Sim, é um título e tema polêmico! O amor como estando acima da verdade e da justiça! Mas, neste pequeno espaço, vamos tentar clarear um pouco este assunto. Você poderá não concordar com o que o autor destas linhas escreve. Mas o intuito de tais mal traçadas linhas não é tanto convencer, mas fazer sentir e pensar. Se este esboço atingir tal finalidade, não terei convencido a ninguém de mais uma verdade, mas apenas levado a sentir aquilo que este autor sente e quer sentir e, a partir deste ponto de partida, o do sentimento, pensar. Assim, não pretendo tanto falar em nome de doutrinas ou da Igreja. Mas, sim, falar a partir de minha experiência como um cristão, como leitor da Bíblia e como ser humano que sou e experimento ser. E já é bastante isto tudo.
Verdades - fica a cargo do/a leitor/a pôr aspas ou não na palavra/conceito verdade - , particularmente as religiosas, são conceitos cridos. Formam doutrinas, visões do mundo, de Deus e do ser humano. Guiam vidas, instituições e até nações. E tantas verdades há quantas forem as religiões e religiosos. Conforme a religião, pregam-se certas verdades. Conforme a igreja, há variações nos conceitos sobre as verdades cridas. Mesmo dentro de uma mesma igreja, as verdades de fé e credo tantas vezes assumem tons e interpretações diferentes conforme grupos ou tendências. O problema, entretanto, das religiões, ideologias e até da ciência, é que aquele que crê ou aceita certas verdades de fé ou ideológicas, fazendo-as relevantes e verdades para sua vida, costuma também querer que outros, que ainda não encontraram a "luz" da verdade que ele/a encontrou para si, venham a encontrá-la e aderir à verdade que ele/a ou seu grupo prega como sendo A Verdade para todos/as. E aí, muitas vezes, costumam surgir as violências, simbólicas ou mesmo físicas.
A violência simbólica (ou psicológica) das verdades é quando eu, por crer que certa verdade é a verdade para todos, pretendo convencer aos outros que eles também têm que aderir e acreditar naquela verdade, sob risco e pena de perdição e erro. E aí começam as ameaças, explícitas ou veladas, do tipo: "quem não crê e vive tal e qual verdade, assim como meu grupo e eu cremos, vai ser condenado, não será salvo", ou "você só será realmente feliz e só conhecerá a Deus, de fato, se crer nisto e naquilo", e por aí vai. Esta é uma violência (quem sabe chantagem) psicológica, simbólica, pois em nome de um conceito religioso ou ideológico, de uma verdade na qual eu creio e que tem valor para mim, eu excluo da salvação ou felicidade, teórica e simbolicamente falando, as outras pessoas que não pensam e não crêem como eu.
Mas a verdade pode também levar à violência física. Foi e é em nome de verdades religiosas ou ideológicas que a igreja cristã e outras religiões, no passado e no presente, empreenderam guerras santas, inquisições, torturas, prisões, excomunhões, maldições e outras arbitrariedades. Guerras e brigas foram e são feitas em nome de Deus, em nome de verdades doutrinárias. Quem não crê da minha forma não merece a felicidade e a vida. E, assim, quando não se mata de fato, se mata espiritualmente, dizendo que quem não crê nas minhas verdades vai para o inferno, ou que está no erro, nas trevas, na heresia, etc. E, como lembra Rubem Alves, os heréticos/perdidos são sempre aqueles que um determinado grupo, que conseguiu impor sua versão da verdade, relegou à heterodoxia. Verdade e erro, em religiões e ideologias, tantas vezes foi e é uma questão de poder histórico no interior de certos grupos ou nações. Assim, as verdades religiosas são articuladas, tantas vezes, para oprimir e excluir quem pensa e crê diferente.
Também a justiça - afinada ao conceito de verdade, como se encontra - não é a melhor medida para o ser humano, pois seu conceito mais comum e aceito pela sociedade é o da retribuição eqüitativa, ou seja, dar aquilo que é de direito por lei e reter aquilo que deve ser retido por lei (leis estas baseadas em conceitos como mérito e esforço individual). Mas é preciso se perguntar: quem fez e faz as leis? Donde vem o caráter de verdade incondicional das leis? Leis podem ser injustas e feitas para privilegiar este ou aquele grupo. A justiça das leis, via de regra, não olha o ser humano específico, cada qual em suas necessidades e dificuldades concretas, nem se historicamente este ser humano específico ou este ou aquele grupo teve seu acesso à sociedade e a seus bens e oportunidades restrito por aviltamentos e explorações históricas. A lei e a justiça, geralmente, abstraem o ser humano num ser genérico, sem ver as diferenças, as origens das diferenças e os limites impostos por elas. A lei e a justiça, presumindo que todos são iguais e que têm as mesmas condições e possibilidades diante da vida e da sociedade, acabam por não serem justas com aqueles que, de fato, por razões diversas, não puderam ou tiveram, historicamente, as mesmas possibilidades e condições que outros, historicamente mais privilegiados, tiveram ou têm.
E por que o amor deve estar acima da justiça humana - tão parcial - e da verdade? Porque em nome da justiça e da verdade se cometeram e se cometem injustiças, discriminações, preconceitos e violências. O amor, por sua vez, não vê a cor ideológica ou religiosa da pessoa. O amor não está preocupado em convencer sobre verdades e condenar ou marginalizar pessoas por não crerem nestas ou naquelas verdades. O amor quer amar, quer ver o outro feliz. O amor também não se preocupa com legalismos e méritos, mas acolhe em misericórdia, compaixão. Não se preocupa se é "justo" que alguém sofra ou não tenha o básico para a vida, mas ama e quer fazer o outro feliz, independente se algo é "justo" ou não. O amor é revolucionário, pois subverte justiças e verdades em nome da felicidade.
