O admirável mundo dos Incas

01/12/1999

O admirável mundo dos Incas

• Eliana e Darci Drehmer •

Um passeio pela terra dos incas evoca dois sentimentos opostos: admiração e vergonha. A admiração deve-se à cultura desenvolvida pelos povos que viveram naquela parte do continente latino-americano, hoje ocupada pela Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e Venezuela. E a vergonha, por causa da destruição que se provocou em nome da fé cristã.

Muito mais do que no Brasil, conservou-se a população indígena nesta parte do continente. Cerca de 50% da população é descendente de índios. Observa-se como se conservaram a cultura, a língua, os costumes. A religião é um misto de catolicismo com fortíssima influência da religião nativa. O que chama atenção, especialmente, porém, em La Paz, capital da Bolívia, e Arequipa, no Peru, é a limpeza das cidades. É de causar inveja a muitos países considerados civilizados!

A pobreza da população indígena é apenas aparente. Em verdade, trata-se de uma questão cultural. Índio tem outro conceito sobre a vida. Não lhe interessa acumular bens, assim como fazemos nós, influenciados pelo capitalismo. Também não tem maiores aspirações. Viajar para conhecer outros países, por exemplo, comprar livros, assinar jornais, provavelmente não está nos seus planos. Importa viver a vida, festejar, comer e beber. Nada mais além disso é importante. Não se pode chamá-lo de preguiçoso. Cedo, muito cedo, às seis horas, principalmente as mulheres, trouxa nas costas, em muitos casos acompanhadas de filhos pequenos, montam as suas tendas nas ruas da cidade. Vendem chás, artesanato, folhas de coca, balas e outros produtos. Adultos e crianças têm aspecto saudável. Em momento algum, apresentam sinais de subnutrição.

Chá de coca

La Paz situa-se a 3.650 m de altitude. O efeito sobre as pessoas, que vêm de uma altitude ao nível do mar é muito grande. Os sintomas da diferença de altitude são dor de cabeça, mal-estar, 'ânsia de vômito, falta de ar, em alguns momentos. Estes efeitos, no entanto, tendem a desaparecer à medida que o organismo se adapta. Dizem que o chá de coca reduz o efeito da altitude. Por isso, os turistas são recebidos com chá de coca quando chegam no hotel. Só para não deixar dúvida: o chá de coca não deixa nenhuma seqüela. Ninguém fica doidão! Seu gosto não é muito diferente do chá de cidró, apenas mais insípido! O mesmo se pode dizer da folha de coca, mascada pelos descendentes de índios e também pelos turistas curiosos.

Ignorância ou defesa da fé?

Em Tiawanaco, na Bolívia, há admiráveis vestígios de antigas civilizações, de extraordinária habilidade arquitetônica. Os nativos entendiam de arquitetura, de estruturas, de acústica, de astronomia. Merece destaque o orelhão de Kalasasaya. Trata-se de uma concha acústica, imitando o ouvido, que permite que, mesmo uma voz a uma distância de 50 m, pode ser percebida perfeitamente. Porém, é de morrer de vergonha quando se observam os sinais indeléveis do vandalismo europeu. Quando os espanhóis chegaram ao novo mundo, entenderam que tudo que não rezasse pela cartilha da cultura europeia não deveria permanecer. Em virtude dessa concepção, a ordem era destruir tudo que não se enquadrasse nos conceitos cristãos — entenda-se europeus. Assim, pode-se ver em Kalasasaya estátuas de divindades quéchuas com cabeças decepadas ou, ao menos, seriamente danificadas. Entre outras formas para acabar com os ídolos indígenas, os espanhóis quebravam o nariz das estátuas, pois, conforme pensavam, o ídolo, estando impedido de respirar, fatalmente morreria. A pergunta que fica: Quem era mais ignorante, os índios ou os invasores?

Sonho ou pretexto

Na travessia do Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo, 3.812 m acima do nível do mar e uma extensão de 8.300 Km2, visitam-se as ilhas do Sol e da Lua, respectivamente, os lados masculino e feminino dos incas. Na ilha do Sol, teve início, segundo a lenda, o grande Império Inca, que incorporou outros povos indígenas da Bolívia, do Peru e do Equador e os manteve subjugados até a sua destruição pelos espanhóis por volta do ano 1570. Em Copacabana (= o pico da montanha e o azul das águas, em língua quéchua) fica o porto de chegada na travessia do lago. Na porta de entrada da Basílica da Virgem Morena de Copacabana, encontra-se entalhado um sonho do inca Yupanki, que deixa um ponto de interrogação em todo o visitante com espírito crítico. Sonhara o inca, segundo afirmam, que naquele local seria construída uma enorme basílica. Os espanhóis não perderam tempo: construíram a basílica. Fica no ar para reflexão: Yupanki realmente sonhou ou o sonho foi uma invenção dos invasores para justificar a dominação espanhol? Se sonhou, não seria mais um pesadelo do que um sonho, instigado pela perseguição dos invasores?

O arquipélago de totora

Puno, às margens do Titicaca, serve de ponte entre o lago e o Peru. Visita imperdível são as ilhas artificiais flutuantes, construídas de totora — junco que cresce nas águas do lago. São habitadas pelos urus, um povo de origem desconhecida, expulso das margens do lago Titicaca com a chegada dos espanhóis. Refugiaram-se em balsas de totora no meio do lago, onde passaram a morar. Sentiam-se, assim, protegidos e seguros. Com o tempo, descobriram que o mesmo princípio da balsa de totora servia também para construir plataformas. Assim, partiram para a construção de ilhas flutuantes artificiais. Vivem, hoje, de artesanato, que produzem e vendem nas próprias ilhas. O arquipélago é constituído de doze ilhas e é habitado por cerca de 1.000 pessoas. Os uros são um povo em extinção como população autêntica. A previsão é que permaneçam apenas como atração turística.

