A busca
Quando eu era menino, ganhei uma enciclopédia, destas escolares. Ela vinha acompanhada de uns fantásticos livros sobre histórias, mitos e lendas de toda a humanidade. Fascinante! Li aqueles volumes mais de uma vez. Além de todas as lendas germânicas que me interessavam de forma particular, eu sempre voltava à leitura da lenda de Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.
Os cavaleiros de Arthur – homens nobres e de valores sólidos e não apenas guerreiros sanguinários – tomaram como grande missão encontrar o Santo Graal, que se imaginava ser o cálice da última ceia, com preciosas gotas do sangue de Cristo, colhidas durante a crucificação. Não sabiam que esta seria a grande e última missão de suas vidas. Cada um dos Cavaleiros empreendeu uma jornada cheia de peripécias. A busca consumiu o melhor de suas forças e capacidades. Somente um deles, totalmente puro, consegue chegar ao final da jornada e contemplar o Graal: Sir Galahad, filho de Lancelot, o grande cavaleiro.
Muitos romances, peças e filmes procuraram atualizar a história desta busca, que ganhara forma literária em torno do século XII da nossa era. A saga chegou inclusive às telas do cinema com Indiana Jones. Apesar de todos os enigmas, das peripécias, dos bandidos e da ação bem ao gosto da indústria cinematográfica, ele queria mesmo era encontrar o Graal, contemplar o Graal. Vale para todas as tentativas de tratar do Graal uma mesma idéia: a jornada é árdua, cheia de perigos e conduz do desconhecido a um conhecimento inesperado. Em síntese, pode-se dizer que a busca do Graal trata de uma jornada humana: a busca do sagrado, a busca do divino.
A conspiração
Recentemente esta história (épico, saga, mito) foi atualizada mais uma vez, através do livro de Dan Brown, O código Da Vinci. O livro, diferentemente das tentativas precedentes, teve o dom de transformar-se num fenômeno literário. Estima-se que o livro já tenha vendido cerca de 25 milhões de exemplares, em 44 idiomas, conforme matéria publicada em 21.04.05, no site http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u50416.shtml. No Brasil o fenômeno não é menos impressionante. As vendas já chegaram à casa dos 750 mil exemplares http://cbl.org.br/news.php?recid=1909. A matéria é de 11.04.05 e o acesso foi feito em 23.04.05. É preciso lembrar que no Brasil a tiragem média é de 3.000 exemplares e qualquer livro que chegue à casa dos 50 mil exemplares é considerado “best seller”. O livro tirou do limbo uma pequena editora.
Ainda que não se possa falar de uma obra literária no sentido grandioso do conceito, é preciso conceder ao autor, Dan Brown, o mérito de ter elaborado um “thriller” envolvente e ágil, como é a expectativa do leitor hoje. Lançando mão de enigmas, informações histórias e artísticas, morte, fugas espetaculares, muito suspense, reviravoltas e um final imprevisível, o autor criou um enredo vertiginoso que consegue segurar a leitura por 475 páginas.
No cerne de toda a história: um segredo religioso, evitado por milênios pela tradição cristã, personificada no romance na Igreja Católico-Romana, e zelosamente guardado e cultivado por uma irmandade milenar, fictícia, o Priorado de Sião. O motor, um tanto óbvio, da história é a tentativa de uma organização católico-romana, a Opus Dei, apossar-se definitivamente das provas que ameaçam a fé cristã, melhor, a forma assumida por esta fé na história do Ocidente.
Como diz Leigh Teabing, historiador britânico e pesquisador do Graal, “(...)os homens fazem muito mais para evitar o que temem do que para obter o que desejam” (O Código Da Vinci, p. 283). Este é a linha mestra do romance: os esforços para evitar que seja revelada a verdade que se teme. No fundo, qualquer romance estrutura-se em torno desta tensão: a dinâmica que se instaura para evitar que algo seja revelado ou os desdobramentos psíquicos ou sociais que o desvelamento de algo produz.
No fogo cruzado dos interesses estão uma criptologista e um simbologista. São vitais para a trama. Afinal, todo o desenrolar da história é marcado por uma sucessão de códigos engenhosamente guardados, à vista de todos, que precisam ser decifrados. Os códigos só podem ser decifrados se os símbolos milenares conhecidos forem devidamente relacionados. Os que prometeram guardar e zelar pelo poderoso segredo criaram uma teia fantástica de referências cruzadas, que somente reforçam o clima da terrível conspiração engendrada nos porões do cristianismo para ocultar a terrível verdade, a relação de Jesus com Maria Madalena e a ascendência dela sobre o incipiente movimento cristão. O poder foi ardilosamente subtraído das mãos das mulheres e manipulado pelos homens. Eis a suma da conspiração.
