ruidosamente sobre o tecido social. Ele principia pelos tecidos mais frágeis, vulneráveis, do todo social. Como um câncer, o ódio não conhece limites. Espalha-se por todo o tecido. Quem garante que no seu bairro, no seu prédio não resida pacatamente um/a desses/as raivosos/as assassinos/as de “sem-nada”? São como minas terrestres abandonadas, qualquer movimento em falso pode detoná-las.

Metodologicamente aparentado com o terrorismo, este ódio espalha o pavor e alimenta-se do medo generalizado. O terreno é fértil para os discursos políticos fortes, autoritários, sobre segurança pública nas campanhas eleitorais municipais. Quando finalmente parecíamos entrar na ante-sala da democracia, surgem estes episódios, favorecendo a truculência nos discursos eleitorais, mas, sobretudo, nas práticas políticas de enfrentamento à violência. A insegurança instala-se e passa a determinar nossas escolhas eleitorais e a legitimar práticas políticas de exceção.

Que candidatas ou candidatos estariam dispostos a colocar sua candidatura a prêmio, propondo que a solução duradoura para episódios deste tipo passa por um amplo processo de educação de toda a sociedade para a tolerância, enfatizando a introdução de noções de convivência social com as diferenças sociais, culturais, étnicas, de gênero como matéria obrigatória dos currículos escolares? Se o fizerem, o farão timidamente. A sociedade espera medidas de impacto que solucionem imediatamente a violência. Entretanto, o ódio, sobretudo este ódio que parece haver se instalado entre nós e em nós não é fácil de extirpar. Ele não é da ordem dos problemas sociais estruturais. Ele tem profundas raízes culturais, antropológicas. Ele é da ordem dos símbolos, isto é, daquelas imagens-força que estruturam os sentidos da vida e da sociedade.
 

Neste ponto, nossos governos (do município à federação) precisam de ajuda. Certamente neste ponto, as religiões podem somar forças entre si e com os governos. Obviamente elas não têm a solução, até porque as religiões sabem, como poucas instituições humanas, como odiar. Entretanto, as religiões articulam-se nesta ordem dos símbolos estruturantes e poderão contribuir, humildemente, com a sabedoria acumulada de suas propostas éticas, seus valores e seu anseio pela paz. Para isso, as religiões precisarão sair de seus seculares estreitamentos para um diálogo franco com a sociedade. A religião cristã, sobretudo aquele setor que no Brasil organiza-se em torno do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC – www.conic.org.br), está dando um significativo passo, trabalhando decisivamente pela campanha da “Década para a Superação da Violência (2001-2010)”, proposta pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), e pela “Campanha Ecumênica da Fraternidade 2005”, cujo tema é “Solidariedade e Paz” e o lema, “Felizes os que promovem a paz”. A promoção da paz reserva-nos uma promessa de felicidade. É afirmação bíblica! Que os membros de nossas comunidades façam do esforço de superação de todas as formas de violência e da busca da paz a sua causa, pois é também a causa de Deus. Ora, a causa de Deus não é outra que o ser humano, vivendo uma vida digna em paz e em abundância.

Encerro esta reflexão com um trecho da oração da “Campanha Ecumênica da Fraternidade 2005”:

Ó Senhor, Deus da vida, que cuidas de toda a criação, dá-nos a paz!
Que a nossa segurança não venha das armas, mas do respeito.
Que a nossa força não seja a violência, mas o amor. (...)
Que a nossa vitória não seja a vingança, mas o perdão.
Desarmados e confiantes, queremos defender a dignidade de toda a criação,
partilhando, hoje e sempre, o pão da solidariedade e da paz.
Por Jesus Cristo teu Filho divino, nosso irmão, que,
feito vítima da nossa violência, ainda do alto da cruz, deu a todos o teu perdão.

Post scriptum: Encerrei este texto na manhã do dia 02.09, Semana da Pátria, depois de receber a informação de que mais um morador de rua, na madrugada deste dia, foi espancado até a morte em São Paulo.

                                                                                             Dr. Valério Guilherme Schaper


Autor(a): Valério Schaper
Âmbito: IECLB
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6858
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Um coração repleto de alegria vê tudo claro, mas, para um coração triste, tudo parece tenebroso.
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