Tudo isso pode parecer simplista diante da complexidade da vida e das redes de jogos de poder/verdade que existem e que costumam reger almas, consciências, instituições. Ou mesmo pode parecer simplista fazer tal apologia do amor sabendo-se que há verdades/conceitos múltiplos e não convergentes em torno do tema/conceito amor. Assim, falar Amor seria simplista demais diante daquilo que ele pode representar/significar diante dos conceitos e verdades que se crêem sobre ele e que delimitam a prática do que possa ser o amor. Sim, talvez já estejamos presos por demais ao emaranhado de redes de significados que não nos permitem ver algo sem que o passemos pelo filtro de nossas redes que nos sustentam no universo das significações. Somos reféns da(s) cultura(s), inclusive das significações e modelos/restrições que um sentimento possa ter em sua conceituação/referencial cultural. Tudo bem! Mas sentir? Sentir amor, compaixão, misericórdia me parece ser algo que precede o conceito. Assim, deveríamos tentar retornar ao simples ato de sentir - amor, no caso - e não teorizarmos tanto este sentimento, este ato do sentir - que também leva ao agir. Pois talvez seja o muito teorizar que pode matar, afugentar, restringir, intimidar, esfacelar o amor. Por mais idílico, pueril e inocente que possa parecer - e sempre quem julga algo como sendo pueril é quem se adonou de conceitos e de suas complexidades - deveríamos nos voltar ao sentir em sua raiz, ao ato de sentir, e tomar o sentimento do amor e da compaixão como critério da vida, acima das verdades - todas elas versões complexificadas/ complexificadoras e em disputa do que seja o sentir.
Se assim não fosse - o amor acima das verdades, inclusive das verdades sobre o que é, pode ou não pode ser a prática do amor - Jesus não teria curado pessoas no dia de sábado, por exemplo, pois a verdade sobre o sábado dizia que nele não se deveria fazer obra, mas para Jesus, a compaixão, o sentir e agir pelo puro sentimento de misericórdia, excedia a verdade e arbitrava sobre ela. Afinal "Que vos parece? É lícito no sábado fazer o bem [amar] ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?" (Lc 6.9). E, diante do "silêncio" da omissão de quem não queria abrir mão de uma verdade e a considerava mais sagrada que tudo - que no sábado não se trabalha, nem mesmo é permitido um gesto de amor, o bem -, Jesus fica "indignado e condoído com a dureza dos seus corações" (Mc 3. 4-5). Dureza que era fruto do apego à verdade (neste caso, do sábado) como estando acima do amor. Assim, para Jesus, as necessidades humanas estão acima de verdades e justiças, pois se a barriga "ronca" e falta o pão de cada dia, também não é problema colher espigas no sábado (Mc 2.23-28).
Um judeu não deveria conversar com um samaritano, principalmente uma mulher samaritana (pior ainda!). Essa era a verdade, o critério de pureza. Mas a verdade, para Jesus, não tem a mesma força do amor que quebra barreiras de preconceitos e medo. Assim, ele conversa com a samaritana - causando espanto para os discípulos - e, de quebra, ainda lhe revela sua messianidade (Jo 4.1-30). E, a partir de Jesus, já não há montes/lugares que tenham a exclusividade de serem lugares verdadeiros de adoração. Adora-se a Deus "em espírito e verdade" (Jo 4.23). E a verdade passa a ser, a partir de Jesus, como vimos e ainda veremos, um sinônimo da prática da compaixão, misericórdia e amor. A verdade, em Jesus, acaba por ser julgada por um critério de praticidade: se ela ajuda ao amor, à prática da misericórdia e compaixão, então ela é boa. Se ela impede essas práticas e sentimentos, então ela pode e deve ser revista. O amor como critério da verdade.
A verdade, na teologia judaico-cristã, é que todos estávamos debaixo do pecado e condenados. Mas, o amor de Deus excedeu essa verdade, pois "sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado, superabundou a graça" (Rm 5.20) e "acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados" (1 Pe 4.8). Sim, o amor, não a verdade ou justiça que, conforme a teologia da jurisprudência divina, nos tornaria a todos/as condenados/as. A justiça e a verdade de Deus, em Jesus, se transformou em amor e, desde então, são chamadas por este nome. Foi o amor de Deus que salvou e salva, não a verdade daquilo que, segundo a teologia tradicional, mereceríamos todos/as. Desde então, desde Jesus e de sua prática advinda do sentimento, o amor em Deus falou e fala mais alto que a verdade e a justiça.
Enfim, seria importante considerar a primazia da Vida e do Amor como estando acima de todos os sistemas teológicos, credos, dogmas, ritos e axiomas, e sendo aquilo que promove a Vida e o Amor o critério último e definitivo que julga e acrisola todos os sistemas de verdades e justiças.
O amor é capaz de sarar pessoas e sociedades. Enquanto pessoas, religiões e instituições continuarem a lutar, de fato ou simbolicamente, por esta ou aquela verdade, tentando convencer aos outros de que sua verdade é mais verdadeira que a do outro, e que a verdade do outro é erro e condenação, não teremos paz, tolerância e fraternidade no mundo. E enquanto os legalismos, méritos e moralismos, religiosos ou civis, forem supremos mandatários sobre as vidas, a misericórdia e a compaixão, que têm uma outra visão do ser humano, não encontrarão espaço para mudar corações e vidas. É o amor que sara, une e liberta! Pois é na prática do ato simples e descomplexificado do amor, acima das verdades, que se encontra, se dá e recebe felicidade e alívio para a vida. É o amor que traz a paz! O amor, acima de tudo!
P. Rodrigo Portella