A teoria conspiratória que atravessa toda a história é o verdadeiro alimento das/os milhões de leitoras/res que se atiram vorazmente à leitura, esperando desvendar, ao final, o sinistro enigma da civilização ocidental, alicerçada sobre o cristianismo. Como diz Pamela Gettun, bibliotecária do Departamento de Teologia e Estudos da Religião do Kings College, em diálogo com o simbologista Robert Langdon e a criptologista Sophie Neveu, “todo mundo adora uma conspiração” (O código Da Vinci, p. 402). Esta referência meta-literária brinca com o fato de o próprio romance não estar fazendo outra coisa do que explorar esta sede humana por teorias conspiratórias. Dan Brown registra assim, com ironia, que tem plena consciência dos elementos com os quais está lidando. Brown, à semelhança do que tem acontecido amiúde no mundo das artes, não é um artista, mas um engenheiro. O único imponderável em seu trabalho é saber se serão 20 ou 30 milhões de exemplares vendidos.
O feminino
Nos momentos finais do romance, o simbologista Robert Langdon, um Sherlock Holmes repaginado, mantém um interessante diálogo com Marie Chauvel, lugar-tenente de guardiã do Graal. Ao temor de Langdon de que a insistência do Priorado em conservar em segredo a primazia do feminino na tradição cristã significava condená-la ao esquecimento, Chauvel retruca da seguinte maneira: “Estamos começando a sentir a necessidade de restaurar o sagrado feminino” (O Código Da Vinci, p. 466).
Inúmeras mulheres teólogas, militantes, feministas ao redor do mundo vêm, há décadas, chamando a atenção para o feminino na religião cristã (também teólogos, como Leonardo Boff, no Brasil). Sim, de fato é preciso admitir que o patriarcalismo, o machismo, o androcentrismo causaram muito dano à tradição cristã. Fizeram com que o evangelho não fosse anunciado em sua integralidade.
Duas idéias parecem reunir a diversidade de soluções apontadas nas discussões sobre o tema. De um lado há indicações de que é preciso restaurar o feminino no sagrado. De outro, de forma mais crítica, há vozes que pleiteiam um outro sagrado, um “sagrado feminino”. Do ponto de vista cristão, não há outro sagrado, mas o mesmo anunciado, pregado e vivido, ainda que com a restrição absurda de uma dimensão divina inegável: o feminino. Importa, então, recuperar esta dimensão. Obviamente este processo é conflitivo. Lutamos por não admitir que houve esta parcialidade histórica na mensagem cristã, lutamos por preservar privilégios masculinos, lutamos por negar a verdade. Trabalhamos para ocultar as pegadas da dimensão feminina do sagrado na história da fé cristã. Para tudo isso, a parcialização da mensagem do evangelho foi instrumento. O evangelho, tolhido de sua dimensão feminina, serviu de forma hedionda a esta causa.
Entretanto, não é provável que se trate de uma conspiração que resolveremos desvendando enigmas. Uma conspiração termina quando a verdade é finalmente revelada. O que temos é mais do que isso. É algo mais persistente, mais arraigado, mais entranhado em nossas vidas. É algo que resiste à verdade, às evidências, que é refratário a toda luta por emancipação e libertação do feminino. É certamente algo mais profundo e mais triste. Trata-se de uma terrível verdade humana: a luta marcada por interesses nem sempre conscientes, nem sempre claros. Em tudo isso está a inegável marca da existência humana que, em linguagem cristã, chamamos de pecado. É o pecado que permeia as obscuras relações que historicamente, humanamente, traçamos com o sagrado, tingindo-as com as cores da culpa, do medo, do ódio, da violência, da intolerância, do preconceito, da exclusão, do apego ao poder e aos privilégios, etc.
Contudo, o resgate da dimensão feminina do sagrado não pode tornar-se prisioneira de uma teoria conspiratória ou complô. Vale, então, alertar que transformar a causa da dimensão feminina do sagrado em uma luta por desvendar uma conspiração é subtrair-lhe o tema, é trair-lhe a causa, transformando-a num jogo pueril de decifrar enigmas. Obviamente há muitos enigmas na história de obscurecimento do feminino levada a cabo no cristianismo, mas a luta feminista não se resume a decifrar estes enigmas num jogo de entretenimento sem quaisquer pretensões maiores do que o divertimento.
As mulheres envolvidas nesta causa não buscam um passatempo substitutivo ao cuidado da casa, da família, dos bordados, etc. É uma causa e não uma ocupação. E esta causa não é das mulheres, mas humana. Seremos e estamos sendo todos e todas engrandecidos/as por ela. É preciso lutar contra tudo que queira tirar-lhe dignidade, ainda que seja um romance que fez com que o tema chegasse à consciência de 20 milhões de leitoras e leitores.