Terra dos incas

A verdadeira terra dos incas é o Peru, cujo centro é a cidade de Cusco, construída sobre as ruínas da antiga capital do Império Inca. A exemplo do que aconteceu em Tiawanaco, os espanhóis trataram de destruir as edificações e tudo o que lembrasse a cultura e a religião dos povos nativos. Assim, destruíram templos e edificações incas, usaram suas pedras como alicerces para a construção de conventos, catedrais e igrejas católicas ou, então, usaram os antigos alicerces para edificar sobre eles edificações de sua conveniência. A ornamentação dos interiores das novas edificações é um vestígio do que era a riqueza inca, em ouro e prata. Aliás, é bom lembrar que estes metais, preciosíssimos para os europeus, não tinham o mesmo valor para os povos nativos. Tornaram-se valiosos apenas a partir da perspectiva europeia. Cusco é um monumento à ganância e à hipocrisia dos europeus e deixa qualquer cristão coerente vermelho de vergonha ao se defrontar com tanta destruição feita em nome do cristianismo. As edificações cristãs e as circunstâncias em que foram construídas não reve-lam absolutamente nada do autor do cristianismo, Jesus, que nasceu numa manjedoura, pobre e humilde, viveu sem ter onde reclinar a sua cabeça e acabou morrendo de forma indefesa e melancólica numa cruz. Cada igreja da cidade de Cusco parece que foi plantada no lugar de um monumento inca, como sinal de força, para mostrar quem tem mais poder.

Machu Picchu, a cidade sagrada

A viagem de trem de Cusco para Machu Picchu é cheia de atrativos. Para começar, o trem no qual se viaja não é uma sucata, o que normalmente se imagina. Muito pelo contrário, trata-se de um meio moderno e confortável de locomoção. Durante o percurso, há serviço de bordo, prestado por pessoal uniformizado, de boa apresentação. Para vencer a montanha e as curvas, o trem se desloca em ziguezague, ora para frente, ora para trás. Depois de um percurso de três horas e meia de trem, viaja-se mais quarenta minutos de ônibus até a cidade de Machu Picchu, por uma estrada que serpenteia as montanhas.

Chega-se, finalmente, à cidade sagrada, situada a 2.400 m acima do nível do mar. Não se trata de uma ruína. Em verdade, pode-se chamá-la de cidade abandonada dos incas. Para habitá-la, basta recompor os telhados, que eram feitos de palha e que, com o decorrer do tempo, apodreceram, repor as aberturas, portas e janelas, e as casas estão prontas para serem habitadas. Tudo permaneceu intacto.

Por que não houve destruição em Machu Picchu como em Tiawanaco e Cusco? A cidade sagrada dos incas permaneceu escondida na selva amazônica até 1911, quando foi descoberta pelo americano Hiram Bingham. Até lá, a história já tinha dado muitas voltas. Os países invadidos pelos espanhóis já haviam conquistado a sua independência. A Bolívia já era boliviana, o Peru já era peruano e os incas já eram considerados um povo — embora extinto — e sua cultura já era respeitada. A cidade apresenta algumas características comuns a todas as povoações incas. Uma delas é o sistema de terraços. Embora Machu Picchu esteja pendurada no morro e encravada entre o Wayna Picchu (monte jovem, no idioma quéchua) e Machu Picchu (montanha velha), havia agricultura na cidade. Isto era possível graças ao sistema de terraços, construído artificialmente para impedir a erosão e permitir, dessa forma, que se cultivasse a terra. A construção dos terraços deve ter demandado muito tempo e muita mão-de-obra. Isto, aliás, não era preocupação para os incas. Não tinham pressa para a conclusão das suas obras. O tempo não contava. Tinham pela frente apenas o objetivo e nada mais. Dois sentimentos os incas não conheciam: medo e impossível. Movidos por estes dois princípios, pela coragem e pela pertinácia, venciam quaisquer obstáculos e transformavam lugares inóspitos em áreas habitáveis e cultiváveis. O mais importante: tudo isto foi feito de forma inteligente sem agredir a natureza. As construções são totalmente anti-sísmicas, de forma que qualquer tipo de tremor provoca apenas peque-nos deslocamentos entre as pedras, sem, no entanto, acarretar desmoronamentos.

A América Latina tem muitos atrativos, esquecidos ou ignorados pelo mundo. Não é verdade que só do lado de lá do Equador, no hemisfério Norte, tem coisas bonitas para encher os olhos e o coração. Quem viaja pelos países andinos e conhece a Terra dos Incas só pode exclamar com o salmista: Ó Senhor, Senhor nosso, quão magnifico em toda a terra é o teu nome (Salmo 8.1). E, por outro lado, quem conhece a destruição do mundo inca e de seus antecessores, causada pelos cristãos, só pode bater no peito, como o publicano, e clamar: Ó Deus, sê propício a mim, pecador (Lucas 18.13).


Os autores são membros da Comunidade Evangélica de São Leopoldo, RS


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Autor(a): Eliana e Darci Drehmer
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2000 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1999
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33058
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