O sagrado
O desenlace da história dá-se em forma de um diálogo entre uma mulher sagrada, uma mulher sábia, Marie Chauvel, e o detetive-simbologista, Robert Langdon. O seu interlocutor é o curioso, o buscador, o intelectual, o inquiridor. Sintomaticamente, no romance ele é um simbologista. Uma pessoa que procura conexões extraordinárias, secretas, abscônditas entre os símbolos. Ela, por sua vez, provisoriamente no lugar de guardiã do Graal, dá a verdadeira profundidade à busca que havia guiado os heróis até aquele momento.
Naquela altura do romance, a heroína criptóloga, Sophie Neveu, chegara ao fim de sua jornada pessoal, pois encerrara o seu autodescobrimento. Ela havia descoberto quem era. Langdon, no entanto, precisava continuar. Ele insistia e resistia. Procurava as conexões. Ele ainda não havia encerrado a busca. Ele insiste que o segredo do Graal precisa ser revelado, pois, do contrário, perder-se-á definitivamente. Entretanto, Marie Chauvel afirma que a irmandade sempre entendeu que o Graal “jamais deveria ser revelado” (O Código Da Vinci, p. 466). Ele não pode acreditar. Ele quer decifrar os últimos elementos simbólicos. Pede a ajuda de Chauvel. Ela ri deste esforço, desta resistência ao fato de os símbolos permanecerem obscuros, remetendo sempre a outros símbolos.
A linguagem dos símbolos é, por excelência, a linguagem do sagrado. O sagrado só sabe falar por símbolos, metáforas, imagens. Na verdade, o simbologista Langdon já havia tropeçado com a verdade em um livro que acabara de escrever – pesquisar e escrever livros era sua vida – mas não conseguia ver. Para esses que vêem sem conseguir enxergar, Marie Chauvel tem uma resposta simples: “(...) há muitas formas de se ver coisas simples” (O Código Da Vinci, p. 469). Sim, uma dessas formas é complicar, é procurar a conspiração, a conexão secreta ou mágica, que, se não está na coisa, está em nossa capacidade de extrair conexões engenhosas entre os símbolos.
Jesus contava parábolas. Elas nos parecem difíceis, complicadas. São histórias simples, é linguagem comum. É verdade, há camadas de sentido em toda história simples. São, no entanto, histórias que falam de fatos do cotidiano. Nós complicamos porque queremos um tratado lógico ou então buscamos conexões e vínculos secretos, misteriosos, sugerindo uma conspiração fantástica. Jesus dá graças ao Pai, dizendo: “(...) ocultastes estas coisas aos sábios e instruídos e as revelastes aos pequeninos” (Mt11.25). Paulo também volta a esta idéia, enfatizando que Deus escolheu as coisas simples, fracas, humildes, loucas para envergonhar os sábios e a sabedoria (1 Co 1.18-31). O fato é que preenchemos o sentido da busca, da jornada das mais diversas formas (O Código Da Vinci, p. 466). Invariavelmente preenchemos erroneamente. Trocamos o acessório pelo essencial.
Marie Chauvel despede-se de Langdon lamentando que ele, não obstante tanto esforço, retorne sem “nenhuma resposta concreta”. Ela consola-o dizendo: “Um dia vai descobrir” (O Código Da Vinci, p. 470). Enfim, sobressaltado por um sonho, Langdon encontra a resposta. Corre ao encontro dela e, então, ajoelha-se. O herói do romance alcança, enfim, a sua redenção. A jornada produziu nele o efeito que toda jornada, também a do Graal, deve produzir: uma transformação. A busca do divino não reside na posse da verdade, mas em ser possuído pela verdade e então se deixar transformar por ela. A jornada não consiste em desvendar o mistério de Deus, mas sermos por ele desvendados. É de novo Marie Chauvel quem nos revela esta verdade simples: “(...) o Graal jamais deveria ser revelado. (...). É o mistério e a maravilha que alimentam nossas almas, e não o Graal em si. A beleza do Graal reside em sua natureza etérea.” (O Código Da Vinci, p. 466)
Isto equivale a dizer que ao mistério cabe ser e continuar sendo mistério. Mistério desnudado transforma-se em posse humana, pois se esvazia ao nos encher de sabedoria. Cheios de saber e poder cremos ter possuído a verdade. O mistério, o verdadeiro mistério, não é jamais desnudado ou esvaziado. Mistério revela-se! A ação de comunicar-se está nele, não em nós. Mistério revela-se continuamente e permanece Mistério. Há nele algo sobre o mundo e sobre nós que escapa continuamente. O mistério é revelação e, no entanto, é mistério sempre. Esta é sua verdade! A nossa verdade reside na busca, jamais no descanso satisfeito da resposta encontrada. As verdades circunstancialmente encontradas são traiçoeiras, pois a nossa tentação é ceder ao cansaço ou ao prazer de contemplá-las como se fossem definitivas. Lembremo-nos, no entanto, que “(...) agora vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face” (1 Co 13.12).
24.04.05
P. Dr. Valério Guilherme Schaper